quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Visita a Gandhi - GOG (Por Giovanni Papini)

Trecho de Gog, por Giovanni Papini. 
Encontra-se com o português original da obra (1944). 


Visita a Gandhi
 Ahmedabad, 3 de março.

Eu não queria abandonar a India sem ter visto o mais célebre hindú vivo, e fui, ha dois dias ao Satiagraha-Ashram, domicilio de Gandhi. O Maatma me recebeu em um quarto quasi nú, onde êle, sentado no chão, meditava junto de um cêsto imovel. Pareceu-me mais feio e mais descarnado do que aparece nas fotografias.

- O senhor quer saber - disse-me entre outras coisas - porque queremos expulsar os ingleses das Indias. A razão é muito simples: foram os proprios ingleses que fizeram nascer esta idéia essencialmente européa. O meu pensamento se formou durante a minha longa estadia em Londres. Compreendi que nenhum povo europeu suportaria ser administrado e mandado por homens de outro povo. Entre os ingleses, especialmente, esse senso da dignidade e da autonomia nacional está desenvolvidissimo. Não quero ingleses na minha casa precisamente porque me assemelho demais aos ingleses. Os antigos hindus se preocupavam muito pouco com as questões da terra e menos com as de política. Imersos na contemplação do Atman, do Brahma, do Absoluto, só desejavam fundir-se na Alma unica do universo. Para êles, a vida ordinaria, exterior, era um tecido de ilusões e o importante era libertar-se dela o mais cêdo possível, primeiro pelo extase, depois pela morte. A cultura inglesa, de sentido ocidental - importada em consequencia da conquista - mudou o nosso conceito de vida. Digo nosso para dizer dos intelectuais, pois a turba permaneceu, durante séculos, refrataria á mensagem européa da liberdade politica. O primeiro a sentir-se impregnado das idéias ocidentais fui eu e tornei-me o guia dos hindús exatamente por que sou o menos hindú dos meus irmãos. 

"Si o senhor lêr os meus livros e acompanhar a minha propaganda, verá claramente que quatro quintos da minha cultura e de minha educação espiritual e politica são de origem européa. Tolstoï e Ruskin são os meus verdadeiros mestres. O Cristianismo, mais do que o Budismo, me inspirou a minha teoria da não resistencia. Traduzi Platão, admiro Mazzini, meditei sobre Bacon, sobre Carlyle, sobre Böhme, servi-me de Emerson e de Carpenter. As minhas idéias sobre a necessidade da desobediencia procedem de Thoreau, o sabio soltiario de Concord; e a minha campanha contra as maquinas é uma repetição da que os ludistas, quer dizer, os sequazes de Ned Lud, realizaram de 1811 e 1818 na Inglaterra. Finalmente, a poesia do homem belicoso manifestou-se-me lendo o episodio de Margarida no Fausto de Goethe. Como vê, as minhas teorias nada devem á India, veem todas da Europa, e especialmente dos escritores de lingua inglesa. Figure-se que só em Londres, em 1890, estudei a Bhagavad Gita, por indicação de Mrs. Besant, uma inglesa! E ao propugnar, hoje, por uma união entre hindús, maometanos, parsis e cristãos, nada mais faço do que seguir o principio da unidade religiosa, prégada pela Teosofia, creação essencialmente eropéia. Cumpre acrescentar que a minha condenação das castas deriva dos principios de igualdade da Revolução Francesa. 

"A história da Europa no século XIX teve sobre mim uma influencia decisiva. As lutas dos gregos, dos italianos, dos polacos, dos húngaros, dos eslavos do Sul para se subtraírem á dominação estranjeira, abriram-me os olhos. Mazzini foi o meu profeta. A teoria do Home Rule da Irlanda é o modelo do movimento em que eu chamei aqui de Hind Swarai. Introduzi, portanto, na India, um principio absolutamente estranho á mentalidade hindú. Os hindús, homens metafísicos e cordatos, sempre consideraram a politica uma atividade inferior: si é necessario um poder e si ha gente que o queira exercer - pensavam - deixemo-los agir, será um incomodo a menos para nós. O hindú vive no reino do espirito puro, aspira a eternidade. Que importa os governem rajahs indigenas ou imperadores estranjeiros? Por isso suportamos, durante séculos, o dominio mongol e o maometano. A seguir, vieram os franceses, os holandeses, os portugueses, os ingleses; estabeleceram feitorias na costa, avançaram para o interior: deixamo-los fazer. São os europeus, e unicamente os europeus, os responsaveis pelo nosso desejo atual de repelir os europeus. As suas idéias nos transformaram, isto é, desindianizaram, e então, convertidos em discipulos dos nossos amos, nasceu em nós o desejo de já não querermos amos. O que mais saturado está de pensamento inglês é, por isso, o destinado a ser o chefe da cruzada anti-inglesa. Não se trata aqui, como presumem os jornalistas europeus, de uma luta entre o Ocidente e o Oriente. Ao contrario: o europeismo impregnou por tal fórma a india que nos vimos obrigados a levantarmos contra a Europa. Si a India houvesse permanecido puramente hindú, quer dizer, fiel ao Oriente, toda contemplativa e fatalista, nenhum dos nossos teria pensado em sacudir o jugo inglês. No momento em que traí o espirito antigo da minha patria, apareci como o libertador da India. As idéias européias através do meu proselitismo - ótimamente preparado pela cultura inglesa difundida nas nossas escolas - penetrou nas multidões e já não ha remedio. Um hindú autentico póde tolerar a escravidão; um hindu anglicanizado quer ser o dono da India, como os ingleses da Inglaterra. Os maiores anglófilos - como eu era até fins de 1920 - são necessariamente, anti-britanicos. 

"Este é o verdadeiro segredo do que se chama "movimento gandista"; mas que se deveria mais propriamente denominar movimento dos hindús convertidos ao europeismo contra os europeus renegados, isto é, contra os ingleses que morreriam de vergonha si os franceses ou os alemães fossem mandar no seu país, e que, entretanto, pretendem governar, com a desculpa da filantropia, um país que lhes não pertence. Mudastes-nos a alma e já agora nós não queremos saber de vós! Lembra-se do Aprendiz de Mago, de Goethe? Os ingleses despertaram em nós o demonio da politica, que dormia no fundo do nosso espirito de ascetas desinterassados, e já agora não sabem como fazê-lo desaparecer. Peior para êles!"

Havia já alguns minutos que um discipulo entrára no quarto e fizéra, silenciosamente, um sinal ao Maatma. Assim que êle terminou de falar, pus-me de pé para deixá-lo em liberdade e, depois de lhe haver agradecido as inesperadas informações, regressei de automovel para Amedabad.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Bela Aldeia, Bela Chama / Lepa Sela Lepo Gore (1996)


Sinopse: O ano é 1980. Halil, um muçulmano, e Milan, um sérvio, são amigos na Iugoslávia. Os dois meninos cresceram juntos. Eles moravam perto de um túnel inacabado, o Túnel da União e da Fraternidade, que deveria ligar Em 1980, Halil e Milan são amigos de infância.

Cresceram juntos, morando perto de um túnel inacabado, que deveria ligar Belgrado a Zagreb. Nenhum dos dois tem coragem de entrar lá dentro - um espaço povoado por ogros, fantasmas e monstros.

Doze anos depois, estoura a guerra da Bósnia e os dois, agora adultos, encontram-se em lados opostos. Os soldados sérvios se embriagam e passam à destruição sistemática de aldeias inteiras, assassinando homens, velhos e crianças.

Um dia, um batalhão sérvio é emboscado no túnel por seus inimigos muçulmanos. O cerco dura dias. Presos sob imensa tensão, sem água nem comida, tendo como refém uma jornalista americana, os soldados passam a encenar histórias e trocar idéias sobre assuntos inusitados: a Coca-Cola, o comunismo, os sonhos da juventude, o consumo, a guerra dos sexos.


Comentário:

O filme da Guerra Bósnia do diretor Srjdan Dragojevic "Bela Aldeia, Bela Chama" é um filme surpreendente sobre dois amigos separados devido a uma guerra. Milan é um Sérvio e Halil é um muçulmano. Eles são melhores amigos e apreendemos sobre suas vidas através de suas memórias. O filme é construído fora da sequência, de modo que vemos Milan no hospital e através de vários flashbacks testemunhamos o que levou-o para o hospital. Uma das imagens do filme que destaca-se em minha mente é a inauguração do Túnel da Paz de 1980. Durante a celebração um homem corta seu dedo em vez da fita. E então, somos forçados a nos mover até o presente onde a paz está longe de qualquer circunstância. Os dois amigos, como crianças, com medo de entrar no túnel por temerem um ogro que vive lá dentro. Todos cresceram e, no calor da batalha, Milan e seu esquadrão se escondem dos muçulmanos naquele túnel, presos por dias em um extenuante impasse entre os Sérvios e os muçulmanos. Eles quase se tornam os ogros. Mulan se lembra dos bons momentos com Halil, antes que a guerra estivesse iniciado. Um caminhão de suprimentos médicos dirigido por um viciado em recuperação fica preso também no túnel, junto com uma jornalista americana que está escondida. O filme é muito realista, mas, ao mesmo tempo é apto a nos jogar em um humor negro. Mesmo quando Mulan está no hospital quase sem poder se mover, ele ainda está furioso e convicto para matar um soldado Bósnio que está ao seu lado. Tudo que ele consegue pensar é sobre sua mãe e sua família que está morta, e seu companheiro que está quase morto. Seu outro amigo, o professor, tenta confortá-lo e convencê-lo que a vingança não vale a pena. Daquele ponto em diante o filme se torna mais e mais psicologicamente perturbador. Há tanta coisa neste filme que é difícil descrever a não ser que você já tenha conhecimento sobre o conflito na Bósnia. "Bela Aldeia, Bela Chama" está longe de ser um filme de guerra hollywoodiano. Mesmo que o filme seja contado de uma perspectiva da Sérvia, nenhum ato militar é justificado. Este deve ser um dos filmes mais tristes que já vi. Outra imagem que me assombra, até mesmo depois do fim do filme, é a cena em que o chão está coberto de cabeças e pés de vários corpos, incluindo crianças. Música emocional de acordeão toca ao fundo, de uma maneira natural e brutal da guerra mostrado de uma maneira que nenhum filme Hollywoodiano seria capaz de fazer. "Bela Aldeia, Bela Chama" é um dos melhores e mais subestimados filmes de guerra de todos os tempos. Assista-o para lembrar-se de como terrível e triste a guerra é. É um filme tenso e dramático que continua com você, mesmo depois de terminado. 

sábado, 24 de agosto de 2013

O Ex-Covarde (Nelson Rodrigues)

Entro na redação e o Marcelo Soares de Moura me chama. Começa: - "Escuta aqui, Nélson. Explica esse mistério." Como havia um mistério, sentei-me. Ele começa: - "Você, que não escrevia sobre política, por que é que agora só escreve sobre política?" Puxo um cigarro, sem pressa de responder. Insiste: - "Nas suas peças não há uma palavra sobre política. Nos seus romances, nos seus contos, nas suas crônicas, não há uma palavra sobre política. E, de repente, você começa suas "confissões". É um violino de uma corda só. Seu assunto é só política. Explica: - Por quê?"

