segunda-feira, 24 de junho de 2013

Mecanismo da Utopia - Emil Cioran

Capítulo intitulado "Mecanismo da Utopia", da obra "História e Utopia", Emil Cioran

"Em qualquer grande cidade onde o acaso me leva, surpreendo-me que não se desencadeiem todos os dias revoltas, massacres, uma carnificina sem nome, uma desordem de fim do mundo. Como, em um espaço tão reduzido, podem coexistir tantos homens sem destruir-se, sem odiar-se mortalmente? Na verdade se odeiam, mas não estão à altura do seu ódio. Esta mediocridade, esta impotência, salva a sociedade, assegura sua duração e estabilidade. De vez em quando produz-se algum abalo que nossos instintos aproveita; depois, continuamos nos olhando nos olhos como se nada tivesse acontecido e coabitamos sem nos despedaçar mutuamente de forma demasiado visível. Tudo retorna à ordem, à calma da ferocidade, tão temível, em última instância, quanto o caos que a havia interrompido.

Mas me surpreende mais ainda que, sendo a sociedade o que é, alguns tenham se empenhado em conceber outra, inteiramente diferente. De onde pode provir tanta ingenuidade, ou tanta loucura? Se a pergunta é normal e trivial, a curiosidade que me leva a fazê-la tem, em compensação, a desculpa de ser maligna.
Em busca de novas provas, e no preciso momento em que estava a ponto de desesperar, tive a ideia de introduzir-me na literatura utópica, de consultar suas “obras-primas”, de impregnar-me delas, de chafurdar nelas. Para minha grande satisfação, encontrei como saciar meu desejo de penitência, meu apetite de mortificação. Passar alguns meses examinando os sonhos de um futuro melhor, de uma sociedade “Ideal”, consumindo o ilegível, que sorte! Apresso-me em acrescentar que esta literatura repugnante é rica em ensinamentos e que, ao frequentá-la, não se perde totalmente o tempo. Desde o princípio se distingue o papel (fecundo ou funesto, não importa) que desempenha, na origem dos acontecimentos, não a felicidade, mas a ideia de felicidade, ideia que explica por que, tendo a idade de ferro a mesma extensão da história, cada época dedica-se a divagar sobre a idade de ouro. Se se pusesse fim a tais divagações, ocorreria uma estagnação total. Só agimos sob a fascinação do impossível: isto significa que uma sociedade incapaz de gerar uma utopia e de consagrar-se a ela está ameaçada a esclerose e de ruína. A sensatez, à qual nada fascina, recomenda a felicidade dada, existente; o homem recusa esta felicidade, e essa simples recusa faz dele um animal histórico, isto é, um amante da felicidade imaginada.


“Logo será o fim de tudo; e haverá um novo céu e uma nova terra”, lemos no Apocalipse. Se eliminamos o céu e conservamos só a “nova terra”, teremos o segredo e a fórmula dos sistemas utópicos; para maior precisão, talvez fosse preciso substituir “terra” por “cidade”; mas isso é apenas um detalhe; o que conta é a perspectiva de um novo acontecimento, a febre de uma espera essencial, de uma parousia degradada, modernizada da qual surgem esses sistemas tão caros aos deserdados. A miséria é, efetivamente, a grande auxiliar do utopista, a matéria sobre a qual trabalha, a substância com que nutre seus pensamentos, a providência de suas obsessões. Sem ela estaria desocupado, mas ela o ocupa, o atrai ou o molesta, conforme seja rico ou pobre; por outro lado, ela não pode prescindir dele, tem necessidade desse teórico, desse entusiasta do futuro, sobretudo porque ela mesma, meditação interminável sobre a possibilidade de escapar a seu próprio presente, não suportaria sua desolação sem a obsessão por uma outra terra. Vocês duvidam? É porque não experimentaram a indigência completa. Se chegarem a ela, verão que quanto mais desprovido está alguém, mais gasta o tempo e a energia em querer, com o pensamento, reformar tudo, inutilmente. E não penso unicamente nas instituições, criações do homem (estas serão condenadas sem apelação), mas nos objetos, em todos os objetos por mais insignificantes que sejam. Não podendo aceitá-los tal como são, vocês quererão fazer o papel de legislador ou de tirano à custa deles, e ainda quererão intervir na vida dos elementos para modificar sua fisionomia e sua estrutura. O ar é irritante: que mude! E também a pedra. E o vegetal, e o homem. Para além das bases do ser, se quererá até os fundamentos do caos, para apoderar-se dele, para lá estabelecer-se. Quando não se tem um tostão no bolso, a gente se agita, delira, sonha possuir tudo, e esse tudo, enquanto dura o frenesi, se possui realmente: nos igualamos a Deus, mas ninguém se dá conta disso, nem Deus, nem sequer a gente mesmo. O delírio dos indigentes é gerador de acontecimentos, fonte de história: uma multidão de arrebatados que querem um outro mundo, aqui e agora. São eles que inspiram as utopias, é para eles que elas são escritas. Mas lembremos que utopia significa “em parte alguma”.


