quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Visita a Gandhi - GOG (Por Giovanni Papini)

Trecho de Gog, por Giovanni Papini. 
Encontra-se com o português original da obra (1944). 


Visita a Gandhi
 Ahmedabad, 3 de março.

Eu não queria abandonar a India sem ter visto o mais célebre hindú vivo, e fui, ha dois dias ao Satiagraha-Ashram, domicilio de Gandhi. O Maatma me recebeu em um quarto quasi nú, onde êle, sentado no chão, meditava junto de um cêsto imovel. Pareceu-me mais feio e mais descarnado do que aparece nas fotografias.

- O senhor quer saber - disse-me entre outras coisas - porque queremos expulsar os ingleses das Indias. A razão é muito simples: foram os proprios ingleses que fizeram nascer esta idéia essencialmente européa. O meu pensamento se formou durante a minha longa estadia em Londres. Compreendi que nenhum povo europeu suportaria ser administrado e mandado por homens de outro povo. Entre os ingleses, especialmente, esse senso da dignidade e da autonomia nacional está desenvolvidissimo. Não quero ingleses na minha casa precisamente porque me assemelho demais aos ingleses. Os antigos hindus se preocupavam muito pouco com as questões da terra e menos com as de política. Imersos na contemplação do Atman, do Brahma, do Absoluto, só desejavam fundir-se na Alma unica do universo. Para êles, a vida ordinaria, exterior, era um tecido de ilusões e o importante era libertar-se dela o mais cêdo possível, primeiro pelo extase, depois pela morte. A cultura inglesa, de sentido ocidental - importada em consequencia da conquista - mudou o nosso conceito de vida. Digo nosso para dizer dos intelectuais, pois a turba permaneceu, durante séculos, refrataria á mensagem européa da liberdade politica. O primeiro a sentir-se impregnado das idéias ocidentais fui eu e tornei-me o guia dos hindús exatamente por que sou o menos hindú dos meus irmãos. 

"Si o senhor lêr os meus livros e acompanhar a minha propaganda, verá claramente que quatro quintos da minha cultura e de minha educação espiritual e politica são de origem européa. Tolstoï e Ruskin são os meus verdadeiros mestres. O Cristianismo, mais do que o Budismo, me inspirou a minha teoria da não resistencia. Traduzi Platão, admiro Mazzini, meditei sobre Bacon, sobre Carlyle, sobre Böhme, servi-me de Emerson e de Carpenter. As minhas idéias sobre a necessidade da desobediencia procedem de Thoreau, o sabio soltiario de Concord; e a minha campanha contra as maquinas é uma repetição da que os ludistas, quer dizer, os sequazes de Ned Lud, realizaram de 1811 e 1818 na Inglaterra. Finalmente, a poesia do homem belicoso manifestou-se-me lendo o episodio de Margarida no Fausto de Goethe. Como vê, as minhas teorias nada devem á India, veem todas da Europa, e especialmente dos escritores de lingua inglesa. Figure-se que só em Londres, em 1890, estudei a Bhagavad Gita, por indicação de Mrs. Besant, uma inglesa! E ao propugnar, hoje, por uma união entre hindús, maometanos, parsis e cristãos, nada mais faço do que seguir o principio da unidade religiosa, prégada pela Teosofia, creação essencialmente eropéia. Cumpre acrescentar que a minha condenação das castas deriva dos principios de igualdade da Revolução Francesa. 

"A história da Europa no século XIX teve sobre mim uma influencia decisiva. As lutas dos gregos, dos italianos, dos polacos, dos húngaros, dos eslavos do Sul para se subtraírem á dominação estranjeira, abriram-me os olhos. Mazzini foi o meu profeta. A teoria do Home Rule da Irlanda é o modelo do movimento em que eu chamei aqui de Hind Swarai. Introduzi, portanto, na India, um principio absolutamente estranho á mentalidade hindú. Os hindús, homens metafísicos e cordatos, sempre consideraram a politica uma atividade inferior: si é necessario um poder e si ha gente que o queira exercer - pensavam - deixemo-los agir, será um incomodo a menos para nós. O hindú vive no reino do espirito puro, aspira a eternidade. Que importa os governem rajahs indigenas ou imperadores estranjeiros? Por isso suportamos, durante séculos, o dominio mongol e o maometano. A seguir, vieram os franceses, os holandeses, os portugueses, os ingleses; estabeleceram feitorias na costa, avançaram para o interior: deixamo-los fazer. São os europeus, e unicamente os europeus, os responsaveis pelo nosso desejo atual de repelir os europeus. As suas idéias nos transformaram, isto é, desindianizaram, e então, convertidos em discipulos dos nossos amos, nasceu em nós o desejo de já não querermos amos. O que mais saturado está de pensamento inglês é, por isso, o destinado a ser o chefe da cruzada anti-inglesa. Não se trata aqui, como presumem os jornalistas europeus, de uma luta entre o Ocidente e o Oriente. Ao contrario: o europeismo impregnou por tal fórma a india que nos vimos obrigados a levantarmos contra a Europa. Si a India houvesse permanecido puramente hindú, quer dizer, fiel ao Oriente, toda contemplativa e fatalista, nenhum dos nossos teria pensado em sacudir o jugo inglês. No momento em que traí o espirito antigo da minha patria, apareci como o libertador da India. As idéias européias através do meu proselitismo - ótimamente preparado pela cultura inglesa difundida nas nossas escolas - penetrou nas multidões e já não ha remedio. Um hindú autentico póde tolerar a escravidão; um hindu anglicanizado quer ser o dono da India, como os ingleses da Inglaterra. Os maiores anglófilos - como eu era até fins de 1920 - são necessariamente, anti-britanicos. 

"Este é o verdadeiro segredo do que se chama "movimento gandista"; mas que se deveria mais propriamente denominar movimento dos hindús convertidos ao europeismo contra os europeus renegados, isto é, contra os ingleses que morreriam de vergonha si os franceses ou os alemães fossem mandar no seu país, e que, entretanto, pretendem governar, com a desculpa da filantropia, um país que lhes não pertence. Mudastes-nos a alma e já agora nós não queremos saber de vós! Lembra-se do Aprendiz de Mago, de Goethe? Os ingleses despertaram em nós o demonio da politica, que dormia no fundo do nosso espirito de ascetas desinterassados, e já agora não sabem como fazê-lo desaparecer. Peior para êles!"

Havia já alguns minutos que um discipulo entrára no quarto e fizéra, silenciosamente, um sinal ao Maatma. Assim que êle terminou de falar, pus-me de pé para deixá-lo em liberdade e, depois de lhe haver agradecido as inesperadas informações, regressei de automovel para Amedabad.

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