Antes de falar, procuro cinzeiro. Não tem. Marcelo foi apanhar um duas mesas adiante. Agradeço. Calco a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Digo: - "É uma longa história." O interessante é que outro amigo, o Francisco Pedro do Couto, e um outro, Permínio Ásfora, me fizeram a mesma pergunta. E, agora, o Marcelo me fustigava: - "Por quê?" Quero saber: - "Você tem tempo ou está com pressa?" Fiz tanto suspense que a curiosidade do Marcelo já estava insuportável.

Começo assim a "longa história": - "Eu sou um ex-covarde." O Marcelo ouvia só e eu não parei mais de falar. Disse-lhe que, hoje, é muito difícil não ser canalha. Por toda a parte, só vemos pulhas. E nem se diga que são pobres seres anônimos, obscuros, perdidos na massa. Não. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os jornais e as revistas, o rádio e a tv. Quase tudo e quase todos exalam abjeção.

Marcelo interrompe: - "Somos todos abjetos?" Acendo outro cigarro: - "Nem todos, claro." Expliquei-lhe o óbvio, isto é, que sempre há uma meia dúzia que se salve e só Deus sabe como. "Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo." E por que essa massa de pulhas invade a vida brasileira? Claro que não é de graça nem por acaso.



O que existe, por trás de tamanha degradação, é o medo. Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados, pelos jovens. Diria Marcelo que estou fazendo uma caricatura até grosseira. Nem tanto, nem tanto. Mas o medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema. Fomos nós que fabricamos a "Razão da Idade". Somos autores da impostura e, por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total.


Sim, os pais têm medo dos filhos, os mestres dos alunos. o medo é tão criminoso que, outro dia, seis ou sete universitários curraram uma colega. A menina saiu de lá de maca, quase de rabecão. No hospital, sofreu um tratamento que foi quase outro estupro. Sobreviveu por milagre. E ninguém disse nada. Nem reitores, nem professores, nem jornalistas, nem sacerdotes, ninguém exalou um modestíssimo pio. Caiu sobre o jovem estupro todo o silêncio da nossa pusilanimidade.

Mas preciso pluralizar. Não há um medo só. São vários medos, alguns pueris, idiotas. O medo de ser reacionário ou de parecer reacionário. Por medo das esquerdas, grã-finas e milionários fazem poses socialistas. Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário. É o medo que faz o Dr. Alceu renegar os dois mil anos da Igreja e pôr nas nuvens a "Grande Revolução" russa. Cuba é uma Paquetá. Pois essa Paquetá dá ordens a milhares de jovens brasileiros. E, de repente, somos ocupados por vietcongs, cubanos, chineses. Ninguém acusa os jovens e ninguém os julga, por medo. Ninguém quer fazer a "Revolução Brasileira". Não se trata de Brasil. Numa das passeatas, propunha-se que se fizesse do Brasil o Vietnã. Por que não fazer do Brasil o próprio Brasil? Ah, o Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem. Há também os que o negam até como valor plástico.

Eu falava e o Marcelo não dizia nada. Súbito, ele interrompe: - "E você? Por que, de repente, você mergulhou na política?" Eu já fumara, nesse meio-tempo, quatro cigarros. Apanhei mais um: - "Eu fui, por muito tempo, um pusilânime como os reitores, os professores, os intelectuais, os grã-finos etc, etc. Na guerra, ouvi um comunista dizer, antes da invasão da Rússia: - "Hitler é muito mais revolucionário do que a Inglaterra." E eu, por covardia, não disse nada. Sempre achei que a história da "Grande Revolução", que o Dr. Alceu chama de "o maior acontecimento do século XX", sempre achei que essa história era um gigantesco mural de sangue e excremento. Em vida de Stalin, jamais ousei um suspiro contra ele. Por medo, aceitei o pacto germano-soviético. Eu sabia que a Rússia era a antipessoa, o anti-homem. Achava que o Capitalismo, com todos os seus crimes, ainda é melhor do que o Socialismo e sublinho: - do que a experiência concreta do Socialismo,

Tive medo, ou vários medos, e já não os tenho. Sofri muito na carne e na alma. Primeiro, foi em 1929, no dia seguinte ao Natal. Às duas horas da tarde, ou menos um pouco, vi meu irmão Roberto ser assassinado. Era um pintor de gênio, espécie de Rimbaud plástico, e de uma qualidade humana sem igual. Morreu errado ou, por outra, morreu porque era "filho de Mário Rodrigues". E, no velório, sempre que alguém vinha abraçar meu pai, meu pai soluçava: - "Essa bala era para mim." Um mês depois, meu pai morria de pura paixão. Mais alguns anos e meu irmão Joffre morre. Éramos unidos como dois gêmeos. Durante 15 dias, no Sanatório de Correias, ouvi a sua dispnéia. E minha irmã Dorinha. Sua agonia foi leve como a euforia de um anjo. E, depois, foi meu irmão Mário Filho. Eu dizia sempre: - "Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário." Teve um enfarte fulminante. Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim. E, por fim, houve o desabamento de Laranjeiras. Morreu meu irmão Paulinho e, com ele, sua esposa Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, a sua sogra, D. Marina. Todos morreram, todos, até o último vestígio.



Falei do meu pai, dos meus irmãos e vou falar também de mim. Aos 51 anos, tive uma filhinha que, por vontade materna, chama-se Daniela. Nasceu linda. Dois meses depois, a avó teve uma intuição. Chamou o Dr. Sílvio Abreu Fialho. Este veio, fez todos os exames. Depois, desceu comigo. Conversamos na calçada do meu edifício. Ele foi muito delicado, teve muito tato. Mas disse tudo. Minha filha era cega.


Eis o que eu queria explicar a Marcelo: - depois de tudo que contei, o meu medo deixou de ter sentido. Posso subir numa mesa e anunciar de fronte alta: - "Sou um ex-covarde." É maravilhoso dizer tudo. Para mim, é de um ridículo abjeto ter medo das Esquerdas, ou do Poder Jovem, ou do Poder Velho ou de Mao Tsé-tung, ou de Guevara. Não trapaceio comigo, nem com os outros. Para ter coragem, precisei sofrer muito. Mas a tenho. E se há rapazes que, nas passeatas, carregam cartazes com a palavra "Muerte", já traindo a própria língua; e se outros seguem as instruções de Cuba; e se outros mais querem odiar, matar ou morrer em espanhol - posso chamá-los, sem nenhum medo, de "jovens canalhas".


RODRIGUES, Nélson. In A cabra vadia (novas confissões), Livraria Eldorado Editora S.A., Rio de Janeiro, s/data, págs. 7-10.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Príncipe Charles e o Tradicionalismo

Temenos foi desde o início, de certo ponto, um jornal Tradicionalista. O jornal atraiu a atenção de Sir Laurens van der Post, um amigo Sul Africano e seguidor de Jung e previamente ambientalista. Van der Post foi por muitos anos um amigo próximo ao Príncipe Charles, o herdeiro do trono Britânico, e tem sido visto como um mentor espiritual do Príncipe Charles. Em 1992, van der Post mostrou o jornal Temenos ao Príncipe, que gostou o suficiente para querer conhecer Raine, a fundadora do jornal. O Príncipe, em seguida, incentivou-a para criar a Academia Temenos, fazendo parte da Fundação do Príncipe, um órgão que atua como um guarda-chuva de seus projetos culturais.

Príncipe Charles é mais anti-modernista do que um tradicionalista, embora, evidentemente, admira Burckhardt e suas influencias Tradicionalistas são cada vez mais visíveis em alguns de seus discursos. Em 2000, por exemplo, na sua posição de Alto Comissário da Igreja da Escócia, o príncipe Charles se dirigiu à Assembléia Geral da Igreja, como segue:

"Estamos cada vez mais imersos em uma era secular que está em perigo de ignorar, ou esquecer, todo o conhecimento do sagrado e espiritual, e todos os princípios de ordem e harmonia que se encontram no centro do universo... Tenho o maior respeito pelos trabalhos da mente racional... mas o risco inerente... é que estamos em perigo de desequilibrar nossas vidas... A Tradição e a sabedoria perene que subjaz nosso mais profundo entendimento do mundo visível e invisível, está sendo desvalorizada ou ignorada."

O Tradicionalismo pode também estar por trás de uma abordagem do Islam que é muito mais simpática do que é na vida pública britânica. Em 1993, em um discurso dado na abertura do Centro Oxford para Estudos Islâmicos, do qual o Príncipie Charles é patrono, ele falou vigorosamente contra os mal-entendidos e os temores ocidentais ao Islam, sublinhando a importância da "visão monoteísta comum" do Islam e do Cristianismo e falando sobre a necessidade de "além de uma dimensão materialista, uma dimensão metafísica nas nossas vidas". A reação a esse discurso mostra as dificuldades encontradas pelo Tradicionalismo Suave em todos lugares: o jornal de circulação em massa, Evening Standard, informou sobre o discurso sob o título  "Charles ataca as mentiras de Saddam Hussein", concentrando-se em uma referência local e ignorando a substância quase inteiramente  a substância do discurso do Príncipe Charles. Não foi todos os jornais britânicos que tomaram essa linha, é claro, mas no final, o dicurso fez mais a imagem do Príncipe Charles no mundo islâmico do que para a imagem do Islam na Grã-Bretanha.

A organização mais importante dentro da Fundação do Príncipe do Instituto Temenos é o Instituto de Arquitetura do Príncipe Walles (fundada em 1992), que, como o próprio Príncipe  é mais anti-modernista do que Tradicionalista. A outra organização educacional, entretanto é, inteiramente Tradicionalista. Este é o Programa de Artes Islâmicas Visuais e Tradicionais (VITA), que foi fundada em 1984 por Keith Critchlow e se juntou a Fundação do Príncipe em 1993. VITA oferece o mestrado em artes, mestrado em filosofia e cursos de pós doutorado, atraindo certa de vinte estudantes por ano. Os cursos são extremamente práticos, ensinando os alunos a produzirem trabalhos impressionantes - miniaturas seguindo o padrão Mogul, telhas seguindo o padrão Ottomano e mosaicos com caligrafia e geometria de inspiração Islamica. Na medida em que o elemento teórico  é puramente Tradicionalista - obras do Guenon, Schuon, Coomarasawamy e outros escritores do tipo. Os tutores de visita incluía Nasr e Lings. As reações de alunos do VITA para o componente Tradicionalista do seu curso variam: alguns sentem que foram enganados (não é isso que eles se inscreveram), alguns aceitam uma abordagem Tradicionalista às artes, em maior ou menor grau, e alguns são suficientemente interessados em ir mais longe, ocasionalmente ingressar Maryamiyya, que é bem representado entre os docentes VITA.