E de onde seriam essas cidades que o mal não toca, onde se glorifica o trabalho e onde ninguém teme a morte? Nelas nos vemos obrigados a uma felicidade feita de idílios geométricos, de êxtases regulamentados, de mil maravilhas repugnantes: assim se representa necessariamente o espetáculo de um mundo perfeito, de um mundo fabricado. Com uma minúcia risível, Campanella nos descreve os solares isentos de “gota, reumatismo, catarros, ciática, cólicas, hidropisia, flatulências”... Tudo abunda na “Cidade do sol”, “porque cada um procura distinguir-se naquilo que faz. O chefe que preside cada coisa é chamado de rei... Mulheres e homens, divididos em grupos, entregam-se ao trabalho, sem jamais infringir as ordens dos seus reis, e sem jamais mostrar-se cansados como nós faríamos. Consideram seus chefes como pais ou irmãos mais velhos”. Tolices similares se encontram em todas as obras do gênero, sobretudo nas de Cabet, Fourier ou Morris, todos desprovidos dessa gota de aspereza, tão necessária às obras, literárias ou outras.

Para conceber uma verdadeira utopia, para esboçar, com convicção, o panorama da sociedade ideal, é preciso uma certa dose de ingenuidade, e mesmo de tolice, que, demasiado aparente, acaba por exasperar o leitor. As únicas utopias legíveis são as falsas, as que, escritas por jogo, diversão ou misantropia, prefiguram ou evocam as “Viagens de Gulliver”, bíblia do homem desenganado, quintessência de visões não quiméricas, utopia sem esperança. Através de seus sarcasmos, Swift varreu a estupidez de um gênero até quase anulá-lo.

É mais fácil confeccionar uma utopia do que um apocalipse? Ambos têm seus princípios e seus estereótipos. A primeira, cujos lugares-comuns estão mais de acordo com nossos instintos mais profundos, deu origem a uma literatura muito mais abundante do que o segundo. Não é dado a todo mundo confiar em uma catástrofe cósmica, nem amar a linguagem e a maneira como é anunciada e proclamada. Mas aqueles que admite a ideia e a aplaude, lerá, nos Evangelhos, com o arrebatamento do vício, as frases de efeitos e os clicês que se tornaram famosos em Patmos “... o céu se obscurecerá, a lua não dará sua luz, os astros cairão... todas as tribos da terra se lamentarão... esta geração não passará e todas estas coisas ocorrerão.” Este pressentimento do insólito, de um acontecimento capital, esta espera crucial pode converter-se em ilusão, e então aparecerá a esperança de um paraíso sobre a terra ou em outra parte; ou se transformará em ansiedade, e será a visão de um Pior ideal, de um cataclisma voluptuosamente temido.