[...]


Existe limites, entretanto, o que mesmo o Príncipe Charles pode fazer pelo Tradicionalismo no Ocidente contemporâneo. A maior parte da imprensa popular britânica recebe rotineiramente seu ponto de vista e suas atividades com uma mistura de hostilidade e ridicularização, mesmo em um artigo simpático pode terminar da seguinte forma: "É evidente que alguns de seus súditos estão cientes que as teorias do Príncipe Charles são estranhas, se não malucas. O aspecto filosófico e espiritual de sua cruzada [contra o materialismo] é considerada ou constrangedora ou sem sentido em algumas partes do reino."


Trecho do livro Contra o Mundo Moderno: Tradicionalismo e a História Secreta do Intelectualismo do Século XX - Mark Sedgwick 

terça-feira, 13 de agosto de 2013

A Culpa Probabilística (Aleksandr Solzhenitsyn)



"Sucede que nesse ano de sinistra memória, num discurso que se tornou célebre nos círculos especializados, Andrei Ianuariévtch Vichinski, fazendo apelo ao espírito flexível da dialética (que não é permitida aos simples súditos do Estado, nem agora às máquinas eletrônicas, que dado que para eles o sim é sim, e o não é não), lembrou que, para a humanidade, nunca é possível estabelecer a verdade absoluta, mas apenas a verdade relativa. E vai daí deu um passo que os juristas metafísicos não tinham ousado dar em dois mil anos: o de que, em consequência, a verdade estabelecida pela instauração do processo e pelo próprio processo não pode ser absoluta, mas simplesmente relativa. Assim, ao assinar uma sentença de fuzilamento nós nunca podemos estar absolutamente convictos de executar o culpado, mas só com um certo grau de aproximação, baseados em certas suposições, num certo sentido. Daí a conclusão mais prática: a de que é tempo perdido buscar provas documentais absolutas (elas são todas relativas) e testemunhas irrefutáveis (elas podem contradizer-se). Quanto às provas relativas, ou aproximativas, o juiz pode muito bem obtê-las mesmo sem documentos, sem sair do seu gabinete , “apoiando-se não só na sua inteligência, mas também na sua intuição de membro do Partido nas suas forças morais” (isto é, na superioridade do homem que dormiu, que está saciado e não foi espancado ) “e no seu caráter” (ou seja, na sua vontade ou crueldade)."


Alexander Soljenítsin - Arquipélago Gulag 

domingo, 11 de agosto de 2013

O Navio dos Tolos (Ted Kaczynski)

Era uma vez, um capitão e os imediatos de um navio que ficaram tão vaidosos de sua marinheiraria, tão cheios de insolência e tão impressionados com eles mesmos, que eles enlouqueceram. Eles viraram o navio para o norte e velejaram até eles encontrarem com icebergs e campos de gelo, e eles continuaram a velejar para o norte para águas mais e mais perigosas, somente para dar-lhes oportunidades para realizarem façanhas cada-vez-mais-brilhantes de marinheiraria.

À medida que o navio alcançava latitudes cada vez mais altas, os passageiros e a tripulação ficaram cada vez mais desconfortáveis. Eles começaram a terem disputas entre eles e a se queixarem das condições em que viviam.



"Meus ossos tremem", disse um marinheiro hábil, "se essa não é a pior viagem que eu já estive. O convés está escorregadio com gelo; quando eu estou de vigia o vento corta pela minha jaqueta como uma faca; toda vez que eu enrolo as velas eu quase congelo meus dedos; e tudo que eu ganho com isso são miseráveis cinco xelins por mês!"

"Você acha que está mal!" disse uma dama passageira. "Eu não consigo dormir à noite por causa do frio. As damas nesse navio não têm a mesma quantia de cobertores do que os homens. Não é justo!"

Um marinheiro mexicano soou junto: "¡Chingado! Eu só estou ganhando a metade do salário dos Anglo marinheiros. Nós precisamos de bastante comida para nos mantermos quentes nesse clima, e eu não estou ganhando a minha parte; os Anglos ganham mais. E o pior de tudo é que os imediatos sempre me dão ordens em Inglês ao invés de em Espanhol."

"Eu tenho mais razão para reclamar do que todos," disse um marinheiro Índio Americano. "Se os cara-pálida não tivessem me roubado de minhas terras ancestrais, eu nem estaria nesse navio, aqui entre icebergs e ventos árticos. Eu só estaria remando em uma canoa em um lago agradável e plácido. Eu mereço compensação. No mínimo, o capitão deveria permitir que eu organizasse um jogo de dados para que eu pudesse ganhar algum dinheiro."

O contramestre falou: "Ontem o primeiro imediato me chamou de "fruta" só porque eu chupo paus. Eu tenho direito chupar paus sem ser chamado de nomes por isso!"

"Não são apenas os humanos que são maltratados nesse navio," exclamou um amante de animais entre os passageiros, sua voz tremendo de indignação. "Ora, semana passada eu vi o segundo imediato chutar o cachorro que vive no navio duas vezes!"

Um dos passageiros era um professor universitário. Apertando suas mãos ele exclamou,

"Isso tudo é terrível! É imoral! É racismo, sexismo, especismo, homofobia, e exploração da classe trabalhadora! É discriminação! Nós temos que ter justiça social: Salários iguais para o marinheiro Mexicano, maiores salários para todos os marinheiros, compensação para o Índio, cobertores iguais para as damas, um direito garantido para chupar paus, e não mais chutar o cachorro!"

"Sim, sim!" gritaram os passageiros. "Ai-ai!" gritou a tripulação. "É discriminação! Nós temos que exigir nossos direitos!"

O camaroteiro limpou sua garganta.

"Ha-ham. Todos vocês têm boas razões para se queixar. Mas me parece que o que nós realmente precisamos fazer é virar esse navio e rumar de volta para o sul, porque se nós continuarmos indo para o norte nós com certeza iremos cedo ou tarde naufragar, e então seus salários, seus cobertores, e seu direito de chupar paus não vão te adiantar nada, porque nós todos iremos afogar."

Mas ninguém prestou atenção nele, porque ele era apenas o camaroteiro.

O capitão e os imediatos, de seus postos na popa, estavam observando e ouvindo. Agora eles sorriam e piscavam-se entre si, e com um gesto do capitão o terceiro imediato desceu da popa, passeou para onde os passageiros e a tripulação estavam reunidos, e abriu caminho entre eles. Ele fez uma expressão muito séria em sua face e disse exatamente assim:

"Nós oficiais temos que admitir que algumas coisas realmente indesculpáveis têm acontecido nesse navio. Nós não havíamos percebido o quão ruim a situação estava até ouvirmos suas queixas. Nós somos homens de boa vontade e queremos fazer o certo para vocês. Mas - bem - o capitão é um tanto conservador e tem seus modos, e talvez tenha que ser cutucado um pouco antes dele fazer quaisquer mudanças substanciais. Minha opinião pessoal é que se vocês protestarem vigorosamente - mas sempre pacificamente e sem violar quaisquer das regras do navio - vocês irão tirar o capitão da inércia e forçá-lo a ele dar atenção aos problemas dos quais vocês se queixam tão justamente."

Tendo dito isso, o terceiro imediato dirigiu-se de volta para a popa. Enquanto ele ia, os passageiros e a tripulação gritaram para ele, "Moderado! Reformista! Bom-liberal! Bobo do capitão!" Mas contudo eles fizeram como ele disse. Eles se reuniram em um grupo ante a popa, gritaram insultos aos oficiais, e exigiram seus direitos: "Eu quero maiores salários e melhores condições de trabalho," clamou o marinheiro hábil. "Cobertores iguais para as mulheres," clamou a dama passageira. "Eu quero receber minhas ordens em Espanhol," clamou o marinheiro Mexicano. "Eu quero o direito de organizar um jogo de dados," clamou o marinheiro Índio. "Eu não quero ser chamado de fruta," clamou o contramestre. "Sem mais chutar o cachorro," clamou o amante de animais. "Revolução agora," clamou o professor.

O capitão e os imediatos se amontoaram e deliberaram por vários minutos, piscando, concordando com a cabeça e sorrindo uns aos outros enquanto isso. Então o capitão deu um passo à frente da popa e, com uma grande demonstração de benevolência, anunciou que o salário do marinheiro hábil seria aumentado para seis xelins por mês; o salário do marinheiro Mexicano seria aumentado para dois-terços dos salários dos Anglo marinheiros, e a ordem para enrolar as velas seria dada em Espanhol; as damas passageiras iriam receber um cobertor a mais; o marinheiro Índio seria permitido de organizar um jogo de dados nos Sábados à noite; o contramestre não seria chamado de fruta contanto que ele mantivesse a sua chupação de pau estritamente privada; e o cachorro não seria chutado a menos que ele fizesse algo realmente malcriado, como roubar comida da cozinha do navio.

Os passageiros e a tripulação celebraram essas concessões como uma grande vitória, mas na manhã seguinte, eles estavam novamente se sentindo insatisfeitos.

"Seis xelins por mês é uma ninharia, e eu ainda congelo meus dedos quando enrolo as velas," resmungou o marinheiro hábil. "Eu ainda não estou ganhando os mesmos salários dos Anglos, ou comida suficiente para esse clima," disse o marinheiro Mexicano. "Nós mulheres ainda não temos cobertores suficientes para nos manterem aquecidas," disse a dama passageira. Os outros tripulantes e passageiros exprimiram queixas similares, e o professor os encorajou.

Quando eles terminaram, o camaroteiro falou - mais alto dessa vez para que os outros não pudessem ignorá-lo facilmente:

"É realmente terrível que o cachorro seja chutado por roubar um pedaço de pão da cozinha do navio, e que as mulheres não tenham cobertores iguais, e que o marinheiro hábil tenha seus dedos congelados; e eu não vejo porque o contramestre não deva chupar paus se ele quiser. Mas olhem quão densos os icebergs estão agora, e como o vento sopra cada vez mais severo! Nós temos que virar esse navio de volta para o sul, porque se nós continuarmos indo para o norte nós iremos nos naufragar e afogar."

"Oh, sim," disse o contramestre, "É realmente horrível que nós continuemos rumando ao norte. Mas porque eu tenho que continuar chupando paus no armário? Porque eu tenho que ser chamado de fruta? Eu não sou bom como todos os outros?"

"Velejar ao norte é terrível," disse a dama passageira. "Mas você não vê? É exatamente por isso que as mulheres precisam de mais cobertores para mantê-las aquecidas. Eu exijo cobertores iguais para as mulheres agora!"

"É realmente verdade," disse o professor, "que velejar para o norte impõe grandes apuros em todos nos. Mas mudar o rumo em direção ao sul seria irrealístico. Você não pode voltar o relógio. Nós devemos encontrar um modo maduro de lidar com a situação."

"Olhem," disse o camaroteiro, "Se nós deixarmos esses quatro loucos lá na popa fazerem como querem, nós todos nos afogaremos. Se nós conseguirmos retirar esse navio do perigo, então nós poderemos nos preocupar com as condições de trabalho, cobertores para mulheres, e o direito de chupar paus. Mas primeiro nós temos que virar essa embarcação para o outro lado. Se alguns de nós nos juntarmos, fizermos um plano, e demonstrarmos alguma coragem, nós podemos nos salvar. Não seria preciso muitos de nós - seis ou oito dariam. Nós poderíamos atacar a popa, atirar aqueles lunáticos ao mar, e virar o navio para o sul."

O professor elevou seu nariz e disse austeramente, "Eu não acredito em violência. É imoral."

"Não é ético usar violência jamais," disse o contramestre.

"Eu tenho pavor de violência," disse a dama passageira.

O capitão e os imediatos estavam observando e ouvindo durante tudo aquilo. A um sinal do capitão, o terceiro imediato desceu para o convés principal. Ele passou pelos passageiros e a tripulação, dizendo que ainda haviam muitos problemas no navio.

"Nós fizemos muito progresso," disse ele, "Mas resta muito ainda a ser feito. As condições de trabalho para o marinheiro hábil ainda são duras, o Mexicano ainda não está ganhando os mesmos salários dos Anglos, as mulheres ainda não têm o mesmo tanto de cobertores que os homens, o jogo de dados aos Sábados à noite do Índio é uma compensação insignificante por suas terras perdidas, é injusto para o contramestre que ele tenha que manter sua chupação de pau no armário, e o cachorro ainda é chutado às vezes."

"Eu acho que o capitão precisa ser cutucado novamente. Iria ajudar se vocês todos fizessem outro protesto - contanto que ele permaneça não-violento."

Enquanto o terceiro imediato caminhava de volta à popa, os passageiros e a tripulação gritaram insultos para ele, mas eles mesmo assim fizeram o que ele disse e se reuniram à frente do convés da popa para outro protesto. Eles discursaram e se enfureceram e brandiram seus punhos, e eles até mesmo atiraram um ovo podre no capitão (que ele se esquivou habilmente).

Após ouvir as queixas, o capitão e os imediatos se amontoaram para uma conferência, durante a qual eles piscaram e ficaram amplamente risonhos entre eles. Então o capitão deu um passo à frete do convés da popa e anunciou que seria dado luvas ao marinheiro hábil para manter seus dedos aquecidos, o marinheiro Mexicano iria receber salários iguais a três-quartos dos salários de um Anglo marinheiro, as mulheres iriam receber mais um cobertor, o marinheiro Índio iria poder organizar um jogo de dados nas noites de Sábados e Domingos, o contramestre seria permitido a chupar paus após escurecer, e ninguém poderia chutar o cachorro sem permissão especial do capitão.

Os passageiros e a tripulação estavam em êxtase sobre essa grande vitória revolucionária, mas pela manhã seguinte eles estavam novamente se sentindo insatisfeitos e começaram a resmungar sobre os mesmos velhos sofrimentos.

O camaroteiro dessa vez estava ficando furioso.

"Seus tolos malditos!" ele gritou. "Vocês não vêem o que o capitão e os imediatos estão fazendo? Eles estão mantendo vocês ocupados com suas queixas triviais sobre cobertores e salários e o cachorro sendo chutado para que vocês não pensem sobre o que realmente está errado com esse navio --- que ele está indo cada vez mais longe para o norte e nós todos iremos nos afogar. Se somente alguns poucos de vocês recuperarem a razão, se juntarem, e atacarem o convés da popa, nós poderemos virar esse navio de volta e nos salvarmos. Mas tudo o que vocês fazem é choramingar sobre questões insignificantes e triviais como condições de trabalho e jogos de dados e o direito de chupas paus."

Os passageiros e a tripulação estavam exasperados.

"Insignificantes!!" gritou o Mexicano, "Você acha que é razoável que eu ganhe somente três-quartos dos salários de um Anglo marinheiro? Isso é trivial?"

"Como você pode chamar minha queixa de trivial?" gritou o contramestre. "Você não sabe quão humilhante é ser chamado de fruta?"

"Chutar o cachorro não é uma "questão insignificante e trivial!" berrou o amante de animais. "É insensível, cruel, e brutal!"

"Tudo bem então," respondeu o camaroteiro. "Essas questões não são insignificantes e triviais. Chutar o cachorro é cruel e brutal e é humilhante se chamado de fruta. Mas em comparação com o nosso problema real - em comparação com o fato de que o navio ainda está rumando ao norte - suas queixas são insignificantes e triviais, porque se nós não virarmos esse navio logo, nós todos iremos nos afogar."

"Fascista!" disse o professor.

"Contra-revolucionário!" disse a dama passageira. E todos os passageiros e a tripulação soaram um após o outro, chamando o camaroteiro de fascista e de contra-revolucionário. Eles o afastarampra longe e voltaram a resmungar sobre salários, e sobre cobertores para mulheres, e sobre o direito de chupar paus, e sobre como o cão era tratado. O navio continuou a navegar para o norte, e após um tempo ele foi esmagado entre dois icebergs e todos morreram.



Ted Kaczynski, 1999

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Suécia: O Novo Totalitarianismo (Por Roland Huntford)

As palavras dos profetas do apocalipse são perversamente fascinante para os homens que amam se auto-flagelar. Portanto, quase não surpreende que, em toda a literatura de predições que floresceu com a ciência, as obras sobre lamentações conseguiram maior fama. Duas visões pessimistas do futuro já se tornaram folclore; dois pesadelos clássicos que muito provavelmente nos espera, dois esboços de uma prisão que parecem feitas para erguer-se em torno de nós mesmos com nossa ingenuidade desastrosa. As obras são, é claro, 1984 de George Orwell e Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley.

Admirável Mundo Novo foi publicado pela primeira vez em 1932; Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, em 1949. O tempo já mostrou o quão proféticos esses escritos são. Ambos adivinharam algo que agora está se tornando incômodo e aparente: a de que o avanço da ciência está produzindo um novo tipo de classe dominante, com poderes desconhecidos antes. Ambos predisseram a subserviência final dos seres humanos a um híbrido revolucionário de manipulação tecnológica e de gestão política.




Mas, embora ambos aparentam ser semelhantes, Admirável Mundo Novo parece mais aplicável ao Ocidente no nosso tempo. Enquanto 1984 descreve a conclusão lógica de uma ditadura Comunista, o clímax da Revolução Bolchevique, como se mostrou, Admirável Mundo Novo apresenta a corrupção final do estilo de vida ocidental. Esse é o cerne da diferença. Orwell postula um reino de terror para garantir a posição da nova classe dominante, mas Huxley supõe que são os avanços científicos que os trazem para o poder e também, necessariamente, induzem a uma mudança da mentalidade, de modo que a compulsão física é desnecessária.

Huxley, embora que descreva que certos desenvolvimentos estão se tornando familiar, assume a necessidade das mudanças políticas e se concentra nos resultados humanos. Se tornou um clichê dizer que este ou aquele fenômeno é um pedaço do Admirável Mundo Novo, e isso se tornou tão evidente ao ponto de ser banal que certos aspectos se mova em direção de sua realização no Ocidente. Nós demos os primeiros passos para os bebês de proveta e a engenharia genética; cultos de drogas alucenógenas e suas "viagens", da mesma forma que os habitantes do Admirável Mundo Novo tomam umas "férias" com o "soma; atitudes mecânicas ao sexo; a mutabilidade do passado e a adoração da tecnologia. Mas para focar em tudo isso, com suas várias facetas desenhadas num só sistema, é uma coisa bastante difícil.


E ainda assim, muita das necessidades científicas já estão conosco. Nós temos contraceptivos infalíveis, comunicação ilimitada, energia elétrica e aparelhos tecnológicos em abundância. Sua correta aplicação espera somente pela máquina social eficiente: ciência, como sempre, está muito a frente da política.

A vitória da tecnologia sobre o homem, diz Huxley, em uma de suas edições posteriores do seu romance, depende somente de um governo totalitário altamente centralizado. Mas, ele diz, não há nenhuma razão para que o novo totalitarianismo seja semelhante ao antigo. O governo através do uso de esquadrões ... não é meramente desumano.... é comprovadamente ineficiente, e em uma era de tecnologia avançada, ineficiência é um pecado contra o Espírito Santo.    Um estado totalitário realmente eficiente seria aquele que o todo-poderoso chefe político e seu exército de administradores  controlasse a população de escravos sem precisar do uso da força, pois eles amam a sua servidão.

De todos os povos, são os suecos que estão mais próximos a este estado de coisas. Eles possuem todo o fundo e as predileções necessárias. Fora a Russia, somente eles compreenderam a necessidade de adaptar a política à tecnologia, sem se preocupar com dúvidas ou restrições. Eles oferecem o primeiro exemplo de um sistema que cumpre a profecia de Huxley. Um acidente histórico e idiossincrasias nacionais levaram a Suécia à frente no caminho para o Admirável Mundo Novo. Mas mesmo sendo isolada, inata e não totalmente ocidental, ela apresenta um estado que não pode ser descartado como algo estranho e excêntrico, um curioso a ser examinado, que não implica nada para o resto de nós. Tudo que está entre nós e a Suécia é um certo escudo protetor garantido pela herança da Europa Ocidental. Mas ele é frágil e está sendo corroído de dentro pra fora. Observar os Suecos pode ser observar nosso futuro.

Para começar, diza Huxley, o Admirável Mundo Novo depende da segurança econômica; sem isso, o amor a servidão é impossível. E neste aspecto, a fundação do "novo totalitarianismo" na Suécia está bem avançado. Ela resolveu o problema da segurança e aboliu os enclaves da angústia dentro de uma prosperidade coletiva. Ela foi ajudada por um século e meio de paz, isolação e neutralidade, por ser pequeno e facilmente governado e por ser povoado nas proporções de seus recursos naturais.