“... e de sua boca sai uma espada afiada para golpear as nações.” Convenções do horror, fórmulas sem dúvida. São João sucumbiu a isso desde o momento em que optou por esse esplêndido palavrório, desfile de derrocadas preferível, no final das contas, às descrições de ilhas e de cidades onde uma felicidade impessoal sufoca, onde “a harmonia universal” aprisiona e esmaga. Os sonhos da utopia se realizaram em sua maior parte, mas com espírito muito diferente daquele em que ela os havia concebido; o que para a utopia era perfeição, para nós é tera; suas quimeras são nossas desgraças. O tipo de sociedade de que a utopia imagina com um tom lírico nos parece intolerável. Vejam por esta amostra do “Viagem a Icaria”: “duas mil e quinhentas jovens (modistas) trabalham em um ateliê, umas sentadas, outras em pé, quase todas encantadoras... O hábito que tem em cada artífice de fazer a mesma coisa duplica a rapidez do trabalho, acrescentando-lhe também a perfeição. Os mais elegantes enfeites de cabeça nascem aos milhares, cada manhã, das mãos de suas belas criadoras...” Semelhantes elucubrações revelam a debilidade mental ou mau gosto. E, no entanto, Cabet, materialmente falando, foi exato; só que se equivocou no essencial. Sem nenhuma noção do intervalo que separa ser e produzir (só existimos, no pleno sentido da palavra, fora do que fazemos, além de nossos atos), não podia descobrir a fatalidade vinculada a toda forma de trabalho, artesanal, industrial ou outro qualquer. O que mais impressiona nos escritos utópicos é a ausência de perspicácia, de instinto psicológico. Os verdadeiro personagens são autômatos, ficções ou símbolos: nenhum é ideia perdida no meio de um universo sem referências. As próprias crianças se tomam irreconhecíveis. No “estado associado” de Fourier, elas são tão puras que até ignoram a tentação de roubar, de “pegar uma maçã da árvore”. Mas uma criança que não rouba não é uma criança. Que sentido tem formar uma sociedade de marionetes? Recomendo a descrição do Falanstério como o mais eficaz dos vômitos.

Situado nas antípodas de La Rochefoucauld, o inventor de utopias é um moralista que só percebe em nós desinteresse, apetite de sacrifício, esquecimento de si. Exangues, perfeitos e nulos, fulminados pelo Bem, desprovidos de pecados e de vícios, sem espessura nem contornos, sem iniciação à existência, à arte de envergonhar-se de si mesmos, de variar suas vergonhas e seus suplícios, nem sequer suspeitam o prazer que nos inspira o abatimento de nossos semelhantes, a impaciência com a qual antecipamos e seguimos usa queda. Esta impaciência e este prazer podem às vezes provir de uma curiosidade e não comportar nada de diabólico. Enquanto um ser ascende, prospera, avança não se sabe quem ele é, pois sua ascensão o afasta de si mesmo, rouba-lhe a realidade, e assim ele não é. Do mesmo modo, só nos conhecemos a partir do momento em que começamos a decair, quando o êxito, ao nível dos interesses humanos, se revela impossível: derrota clarividente graças à qual, tomando posso de nosso próprio ser, nos separamos do torpor universal. Para melhor apreender a própria derrota, ou a do próximo, é preciso passar pelo mal e, se necessário, mergulhar nele: como consegui-lo nessas cidades e nessas ilhas onde o mal está excluído por princípio e por razão de Estado? Aí as trevas estão proibidas, só a luz é admitida. Nenhum vestígio de dualismo: a utopia é, por essência, antimaniqueísta. Hostil à anomalia, ao disforme, ao irregular, tende para o fortalecimento do homogêneo, do modelo, da repetição e da ortodoxia. Mas a vida é ruptura, heresia, abolição das normas da matéria. E o homem, em relação à vida, é heresia em segundo grau, vitória do individual, do capricho, aparição aberrante, animal cismático que a sociedade – soma de monstros adormecidos – pretende reconduzir ao caminho reto. Herético por excelência, o monstro desperto, solidão encarnada, infração da ordem universal, se compraz em sua excepcionalidade, isola-se em seus privilégios onerosos, e é sendo duração que paga o que ganha sobre seus “semelhantes”: quanto mais se distingue deles, mais frágil e perigoso será, pos é à custa de sua longevidade que perturba a paz dos outros e que cria pra si, no seio da cidade, um estatuto de indesejável.