Segurança econômica por si só, não implica necessariamente um amor de servidão. São necessárias outras condições: do lado dos governantes, uma profunda compreensão da interação entre economia e poder, do lado dos governados, submissão à autoridade e uma reverência aos especialistas. Além disso, em ambos os casos, uma aversão a individualidade, um instinto para o coletivo, uma suspeita de instituições parlamentares, a adoração do Estado e uma preferência para o governo  burocrata e não por políticos.

Durante toda a sua história, os suecos têm consistentemente cumprido estas especificações. Foi assim que se deu o estabelecimento tecnopolítico que levou tomou o poder na Suécia por uma revolução científica e industrial que encontrou uma população singularmente maleável para manipular, e que tem sido capaz de alcançar resultados rápidos e quase indolor. A Suécia de 1973 carrega pouca semelhança a si mesma de 1930, da mesma forma como a União Soviética de hoje comparado a Rússia czarista. Foi nos últimos quarenta anos, particularmente desde 1950, que a metamorfose sueca ocorreu.

É o produto do Partido Social Democrata, que chegou ao poder em 1932 e foi continuamente se dividindo para manter-se no governo, no poder por mais de quatro décadas. Seu sistema provou ser uma ferramenta incomparável para aplicar a tecnologia na sociedade. Eles mudaram a natureza do governo, tornando-a uma questão de economia e tecnologia somente.  Os políticos perderam a sua importância na Suécia, suplantados por um tipo de oligarquia tecnocrática, que aparentemente é indiscutível, porque seus princípios são universalmente aceitos. Daí em diante, as mudanças da composição política é pouco provável pois significa mudanças nas circunstâncias atual, o mesmo desenvolvimento, então, é de se esperar de qualquer partido que tome o poder.

Visualizar isso é preocupante. Não é como se os suecos eram dotados de originalidade na política. Eles são imitadores e assimiladores. Eles não possuem chaves mágicas. Eles mostraram que já existem os meios para construir a fundação do Admirável Mundo Novo. Neste sentido, eles demonstraram que Huxley não previu algo muito distante.

Segurança [ele diz no referido comentário sobre Admirável Mundo Novo] tende muito rapidamente ser adquirida. Sua conquista é meramente superficial, uma revolução externa. O amor à servidão não pode ser estabelecida tão facilmente somente como resultado de uma revolução pessoal na mente e no corpo humano. Para trazer essa revolução, é necessário, entre outras, as seguintes descobertas e invenções. Primeiro, uma técnica muito melhorada para o condicionamento infantil e, depois, uma ajuda de medicamentos, como a escopolamina. Segundo, uma ciência completamente desenvolvida sobre as diferencias humanas, permitindo o governo atribuir qualquer individuo para seu lugar propício na hierarquia social e econômica. (Pinos redondos em buracos quadrados tendem a ter pensamentos perigosos sobre o sistema social e podem infectar os outros com seus descontentamentos). Terceiro (a realidade, mesmo Utópica, há uma necessidade das pessoas sentirem que precisam de férias frequentemente), um substituto para o álcool e outros narcóticos, algo menos nocivo e que dê mais prazer que um gin ou heroína.  E quarto (mas este seria um projeto a longo prazo, o que levaria gerações de controle totalitário para levar a uma conclusão bem-sucedida) um sistema infalível de eugenia, destinado a padronizar o produto humano e, assim, facilitar a tarefa dos gestores.

A concretização dos suecos que tem mostrado que isso pode ser feito sem estas manifestações de perfeição. Eles mostraram que através da "revolução da mente humana e do corpo" pode ser realizada através de, num grau notável, métodos já disponíveis. Eles demonstraram, por exemplo, que a doutrinação relativamente bruta oferecida pela televisão e a educação convencional podem propor grandes possibilidades, fornecidas apenas se houver um controle centralizado e efetivo de ambos. Eles provaram o quão poderosos são os agentes que induzem o amor a servidão. Eles são os primeiros Novos Totalitários.

Na busca para que as profecias sejam cumpridas, é útil fazer uma excursão em 1984. Os suecos têm demonstrado o poder da manipulação semântica chamado Novilíngua: a mudança das palavras para que signifique outra coisa. Desta forma o pensamento pode ser direcionado, e conceitos indesejáveis eliminados, porque o meio de se expressar foram removidos. "Liberdade" ainda não existe em Sueco, como na criação do Ministério da Verdade de Orwell, significa exatamente "escravidão", mas na Suécia já implica em "submissão", e uma palavra poderosa do vocabulário da oposição foi assim neutralizada. Da mesma maneira, é extremamente difícil falar de forma negativa para o Estado, porque as palavras já carregam em si como algo positivo.

Mas, por outro lado, Admirável Mundo Novo já é suficiente. "A civilização industrial somente é possível" diz Mustapha Mond, "quando não existe a auto-negação. A auto-indulgência deve ser levada ao seu limite pela higiene e a economia. Caso contrário, as rodas param de girar." Isto é precisamente o que os governantes da Suécia estão tentando dizer, embora não tão diretamente, mas sim com uma maior verbosidade.
Os suecos descobriram outros dispositivos, extremamente úteis para induzir o "amor à servidão", na manipulação da sexualidade e o apoio oficial nas mudanças na moral. É um erro pensar que os suecos são particularmente avançados ou emancipados. Os ingleses não são menos sexualmente livres. Mas o que diferencia a Suécia é que a moralidade tornou-se uma preocupação do governo, onde em qualquer outro lugar ela é independente e que cresce com as mudanças dentro da sociedade.  

O crime máximo em Admirável Mundo Novo é se desviar da norma. A norma é inocente de éticas e moralidade. A situação já é uma doutrina na lei sueca. Foi-se a ideia do que é certo ou errado, ou sobre o conteúdo moral de uma ação. O crime agora é definido como um desvio social. O teste para saber se uma ofensa é punível somente depende se esta acarreta efeitos constrangedores sobre o coletivo. Analogamente, nas esferas não criminais o pior tipo de má-educação é ser diferente. A Suécia, assim como na Russia Soviética, pertence a um grupo de países que a "individualidade" é um termo pejorativo.

Tudo isso não é porque a Suécia é tão avançada, mas porque, em todos os sentidos, exceto o puramente tecnológico, ela é muito para trás. A Suécia é uma relíquia da Idade Média, um estado de corporações e comunas, e os suecos são povos medievais que vivem apenas como membros de um grupo. É uma situação ideal para a encarnação de Admirável Mundo Novo.


Assim como os governantes do Admirável Mundo Novo, os gestores da Suécia aboliram a história, a fim de cortar fora o passado e, dessa forma, desorientar o sentido do tempo para tornar as pessoas mais fáceis de serem manipuladas. Mas os líderes Suecos, de alguma forma, atuam historicamente e, com o controle privilegiado de Huxley, pelo menos eles estão conscientes de suas raízes históricas.


Trecho do livro Os Novos Totalitários por Roland Huntford 


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O Retorno da Religião (Roger Scruton)

O Retorno da Religião - Roger Scruton 

Confrontado com o espetáculo das crueldades perpetradas em nome da fé, Voltaire gritou a famosa frase 'Ecrasez l'infame!'. Dezenas de pensadores iluministas seguiu-o, declarando a religião organizada o inimigo da humanidade, a força que divide o crente do infiel e que tanto excita como autoriza o assassinato. Richard Dawkins é o exemplo vivo mais influente desta tradição, e sua mensagem, ecoado por Dan Dennett, Sam Harris e Christopher Hitchens, soa tão alto e estridente na mídia hoje como a mensagem de Lutero nas igrejas reformadas da Alemanha. A violência dos discursos proferidos por esses ateus evangélicos é realmente notável. Afinal de contas, o Iluminismo aconteceu há três séculos, os argumentos de Hume, Kant e Voltaire foram absorvidos por cada pessoa educada. O que mais deve ser dito? E se você deve dizer isso, por que dizê-lo de modo tão estridente? Certamente, aqueles que se opõem a religião em nome da gentileza tem a obrigação de ser gentil, mesmo com - especialmente - seus inimigos?

Há duas razões pelas quais as pessoas começam a gritar com os seus adversários: um é que eles acham que o adversário é tão forte que todas as armas devem ser usadas contra ele; a outra é que eles pensam que o a sua causa é tão fraca que ela tem que ser fortalecida pelo barulho. Ambos esses motivos podem ser observados nos ateus evangélicos. Eles acreditam a sério que a religião é um perigo, levando as pessoas a excessos de entusiasmo que, pelo fato de serem inspirados por crenças irracionais, não podem ser combatidos por meio de argumentos racionais. Nós tivemos muitas prova disso entre os islâmicos; mas essa prova, os ateus nos dizem, é apenas a mais recente em uma longa história de massacres e torturas, que - na perspectiva científica - pode razoavelmente ser chamada de pré-história da humanidade. O Iluminismo prometeu inaugurar uma outra era, em que a razão seria soberana, fornecendo um instrumento de paz que todos possam empregar. Nos olhos dos evangélicos ateus, no entanto, essa promessa não foi cumprida. Em sua visão das coisas, nem o judaísmo nem o cristianismo absorveu o Iluminismo, mesmo que, em certa medida, eles o inspirou. Todas as crenças, para os ateus, permaneceram na condição do Islã hoje: enraizados em dogmas que não podem ser questionados com segurança. Acreditando nisso, eles funcionam diante de uma espuma de vitupérios contra os crentes comuns, incluindo aqueles crentes que vieram para religião em busca de um instrumento de paz e que consideram a sua fé como uma exortação para amar o próximo, mesmo o seu belicoso vizinho ateu, como eles mesmos.

Ao mesmo tempo, os ateus estão reagindo ao enfraquecimento do seu caso. Dawkins e Hitchens estão convencido de que a visão científica do mundo foi inteiramente prejudicadas pelas premissas da religião e que só a ignorância pode explicar a persistência da fé.  Mas o que exatamente a ciência moderna nos diz, e exatamente onde ela conflita com as premissas da crença religiosa? De acordo com Dawkins (e Hitchens segue-o nesta), os seres humanos são "máquinas de sobrevivência" a serviço de seus genes. Somos, por assim dizer, subprodutos de um processo que é totalmente indiferente ao nosso bem-estar, máquinas desenvolvidas pelo nosso material genético a fim de promover sua meta reprodutiva. Os genes em si são moléculas complexas, colocadas juntas, de acordo com as leis da química, a partir de material disponibilizado na sopa primordial que uma vez foi fervida na superfície do nosso planeta. Como isso aconteceu ainda não é conhecido: talvez descargas elétricas causaram que átomos de nitrogênio, carbono, hidrogênio e oxigênio se associassem em cadeias adequadas, até que finalmente um deles atingiu essa característica marcante, de codificar as instruções para a sua própria reprodução. A ciência pode um dia ser capaz de responder a questão de como isso ocorreu. Mas é ciência e não religião, que irá responder.

Quanto à existência de um planeta no qual os elementos são abundantes similares as quantidades observadas no planeta Terra, tal coisa também deverá ser explicado pela ciência - embora a ciência da astrofísica, em vez da ciência biológica. A existência da Terra faz parte de um grande processo de desdobramento, o que pode ou não pode ter começado com um Big Bang, e que contém muitos mistérios que os físicos exploraram com crescente espanto. Astrofísica levantou mais perguntas do que as tem respondido. Mas essas são questões científicas que serão resolvidas pela descoberta das leis do movimento que governam as mudanças observáveis ​​em todos os níveis do mundo físico, da galáxia para supernova, do buraco negro ao quark. Existe um mistério nos confronta quando nós olhamos para a Via Láctea, sabendo que as miríades de estrelas responsáveis ​​por aquela mancha de luz são apenas uma única galáxia, a mesma que nos contém, e que além de suas fronteiras existe uma miríade de outras galáxias que giram devagar no espaço, algumas morrendo, algumas emergindo, todas sempre inacessíveis para nós - este mistério não exige uma resposta religiosa. Este é um mistério que resulta de nosso conhecimento parcial e que só pode ser resolvido através de um maior conhecimento do mesmo tipo - o conhecimento que podemos chamar de ciência.

Somente a ignorância poderia nos levar a negar esse quadro geral, e os ateus evangélicos assumem que a religião nega esse quadro e portanto acreditam que ela comprometerá com a propagação da ignorância ou com a prevenção do conhecimento. No entanto, eu não conheço uma pessoa religiosa entre os meus amigos e conhecidos que negam esse quadro,  ou que considera ele como uma dificuldade para sua fé. Dawkins escreve como se a teoria do gene egoísta retirasse de uma vez por todas com a ideia de um Deus criador - não precisamos dessa hipótese para explicar como chegamos a ser. Em certo sentido, isso é verdade. Mas sobre o próprio gene: como ele veio a ser? E sobre a sopa primordial? Todas essas perguntas são respondidas, é claro, indo um passo mais abaixo na cadeia de causalidade. Mas a cada passo encontramos um mundo de uma qualidade singular: precisamente é um mundo que, por si só, produzirá seres conscientes, capazes de olhar com a razão buscando o sentido das coisas, e não somente por uma causa. A coisa surpreendente sobre o nosso universo é que esse contém a consciência, o julgamento, o conhecimento do certo e errado, e todas as outras coisas que fazem a condição humana tão singular. O universo não se torna menos surpreendente pela hipótese de que esse estado de coisas surgiram ao longo do tempo a partir de outras condições. Se for verdade, somente nos mostra o quão surpreendente tais condições eram. O gene e a sopa não podem ser menos surpreendentes que o seu produto.

Além disso, estas coisas deixam de nos surpreender - ou melhor, eles cairiam no âmbito do compreensível - se pudéssemos encontrar uma maneira de eliminá-los da contingência. É isso que a religião promete: não um propósito, necessariamente, mas algo que remova o paradoxo de um mundo completamente regido por lei, aberto a consciencia, que é, no entanto, sem explicação: é apenas assim, por nenhuma razão. Os ateus evangélicos são subliminarmente conscientes de que a sua abdicação em face da ciência não faz o universo mais inteligível, nem fornece uma resposta alternativa para nossas indagações metafísicas. Isso leva as perguntas a uma parada. E a pessoa religiosa vai sentir essa parada prematura: a razão tem mais questões a se fazer, e talvez mais respostas para obter as quais os ateístas vai nos permitir. Então quem, nesta competição subliminar, é o verdadeiramente razoável? Os ateus levantam a questão em seu próprio favor, assumindo que a ciência tem todas as respostas. Mas a ciência pode ter todas as respostas, apenas se ela tiver todas as perguntas, e esse pressuposto é falso. Há perguntas dirigidas a razão que não são dirigidas a ciência, uma vez que elas não estão pedindo uma explicação causal.

Uma dessas questões é a consciência. Este estranho universo de buracos negros e deformações do tempo, de eventos do horizontes e não-localidades, de alguma forma, tornam-se conscientes de si mesmo. E se tornam conscientes de si mesmos em nós. Essas condições factuais são a própria estrutura da ciência. A rejeição do espaço absoluto de Newton, a adoção do continuum espaço-tempo, as equações quânticas - todos estes têm como premissa o fato de que as leis científicas são instrumentos para prever um conjunto de observações a partir de outro. O universo que a ciência descreve é limitado em cada ponto de observação. Segundo a teoria quântica, algumas de suas características mais básicas torna-se determinar somente o momento de observação. A grande tapeçaria das ondas e partículas, de campos e forças, da matéria e da energia, está preso apenas nas bordas, onde os eventos são cristalizados na mente de quem observa.

A consciência é mais familiar para nós do que qualquer outra característica do nosso mundo, uma vez que é a via pela qual qualquer coisa se torna familiar. Mas isso é o que faz a consciência ser tão difícil de identificar. Procurá-la onde quer que gostaria, você encontra somente seus objetos - um rosto, um sonho, uma lembrança, uma cor, uma dor, uma melodia, um problema, mas em nenhum lugar desses a consciência incide sobre elas. Tentar compreendê-la é como tentar observar o sua própria observação, como se estivesse a olhar com seus próprios olhos em seus próprios olhos sem usar um espelho. Não surpreende, portanto, o pensamento de consciência dá origem a preocupações metafísicas peculiares, que tentam aliviar com imagens da alma, a mente, o ego, o "sujeito de consciência", a entidade interior que pensa, vê e sente e que é o verdadeiro eu interior. Mas essas "soluções" tradicionais simplesmente duplicam o problema. Nós lançamos nenhuma luz sobre a consciência de um ser humano simplesmente re-descrevendo-a como a consciência de algum homúnculo interno - seja ela uma alma, a mente ou a si mesmo. Pelo contrário, colocando que homúnculo em alguma realidade privada, inacessível e possivelmente imaterial, nós apenas agravamos o mistério.

É este mistério que traz as pessoas de volta à religião. Eles podem não ter clara concepção da ciência, nenhuma aptidão teológica, e nenhum conhecimento dos argumentos, ao longo dos séculos, que convenceu as pessoas que a fabricação da contingência deve ser apoiada por um "ser necessário". As sutilezas das escolas medievais, na sua maior parte, fazem pouco contato com o pensamento dos crentes de hoje. As pessoas modernas são atraídos para a religião pela consciência da consciência, por sua consciência de uma luz que brilha no centro de seu ser. E, como Kant mostrou de forma brilhante, a pessoa que conhece a si mesmo, que se refere a si mesmo como "eu", está inevitavelmente preso na liberdade. Ele se eleva acima do vento da contingência que sopra através do mundo natural, erguida por leis necessárias da razão.  O 'eu' define o ponto de partida de todo o raciocínio prático e contém uma sugestão da coisa que distingue as pessoas do resto da natureza, ou seja, sua liberdade. Existe um sentimento em que os animais também são livres: eles fazem escolhas, fazem as coisas tanto livremente e por indução. Mas os animais não são responsáveis ​​por aquilo que fazem. Eles não são convidados a justificar sua conduta, nem são persuadidos ou dissuadidos pelo diálogo com outros. Todos esses objetivos, como a justiça, a comunidade e o amor, tornam a vida humana em algo de valor intrínseco, têm sua origem na responsabilidade mútua de pessoas, que respondem uns aos outros de 'Eu' para 'Eu'. Não surpreende, portanto, que as pessoas estejam convencidas de que eles entendem o mundo e seu significado, quando observam de uma forma exterior de um outro "eu" - o "eu" de Deus, no qual todos nós estamos julgados, e a partir do qual amor e a liberdade fluem.

Esse pensamento pode ser visto em versos, como no Veni Creator Spiritus da Igreja Católica, nas palavras rapsódicas de Krishna no Baghavad Gita e no grande Salmos que são a glória da Bíblia hebráica.  Mas para a maioria das pessoas está simplesmente ali, uma densa pepita de significado no centro de suas vidas, que pesa muito quando não encontram nenhuma maneira de expressá-los em formas comuns. As pessoas continuam a olhar para os lugares onde eles podem se sustentar, por assim dizer, na janela do nosso mundo empírico , olhando para fora, para o transcendental - os lugares onde há uma brisa que provém da esfera que paira sobre eles. Não muito tempo atrás, Deus estava na residência. Você poderia abrir uma porta e descobri-lo, e juntar-se com aqueles que cantavam e rezavam em sua presença. Agora, ele, como nós, não temos domicílio fixo. Mas, a partir dessa experiência, um novo tipo de consciência religiosa está nascendo: o movimento do olho interior para o transcendental e uma invocação constante do “não sabemos o que”.
A desconfiança da religião organizada, portanto, caminha lado a lado com um lamento pela perda dela. Estamos angustiados com os ateus evangélicos, que estão carimbando no caixão em que imaginam estar o cadáver de Deus e tentando nos dizer para enterrá-lo rapidamente. Estes personagens são violentos e possuem um ar desordenado: é muito óbvio que algo está faltando em suas vidas, algo que traria ordem e perfeição no lugar de um desgosto aleatório. E ainda estamos sem saber o que responder para eles. Nenhum lugar no nosso mundo está a porta na qual podemos abrir de modo a ficar de pé novamente diante da exalação de Deus.