“Nossas esperanças sobre o estado futuro da espécie humana podem reduzir-se a três pontos importantes: a destruição da desigualdade entre as nações, os progressos da igualdade em um mesmo povo e, finalmente, o aperfeiçoamento do homem” (Condorcet). Interessada na descrição de cidades reais, a história, atesta em toda parte e sempre o fracasso e não realização de nossas esperanças, não ratificou nenhuma dessas previsões. Para um Tácito não existe uma Roma ideal.

Ao abolir o irracional e o irreparável, a utopia se supõe também à tragédia, paroxismo e quintessência da história. Qualquer conflito desapareceria em uma cidade perfeita; as vontades seriam estranguladas, apaziguadas e milagrosamente convergentes; reinaria somente a unidade, sem ingrediente do acaso ou da contradição. A utopia é uma mistura de racionalismo pueril e de angelismo secularizado.
Estamos afogados no mal. Não é que todos os nossos atos sejam maus, mas quando cometemos alguns bons, sofremos por haver contrariado nossos movimentos espontâneos: a prática da virtude se reduz a um exercício de penitência, à aprendizagem da mortificação. Satã, o anjo decaído transformado em demiurgo, encarregado da Criação, insurge-se contra Deus e revela-se, neste mundo, mais à vontade e até mais poderoso que Ele; longe de ser um usurpador, é nosso mestre, soberano e legítimo que sobrepujaria o Altíssimo se o universo estivesse reduzido ao homem. Tenhamos, pois, a coragem de reconhecer de quem dependemos. As grandes religiões não se enganaram a esse respeito: o que oferecerem Mara ao Buda, Ahriman a Zoroastro, o Tentador a Jesus, é a Terra, e a supremacia sobre a Terra, realidades efetivamente sob o poder do Príncipe do mundo. Querer instaurar um novo reino, utopia generalizada ou império universal, é fazer seu jogo, cooperar com sua empresa e coroá-la; pois o que deseja acima de tudo é que nos comprometamos com ele, e nos desviemos por sua causa da luz, da nostalgia de nossa antiga felicidade.

Fechado há cinco mil anos, o paraíso foi reaberto, segundo João Crisóstomo, no momento em que cristo expirava; o ladrão pôde penetrar nele, seguido por Adão, finalmente repatriado, e por um número restrito de justos, que vegetavam nos infernos esperando “a hora da redenção”.
Tudo leva a crer que se encontra de novo trancado, e que assim permanecerá por muito tempo. Ninguém pode forçar a entrada: os privilegiados oque desfrutam dele levantaram a barricadas, a partir de um sistema cujas maravilhas puderam observar na Terra. Esse paraíso tem toda a aparência de ser o verdadeiro: no mais profundo de nossas depressões, é com ele que sonhamos, e é nele que gostaríamos nos dissolver. Um impulso súbito nos impele para lá e nos faz mergulhar nele: queremos recuperar em um instante o que perdemos desde sempre, e reparar subitamente o erro de haver nascido? Nada desvela melhor o sentido metafísico da nostalgia. Do que sua impossibilidade de coincidir com algum momento do tempo; por isso ela busca consolo em um passado longínquo, imemorial, refratário aos séculos e como que anterior ao devir. O mal de que sofre – efeito de uma ruptura que remonta aos primórdios – a impede de projetar a idade de ouro no futuro; a que naturalmente concebe é a antiga, a primordial; aspira a essa idade, menos para deleitar-se nela do que para desaparecer, para depositar nela o fardo da consciência. Se retorna à origem dos tempos é para reencontrar o verdadeiro paraíso, objetivo de suas nostalgias. Contrariamente, a nostalgia de onde procede o paraíso deste mundo será desprovida precisamente da dimensão da saudade: nostalgia invertida, falseada e viciada, dirigida para o futuro, obnubilada pelo “progresso”, é replica temporal, metamorfose disparata do paraíso original. Contágio? Automatismo? Esta metamorfose acabou por operar-se em cada um de nós. Quer queiramos ou não, apostamos no futuro, fazemos dele uma panaceia, e, identificando-o ao surgimento de um tempo inteiramente outro no interior do próprio tempo, o consideramos como uma duração inesgotável e contudo terminada, com uma história intemporal. Contradição nos termos, inerente à esperança de um novo reino, de uma vitória do insolúvel no seio do devir. Nossos sonhos um mundo melhor se fundam em uma impossibilidade teórica. O que há de espantoso no fato de que, para justificá-los, seja preciso recorrer a paradoxos sólidos?