No entanto, os seres humanos têm uma necessidade inata de conceituar o seu mundo em termos do transcendental e viver na distinção entre o sagrado e o profano. Esta necessidade está enraizada na consciência de si mesmo e nas experiências que nos fazem lembrar do nosso destino comum e importante como os personagem de Kant no "Reino dos Fins". Essas experiências são as raízes do ser humano, em oposição à sociedade meramente animal e é preciso afirmá-las, ter o auto-conhecimento para possuí-las, para assim ficarmos a vontade com nosso tipo. Religiões satisfazem esta necessidade. Elas fornecem o apoio social e a infra-estrutura teológica que irá manter os conceitos do transcendental e do sagrado no lugar. A insegurança e a desordem das sociedades ocidentais provém da tensão em que as pessoas são mantidas não permitindo anexar a sua consciência interior do transcendental para as formas exteriores de rituais religiosos. As pessoas se afastaram da religião organizada da mesma forma que também se afastaram de todas as outras coisas organizadas. Os ateístas que dançam sobre o caixão das antigas religiões nunca vão conseguir convecer as pessoas que ali dentro do caixão tem algo morto. Deus fugiu, mas não está morto.   Ele está ganhando tempo, esperando que nós construamos um quarto para ele. Pelo menos é assim que eu observo essa crescente obsessão com a religião e a nostalgia que perdemos quando as congregações fecharam suas Bíblias e seus hinários, deixou-os em pedaços e foram silenciosos para casa.

sábado, 3 de agosto de 2013

A Rússia e o Vírus da Liberdade (Emil Cioran)

A Rússia e o Vírus da Liberdade
Por Emil Cioran em “História e Utopia”

Às vezes penso que todos os países deveriam se parecer com a Suíça, comprazer-se e arruinar-se, como ela, na higiene, na insipidez, na idolatria das leis e no culto ao homem; por outro lado, só me atraem as nações desprovidas de escrúpulo tanto em pensamento quanto em atos, sempre prestes a devoras as outras e a devorar-se a si mesmas, pisoteando os valores contrários à sua ascensão e a seu êxito, insubmissas à sensatez, essa chaga dos velhos povos cansados de si mesmos e de tudo, e como que satisfeitos de cheirar a mofo.


Do mesmo modo, esforço-me em vão para detestar os tiranos, pois não deixo de constatar que constroem a trama da história, e que sem eles não seria possível conceber nem a ideia nem a marcha de um império. Superiormente odiosos, de uma bestialidade inspirada, os tiranos evocam o homem levado a seus extremos, a última exasperação de suas ignomínias e de seus méritos. Ivã, o Terrível, para citar apenas o mais fascinante deles, esgota os escaninhos da psicologia. Tão complexo em sua demência quanto em sua política, fez de seu reino e, até certo ponto, de seu pais um modelo de pesadelo, um protótipo de alucinação viva e inesgotável, mescla de Mongólia e de Bizâncio, acumulando as qualidade e os defeitos de um clã e de um basileu, monstro de cóleras demoníacas e de sórdida melancolia, dividido entre o gosto pelo sangue e o gosto pelo arrependimento, com uma jovialidade enriquecida e coroada por risos de escárnio. Tinha a paixão do crime; todos nós, enquanto existimos, também a experimentamos, seja atentando contra os outros ou contra nós mesmos. Só que, quaisquer que sejam, provêm de nossa incapacidade de matar ou matar-nos. Não estamos sempre de acordo com isso, já que desconhecemos habitualmente o mecanismo íntimo de nossas debilidades. Se os czares, ou os imperadores romanos, me obsedam, é porque essa debilidades, veladas em nós, aparecem neles a descoberto. Eles nos revelam a nós mesmos, encarnam e ilustram nossos segredos. Penso naqueles que, condenados a uma grandiosa degenerescência, perseguiam seus parentes e, por medo de ser amados, os enviavam ao suplício. Por mais poderosos que fossem, eram no entanto infelizes, pois não se saciavam graças ao tremor dos outros. Não são como a projeção do espírito mau que nos habita e nos convence de que o ideal seria criar o vazio em torno de nós? É com tais pensamentos e tais instintos que se forma um império: para isso coopera esse subsolo de nossa consciência onde se escondem nossas taras mais queridas.

Surgida de profundezas insuspeitadas, de um impulso original, a ambição de dominar o mundo só aparece em certos indivíduos e em certas épocas, sem relação direta com a qualidade da nação onde se manifesta: entre Napoleão e Gengis Khan a diferença é menor do que entre o primeiro e qualquer político francês das repúblicas sucessivas. Mas essas profundezas e esse impulso podem secar, esgotar-se.

Carlos Magno, Frederico II de Hohenstaufen, Carlos V, Bonaparte, Hitler tiveram a tentação, cada um à sua maneira, de realizar a ideia do império universal: fracassaram, com mais ou menos felicidade. O Ocidente, onde essa ideia suscita apenas ironia ou mal-estar, vive agora na vergonha de suas conquistas; mas, curiosamente, é no momento mesmo em que ele se volta para si próprio que suas fórmulas triunfam e se propagam; dirigidas contra seu poder e sua supremacia, elas encontram eco fora de suas fronteiras. Ele ganha perdendo-se. Foi assim que a Grécia só triunfou no domínio do espírito quando deixou de ser uma potência e mesmo uma nação; saquearam sua filosofia e suas artes, asseguraram o sucesso às suas produções, mas não assimilaram seus talentos. Da mesma maneira, pode-se roubar tudo do Ocidente, salvo seu gênio. Uma civilização se revela fecunda pela capacidade que tem de incitar outras a imitá-la; se cessa de deslumbrá-las, reduz-se a um conjunto de resíduos e vestígios.

Quando a ideia de império abandonou esta parte do mundo, encontrou seu clima ideal na Rússia, onde, aliás, sempre existiu, singularmente no plano espiritual. Depois da queda de Bizâncio, Moscou se tornou, para a consciência ortodoxa, a terceira Roma, a herdeira do “verdadeiro” Cristianismo, da verdadeira fé. Primeiro despertar messiânico. Para conhecer um segundo, foi preciso esperar nossos dias; mas desta vez, ela deve o despertar à demissão do Ocidente. No século XV, aproveitou um vazio religioso, como aproveita hoje um vazio político. Duas grandes ocasiões de compenetrar-se de suas responsabilidades históricas.

Quando Maomé II sitiou Constantinopla, a cristandade, dividida como sempre e, além disso, feliz por haver perdido a lembrança das cruzadas, absteve-se de intervir. Os sitiados sentiram primeiro uma irritação que, ante a iminência do desastre, tornou-se assombro. Oscilando entre o pânico e uma satisfação secreta, o Papa prometeu auxílio, mas o enviou tarde demais: para que apressar-se por causa de uns “cismáticos”? O cisma entretanto, ia adquirir força em outra parte. Roma preferiu Moscou à Bizâncio? É sempre preferível um inimigo longínquo do que um próxima. Do mesmo modo, em nossos dias, os anglo-saxões preferiram, na Europa, a preponderância Russa à preponderância Alemã. É que a Alemanha estava perto demais.

As pretensões da Rússia de passar da primazia vaga à hegemonia caracterizada têm um fundamento. O que teria ocorrido com o mundo Ocidental se a Rússia não tivesse detido e absorvido a invasão mongólica? Durante mais de dois séculos de humilhação e de servidão ela foi excluída da história, enquanto que no Oeste as nações se davam ao luxo de despedaçar-se mutuamente. Se a Rússia tivesse sido capaz de desenvolver-se sem obstáculos, teria se tornado uma potência de primeira ordem já no princípio da era moderna; o que ela é agora, o teria sido no século XVI ou XVII. E o Ocidente? Talvez hoje fosse ortodoxo, e, em Roma, em lugar da Santa Sé, se pavonearia o Santo Sínodo. Mas os russos podem recuperar o tempo perdido. Se, como tudo parece prever, levam a cabo seus desígnios, é possível que acertem as contas com o Sumo Pontífice. Seja em nome do marxismo ou da ortodoxia os russos estão chamados a arruinar a autoridade e o prestígio da Igreja, cujos objetivos não poderiam tolerar sem abdicar do ponto essencial de sua missão e de seu programa. Sob os czares, identificando-a como um instrumento do Anticristo, rezavam contra ela; hoje em dia, considerada como um agente satânico da Reação, a sobrecarregam de invectivas um pouco mais eficazes do que seus antigos anátemas; logo a destruirão com todo o seu poder, com toda a sua força. E até é possível que a desaparição do último sucessor de São Pedro permaneça, em nosso século, como uma curiosidade, à maneira de um apocalipse frívolo. 

Ao divinizar a história para desacreditar Deus, o Marxismo só conseguiu tornar Deus mais estranho e mais obsedante. Pode-se sufocar tudo no homem, salvo a necessidade de absoluto, que sobreviverá à destruição dos templos, e mesmo ao desaparecimento da religião sobre a Terra. E como a essência do povo russo é religiosa, ela inevitavelmente se reerguerá. Razões de ordem histórica contribuirão em grande medida para isso.

Ao adotar a ortodoxia, a Rússia manifestou seu desejo de separar-se do Ocidente; era sua maneira de se definir desde o princípio. Nunca, fora dos meios aristocráticos, deixou-se seduzir pelos missionários católicos, no caso os jesuítas. Um cisma não exprime tanto divergências de doutrina quanto uma controvérsia abstrata de um reflexo nacional. Não foi a questão ridícula do filioque que dividiu as Igrejas: Bizâncio queria sua autonomia total, e com maior razão Moscou. Cismas e heresias são nacionalismos disfarçados. Mas enquanto a Reforma tomou somente o aspecto de uma disputa familiar, de um escândalo no seio do Ocidente, o particularismo Ortodoxo, ao afetar um caráter mais profundo, ia marcar uma divisão no próprio mundo ocidental. Recusando o catolicismo, a Rússia retardava sua evolução, perdia uma ocasião capital de civilizar-se rapidamente, ao mesmo tempo em que ganhava substância e unicidade, pressentindo, sem dúvida, que o Ocidente lamentaria um dia a vantagem que tinha sobre ela.

Quanto mais forte se tornar, mais adquirirá consciência de suas raízes, das quais, de uma certa maneira, o marxismo a afastou; após uma cura forçada de universalismo, ela se russificará de novo em proveito da ortodoxia. Além disso, marcou de tal maneira o marxismo que o tornou eslavo; todo povo de alguma envergadura que adota uma ideologia estranha a suas tradições, a assimila e a adultera, a desvia no sentido de seu destino nacional, a falseia em seu favor ate torná-la indiscernível de seu próprio gênio. Possui uma ótica própria, necessariamente deformadora, um defeito de visão que, longe de desconcertá-lo, o lisonjeia e estimula. As verdades das quais se orgulha, mesmo que desprovidas de valor objetivo, são no entanto vivas, e produzem, como tais, esse gênero de erros que contrapõem a diversidade da paisagem histórica, entendendo-se aí que o historiador, cético por profissão, temperamento e opção, situa-se de início fora da Verdade. 