Enquanto o cristianismo satisfazia os espíritos, a utopia não podia seduzi-los; mas quando começou a decepcioná-los, ela procurou conquistá-los e instalar-se neles. Já era essa sua intenção no Renascimento, mas só iria consegui-lo dois séculos mais tarde, em uma época de superstições “esclarecidas”. Assim nasceu o Porvir, visão de uma felicidade irrevogável, de um paraíso dirigido no qual o acaso não tem lugar, onde a menor fantasia aparece como uma heresia ou uma provocação. Fazer sua descrição seria entrar nos detalhes do imaginável. A própria ideia de uma cidade ideal é um sofrimento para a razão, uma empresa que honra o coração e desacredita o intelecto. (Como pôde um Platão prestar-se a ela? Estava esquecendo que ele é o predecessor de todas essas aberrações, retomadas e agravadas por Thomas Morus, o fundador das ilusões modernas.) Planejar uma sociedade na qual, segundo uma etiqueta aterradora, nossos atos são catalogados e regulamentados, na qual, por uma caridade levada até a indecência se preocupam com nossos pensamentos mais íntimos, é transportar os tormentos do inferno para a idade de ouro, ou criar, com ajuda do diabo, uma instituição filantrópica. Solares, utópicos, harmônicos – seus nomes horríveis se parecem com seu destino, pesadelo que também nos está reservado, já que nós mesmos o transformamos em ideal.
De tanto louvar as vantagens do trabalho, as utopias deveriam tomar a direção oposta da Gênese. Neste ponto particularmente, são a expressão de uma humanidade absorvida pelo trabalho, orgulhosa em comprazer-se com as consequências da queda, das quais a mais grave é a obsessão pela produtividade. Carregamos com orgulho e ostentação os estigmas de uma raça que adora “o suor da fronte”, que faz dele um sinal de nobreza, que se agita e sofre exultando; daí o horror que nos inspira, a nós os condenados, o eleito que se recusa a trabalhar ou sobressair no que quer que seja. Só aquele que conserva a lembrança de uma felicidade imemorial é capaz dessa recusa que censuramos. Desorientado no meio de seus semelhantes, ele é como eles e, no entanto, não pode comunicar-se com eles; para onde quer que olhe, não se sente daqui; tudo lhe parece usurpação o fato de possuir um nome... Suas empresas fracassam, aventura-se nelas sem convicção: simulacros dos quais o afasta a imagem precisa de um outro mundo. O homem, uma vez excluído do paraíso, para não sofrer e não pensar mais nele, obteve como compensação a faculdade de querer, de tender para o ato, de perder-se nele com entusiasmo, com brio. Mas o abúlico, em seu desapego, em seu marasmo sobrenatural, para que se esforça, para que o objetivo se entrega? Nada o induz a sair de sua ausência. E, no entanto, ele próprio não escapa inteiramente à maldição comum: esgota-se em uma nostalgia, e gasta nela mais energia do que colocamos em nossas proezas.
Quando Cristo assegurou que o “reino de Deus” não era “aqui” nem “lá”, mas dentro de nós, condenava de antemão as construções utópicas para as quais todo “reino” é necessariamente exterior, sem nenhuma relação com nosso eu profundo ou com nossa salvação individual. Quanto mais as utopias nos tenham marcado, mais esperaremos nossa libertação de fora, do curso das coisas ou da marcha das coletividades. Assim se delineou o Sentido da história, cujo sucesso superou o do Progresso, sem acrescentar-lhe nada de novo. Era preciso entretanto abandonar não um conceito, mas uma de suas traduções verbais das quais se abusou. Não nos renovaríamos em matéria ideológica sem ajuda dos sinônimos.
Por mais diversos que sejam seus disfarces, a ideia de perfectibilidade penetrou em nossos costumes: adere a ela mesmo quem a questiona. Ninguém quer aceitar que a história se desenvolve sem nenhum motivo, independente de uma direção determinada, de um objetivo, “Ela tem um objetivo, corre em direção a ele, virtualmente já o atingiu”, proclamam nossos desejos e nossas doutrinas. Quanto mais carregada de promessas imediatas estivar uma ideia, mais chances terá de triunfar. Incapazes de encontrar o “reino de Deus” em si mesmos, ou, melhor dizendo, demasiados astutos para buscá-lo aí, os cristãos o situaram no devir: perverteram o ensinamento para assegurar seu êxito. Além disso, o próprio Cristo alimentou o equívoco; por um lado, respondendo às insinuações dos fariseus, preconizava um reino interior, fora do tempo; por outro, dava a entender a seus discípulos que, estando próxima a salvação, eles e a “geração presente” assistiriam à consumação de todas as coisas. Como compreendeu que os humanos aceitam o martírio como uma quimera, mas não como uma verdade, chegou um acordo com suas fraquezas. Teria agido de outro modo se isso comprometesse sua obra. Mas aquilo que em Cristo era uma concessão ou tática, nos utopistas é um postulado ou paixão.

Um grande passo à frente foi dado no dia em que os homens compreenderam que, para melhor poder atormentar-se uns aos outros, era preciso reunir-se organizar-se em sociedade. Segundo as utopias, eles só conseguiram parcialmente; por isso elas se propõem a ajudá-los, a oferecer-lhes um cenário apropriado ao exercício de uma felicidade completa, exigindo, em contrapartida, que abdiquem de sua liberdade, ou, se a conservam, que a utilizem unicamente para clamar sua alegria em meio aos sofrimentos que se infligem sem cessar. Tal parece ser o sentido da solicitude infernal que têm relação aos homens. Nessas condições, como não imaginar uma utopia às avessas, uma liquidação do bem ínfimo e do mal imenso vinculados à existência de qualquer ordem social? O projeto é atraente, a tentação, irresistível. Como acabar com um conjunto tão vasto de anomalias? Seria preciso algo comparável ao solvente universal que os alquimistas buscavam e cuja eficácia se apreciaria não nos metais, mas nas instituições. Na espera de que a fórmula seja encontrada, observemos de passagem que a alquimia e a utopia, em seus aspectos positivos, têm uma grande semelhança: perseguindo, em domínios heterogêneos, um sonho de transmutação parecido, se não idêntico, uma se apega ao irredutível na natureza, a outra ao irredutível na história. O elixir da vida e a cidade ideal procedem de um mesmo vício de espírito, ou de uma mesma esperança.
Da mesma forma que uma nação tem necessidade de uma ideia insensata que a guie e que lhe proponha fins incomensuráveis em relação a suas capacidades reais, com o objetivo de distinguir-se das outras nações, para humilhá-las e esmagá-las, ou simplesmente para adquirir uma fisionomia única, da mesma maneira uma sociedade só evolui e se afirma se lhe sugerirem ou inculcarem ideias desproporcionados em relação ao que ela é. A utopia desempenha, na vida das coletividades, a função atribuída à ideia de missão na vida dos povos. As ideologias são o subproduto das visões messiânicas ou utópicas, e algo assim como sua expressão vulgar. Em si mesma, uma ideologia não é nem boa nem má. Tudo depende do momento em que é adotada. O comunismo, por exemplo, atua sobre uma nação viril como um estimulante; a impulsiona para a frente e favorece sua expansão; em uma nação vacilante, sua influência poderia ser menos feliz. Nem verdadeiro nem falso, precipita processos e, não foi por causa dele, mas através dele, que a Rússia adquiriu seu vigor presente. Desempenharia o mesmo papel, uma vez instalado no resto da Europa? Seria um princípio de renovação para ela? Gostaríamos de acreditar; em todo caso, a pergunta só comporta uma resposta indireta, arbitrária, inspirada em analogia de ordem histórica. Reflitamos sobre os efeitos do cristianismo em seus primórdios: deu um golpe fatal na sociedade antiga, paralisou-a e extinguiu-a; em compensação, foi uma bênção para os bárbaros, cujos instintos se exasperaram a seu contato. Longe de regenerar um mundo decrépito, só regenerou  os regenerados. Do mesmo modo, o comunismo fará, no imediato, a salvação daqueles que já estão salvos; não poderá trazer uma esperança concreta aos moribundos, e muito menos reanimar cadáveres. Depois de haver denunciado os ridículos da utopia, falemos de seus méritos; e já que os homens se acomodam tão bem ao estado social, e mal distinguem seu mal iminente, façamos como eles, associemos-nos a sua inconsciência.

O mais louvável nas utopias é haver denunciado os danos que causa a propriedade, o horror que representa, as calamidades que provoca. Pequeno ou grande, o proprietário está contaminado, corrompido em sua essência: sua corrupção recai sobre o menor objeto que toca ou de que se apropria. Se ameaçam sua fortuna, se despojam dela, será obrigado a uma tomada de consciência da qual normalmente é incapaz. Para readquirir uma aparência humana, para recuperar sua “alma”, é preciso que o proprietário se veja arruinado e que consinta em sua ruína. A revolução o ajudará. Devolvendo-o à sua nudez primitiva, ela o aniquila no imediato e o salva no absoluto, pois liberta – interiormente, bem entendido – aqueles mesmos que atinge em primeiro lugar: os que possuem bens e riquezas; ela os reclassifica, lhes devolve sua antiga dimensão e os traz de volta para os valores que traíram. Mas antes mesmo de ter o meio ou ocasião de atingi-los, a revolução mantém neles um medo de salutar: perturba seu sono, alimenta seus pesadelos, e o pesadelo é o começo do despertar metafísico. É, por tanto, enquanto agente de destruição que se revela útil; ainda que fosse nefasta, uma coisa a redimiria sempre: só ela sabe que tipo de terror usar para sacudir esse mundo de proprietários, o mais atroz dos mundos possíveis. Toda forma de posse, não tenhamos medo de insistir nisso, degrada, avilta, lisonjeia o monstro adormecido no fundo de cada um de nós. Possuir, nem que seja uma vassoura, considerar qualquer coisa como seu bem, é participar da indignidade geral. Que orgulho descobrir que nada nos pertence, que revelação! Você se considerava o último dos homens, e eis que, de súbito, surpreendido e como que iluminado por sua penúria, você não sofre mais por causa dela; ao contrário, ela se transforma em motivo de orgulho. E tudo o que você deseja é ser tão despojado quanto um santo ou um alienado.

Quando estamos cansados dos valores tradicionais, nos orientamos necessariamente para a ideologia que os nega. E é por sua força de negação que ela seduz, bem mais que por suas fórmulas positivas. Desejar a transformação da ordem social é atravessar uma crise marcada mais ou menos por temas comunistas. Isto é tão verdadeiro hoje, como o foi ontem e o será amanhã. Tudo se passa como se, depois do Renascimento, os espíritos tivessem sido atraídos, na superfície, pelo liberalismo, e, em profundidade, pelo comunismo, que, longe de ser um produto circunstancial, um acidente histórico, é o herdeiro dos sistemas utópicos e o beneficiário de um longo trabalho subterrâneo; de início capricha ou cisma, adquiriria mais tarde o caráter de um destino e de uma ortodoxia. Hoje em dia, as consciências só podem exercitar-se em duas formas de revolta: comunista e anticomunista. No entanto, como não perceber que o anticomunismo equivale a uma fé raivosa, horrorizada ante o futuro do comunismo?

Quando chega a hora de uma ideologia, tudo contribui para seu êxito, até seus próprios inimigos; nem a polêmica nem a polícia poderão deter sua expansão ou retardar seu triunfo; a ideologia quer, e pode, realizar-se, encarnar-se, mas quanto melhor o consiga, mais corre o risco de esgotar-se; uma vez instaurada, perderá seu conteúdo ideal, extenuará seus recursos para, finalmente, comprometendo as promessas de salvação de que dispunha, degenerar em tagarelice ou em espantalho.

A carreira reservada ao comunismo depende da rapidez com que gaste suas reservas de utopia. Enquanto possuí-las, atrairá inevitavelmente todas as sociedades que ainda não o tenham experimenta; recuado aqui, avançando lá, investido de virtudes que nenhuma outra ideologia detém, o comunismo dará a volta ao mundo, substituindo as religiões defuntas ou cambaleantes, e propondo em toda parte às massas modernas um absoluto e digno de seu nada.

Considerado em si mesmo, o comunismo aparece como a única realidade à qual ainda se pode aderir, por menor que seja a ilusão que se tenha sobre o futuro: eis por que, em diversos graus, somos todos comunistas... Mas não é uma especulação estéril julgar uma doutrina fora das anomalias inerentes a sua realização prática? O homem esperará sempre o advento da justiça; para que triunfe, ele renunciará à liberdade, da qual terá saudades depois. O que quer que faça, o impasse espreita seus atos e seus pensamentos, como se fosse não seu termo, mas o ponto de partida, a condição e a chave. Não há forma social nova que seja capaz de salvaguardar as vantagens da antiga: uma soma mais ou menos igual de inconvenientes se encontra em todos os tipos de sociedade. Equilíbrio maldito, estagnação sem remédio, de que sofrem igualmente os indivíduos e as coletividades. As teorias não podem fazer nada, já que o fundo da história é impermeável às doutrinas que marcam sua aparência. A era cristã foi algo muito diferente do cristianismo; e era comunista, por sua vez, não saberia evocar o comunismo enquanto tal. Não existe acontecimento naturalmente cristão, nem naturalmente comunista.

Se a utopia era ilusão hipostasiada, o comunismo, que vai mais longe ainda, será a ilusão decretada, imposta: um desafio à onipresença do mal, um otimismo obrigatório. Dificilmente o aceitará aquele que, graças a experiências e provações vive na embriaguez da decepção e que, a exemplo do redator do Gênese, se nega a associar a idade de ouro ao devir. E não é que despreze os maníacos do “progresso indefinido” e seus esforços para fazer triunfar a justiça neste mundo; mas sabe, para sua desgraça, que a justiça é uma impossibilidade material, um grandioso contrassenso, o único ideal do qual é possível afirmar com certeza que não se realizará jamais, e contra o qual a natureza e a sociedade parecem haver mobilizado todas as suas leis. Estes desacordos, estes conflitos, não pertencem unicamente a um solitário. Com maior ou menor intensidade, nós também os sentimos: não desejamos a destruição desta sociedade conhecendo, por sua vez, as decepções que nos reserva aquela que a substituirá? Mesmo que fosse inútil uma transformação total, uma revolução sem fé é tudo o que ainda se pode esperar de uma época em que ninguém tem mais candura suficiente para ser um verdadeiro revolucionário. Quando, vítimas do frenesi do intelecto, nos entregamos ao do caos, reagimos como um louco em posse de suas faculdades, louco superior à sua loucura; ou como um deus que, em um acesso de raiva lúcida, se deleitasse em pulverizar sua obra e seu ser.

Nossos sonhos de futuro são doravante inseparáveis de nossos temores. A literatura utópica, em seus primórdios, se rebe contra a Idade Média, contra a alta estima que tinha esta pelo inferno e contra o gosto que professava pelas visões de fim do mundo. Dir-se-ia que os sistemas tão tranquilizadores de Campanella e de Morus foram concebidos com a única finalidade de desacreditar as alucinações de uma santa Hildergada. Hoje em dia, reconciliados com o terrível, assistimos a uma contaminação da utopia pelo apocalipse: a “nova terra” que nos anunciam adquire cada vez mais a figura de um novo inferno. Mas, este inferno, nós o aguardamos, consideramos mesmo um dever precipitar sua chegada. Os dois gêneros, o utópico e o apocalíptico, que nos pareciam tão dessemelhantes, se interpenetram, influenciam um ao outro, para formar um terceiro, maravilhosamente apto para refletir a espécie de realidade que nos ameaça e à qual, entretanto, diremos sim, um sim correto e sem ilusão. Será nossa maneira de ser irrepreensíveis ante a fatalidade."

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