Enquanto que os povos ocidentais se desgastavam em sua luta pela liberdade e, mais ainda, na liberdade adquirida (nada esgota tanto quanto a posse ou o abuso da liberdade), o povo russo sofria sem desgastar-se dentro da história e como foi eliminado dela, foi obrigado a sofrer os infalíveis sistemas de despotismos que lhe infligiram: existência obscura, vegetativa, que lhe permitiu fortalecer-se, aumentar sua energia, acumular reservas e tirar de sua servidão o máximo de proveito biológico. A ortodoxia ajudou-o a isso, mas a ortodoxia popular, admiravelmente articulada para mantê-lo fora dos acontecimentos, contrariamente à ortodoxia oficial, que orientava o poder para objetivos imperialistas. Duplas face da Igreja ortodoxa: por um lado, trabalhava para o entorpecimento das massas; por outro, auxiliar dos czares, despertava neles a ambição e tornava possível imensas conquistas em nome de uma população passiva. Feliz passividade que assegurou aos russos seu predomínio atual, fruto de seu atraso histórico. Favoráveis ou hostis, todos os empreendimentos da Europa giravam em torno deles, e, ao situá-los no centro de seus interesses e de suas ansiedades, reconhecem seu domínio virtual. Eis aí quase realizado um de seus mais antigos sonhos. Que o tenham alcançado sob os auspícios de uma ideologia de origem estrangeira acrescenta um suplemento paradoxal e atraente ao seu êxito.O que definitivamente importa é que o regime seja russo e que esteja inteiramente dentro das tradições do país. Não é revelador que a Revolução, saída em linha direta das teorias ocidentalistas, tenha se orientado cada vez mais para as ideias dos eslavófilos? De resto, um povo representa não tanto um conjunto de ideias e de teorias como de obsessões: as dos russos, de qualquer parte que sejam, são sempre, senão idênticas ao menos aparentadas. Tchaadaev, que não via nenhum mérito em sua nação, ou Gogol, que a ridicularizou impiedosamente, estão tão ligados a ela quanto Dostoievski. O mais arrebatado dos niilistas, Netchaiev, estava tão obcecado por ela como Pobiedonostsev, violento reacionário procurador do Santo Sínodo. Só esta obsessão importa. O resto é apenas pose.

Para que a Rússia se ajustasse a um regime liberal, teria que debilitar-se consideravelmente, teria que extenuar seu vigor, mais ainda: teria que perder seu caráter específico e desnacionalizar-se em profundidade. Como conseguiria isso com seus recursos interiores intactos e seus mil anos de autocracia? Supondo que o conseguisse por um movimento brusco, se desarticularia de imediato. Muitas nações, para conservar-se e expandir-se, têm necessidade de uma certa dose de terror. A própria França só pôde engajar-se na democracia a partir do momento em que suas forças começaram a diminuir, e quando, não tendo mais como objetivo a hegemonia, preparava-se para se tornar respeitável e sensata. O primeiro Império foi sua última loucura. Depois, aberta à liberdade, teria que assumi-la penosamente, através de numerosas convulsões, contrariamente à Inglaterra que, exemplo desalentador, havia se habituado a ela há muito tempo, sem choques nem perigos, graças ao conformismo e à esclarecida estupidez de seus habitantes (ao que eu saiba, ela não produziu nenhum anarquista).

A longo prazo, o tempo favorece as nações subjugadas que, acumulando forças e ilusões, vivem no futuro, na esperança: mas, em liberdade, o que se pode esperar? Ou no regime que a encarna, feito de dissipação, de quietude e de amolecimento? A democracia maravilha que não tem nada a oferecer, é, ao mesmo tempo, o paraíso e o túmulo de um povo. A vida só tem sentido graças à democracia, mas a democracia carece de vida. Felicidade imediata, desastre iminente, inconsistência de um regime ao qual não se adere se, enredar-se em um dilema torturante.

Melhor provida, mais afortunada, a Rússia não precisa colocar-se tais problemas, já que o poder absoluto é, para ela, como já observava Karamzine, o “fundamento mesmo de seu ser”. Aspirar à liberdade sem jamais alcançá-la, não é essa sua grande superioridade sobre o mundo ocidental o qual, ai de mim!, já conseguiu há muito tempo? Ela não tem, além disso, nenhuma vergonha de seu império; pelo contrário, só pensa em ampliá-lo. Quem melhor que ela apressou-se em se beneficiar das aquisições de outros povos? A obra de Pedro o Grande, e mesmo a da Revolução, participam de um parasitismo genial. Até os horrores do jugo tártaro ela suportou engenhosamente.

Se, ao confinar-se em um isolamento calculado, a Rússia soube imitar o Ocidente, também soube fazer-se admirar e seduzir seus espíritos. Os enciclopedistas se entusiasmaram com as empresas de Pedro e de Catarina, assim como os herdeiros do Século das Luzes – falo dos homens de esquerda – se entusiasmaram com as de Lênin e Stalin. Este fenômeno advoga em favor da Rússia, mas não em favor do Ocidentais que, complicados e devastados na medida de seus desejos, e buscando o “progresso” em outra parte, fora de si mesmos e de suas criações, encontram-se hoje paradoxalmente mais próximos dos personagens de Dostoievski do que os próprios Russos. Ainda convém precisar que eles só evocam o aspecto enfraquecido desses personagens, pois não têm nem suas extravagâncias ferozes nem sua ira viril: são “demônios” débeis por causa de tantos raciocínios e escrúpulos, corroídos por remorsos sutis, por mil interrogações, mártires de dúvida, deslumbrados e aniquilados por suas perplexidades.

Cada civilização acredita que seu modo de viver é o único bom e o único concebível, e que tem o dever de converter o mundo a esse modo de viver, ou infligi-lo a ele; equivale, para ela, a uma soteriologia expressa ou camuflada; trata-se, de um fato, de um imperialismo elegante, que deixa de sê-lo quando é acompanhado pela aventura militar. Não se funda um império unicamente por capricho. Submetemos os outros para que nos imitem, para que tomem por modelo nossas crenças e nossos hábitos; vem depois o imperativo perverso de farelos escravos para contemplar neles o esboço lisonjeiro ou caricatural de si mesmo. Concordo que existe uma hierarquia qualitativa de impérios: os mongóis e os romanos não subjugaram os povos pelas mesmas razões, e suas conquistas não tiveram o mesmo resultado. Entretanto, ambos foram igualmente peritos em fazer parecer o adversário reduzindo-o à sua imagem e semelhança.

Quer tenha provocado ou sofrido, a Rússia jamais se contentou com desgraças medíocres. O mesmo ocorrerá no futuro. Ela se abaterá sobre a Europa por fatalidade física, pelo automatismo de sua massa, por sua vitalidade superabundante e mórbida tão propícia à geração de um império (no qual se materializa sempre a megalomania de uma nação), por essa saúde tão sua, cheia de imprevistos, de horror e de enigmas, destinada ao serviço de uma ideia messiânica, rudimento e prefiguração de conquistas. Quando os eslavófilos sustentavam que a Rússia devia salvar o mundo, empregavam um eufemismo: não se pode salvá-lo sem dominá-lo. No que diz respeito a uma nação, esta encontra seu princípio de vida em si mesma ou em parte alguma: como poderia ser salva por outra? A Rússia sempre pensou – secularizando a linguagem e a concepção dos eslavófilos – que é sua incumbência assegurar a salvação do mundo, a do Ocidente em primeiro lugar, com respeito ao qual, aliás, nunca experimentou um sentimento claro, mas sim atração e repulsa, ciúme (mistura de culto secreto e de aversão ostensiva) inspirado pelo espetáculo de uma podridão tão invejável quanto perigosa, cujo contato tem que buscar, mas mais ainda evitar.

Recusando-se a se definir e a aceitar limites, cultivando o equívoco em política, em moral e, o que é mais grave, em geografia, sem nenhuma das ingenuidades inerentes aos “civilizados”, que se tornaram opacos ao real pelos excessos de uma tradição racionalista, a Rússia, sutil tanto por intuição como pela experiência secular da dissimulação, talvez seja uma criança historicamente falando, mas de maneira alguma o é psicologicamente. Daí sua complexidade de adulto com instintos jovens e velhos segredos, daí também as contradições, levadas até o grotesco, de suas atitudes. Quando resolve aprofundar (e consegue isso sem esforço), desfigura o menor fato, a mínima ideia. Dir-se-ia que tem a mania da gesticulação monumental. Tudo é vertiginoso, horrível e inapreensível na história de suas ideias, revolucionárias ou de qualquer índole. É ainda um incorrigível entusiasta das utopias; ora a utopia é o grotesco cor-de-rosa, a necessidade de associar a felicidade, logo o inverossímil, ao devir, e de levar uma visão otimista, aérea, até o limite em que se una a seu ponto de partida: o cinismo que pretendia combater. Em suma, um conto de fadas monstruoso.

Que a Rússia seja capaz de realizar o seu sonho de um império universal, é uma eventualidade, mas não uma certeza; em compensação, é óbvio que pode conquistar e anexar toda a Europa, e mesmo que o fará, nem que seja para tranquilizar o resto do mundo... Ela se satisfaz com tão pouco! Onde encontrar prova mais convincente de modéstia, de moderação? Um pedacinho de continente! Enquanto espera, ela o contempla com o mesmo olho com que os mongóis contemplavam a China e os turcos Bizâncio, com a diferença, no entanto, que já assimilou um bom número de valores ocidentais, enquanto que as hordas tártaras e otomanas não tinha sobre sua futura presa senão uma superioridade material. É sem dúvida lamentável que a Rússia não tenha passado pelo Renascimento: todas as suas desigualdades vêm daí. Mas com sua capacidade para queimar etapas será, em um século , ou menos, tão refinada e vulnerável como o é o Ocidente, que atingiu um nível de civilização que só se ultrapassa decaindo. Ambição suprema da história: registar as variações desse nível. O da Rússia, inferior ao da Europa, só pode elevar-se, e ela com ele: isso quer dizer que está condenada Pa ascensão. No entanto, de tanto subir, não se arrisca – desenfreada que está – a perder o equilíbrio, explodir e arruinar-se? Com suas almas modeladas nas seitas e nas estepes, dá uma singular impressão de espaço e de clausura, de imensidão e de sufocamento, de Norte em suma, mas de um Norte especial, irredutível a nossas análises marcado por um sono e por uma esperança que fazem tremer, por ma noite rica em explosões, por uma aurora da qual se guardará lembrança. Nada de transparência e de gratuidade mediterrânea nesses Hiperbóreos cujo passado e presente parecem pertencera uma duração distinta da nossa. Ante a fragilidade e o renome do Ocidente, eles sentem um mal-estar, consequência de seu despertar tardio e de seu vigor ocioso: é o complexo de inferioridade do forte... Eles o vencerão, o superarão. O único ponto luminoso em nosso futuro é sua nostalgia, secreta e crispada, por um mundo delicado, de encantos dissolventes. Se o atingirem (tal parece o sentido evidente de seu destino), se civilizarão à custa de seus instintos, e, perspectiva jubilosa, conhecerão também o vírus da liberdade.

Quanto mais um império se humaniza, mais se desenvolvem nele as contradições que o farão perecer. De atitudes heteróclitas, de estrutura heterogênea (ao contrário de uma nação, realidade orgânica), o império necessita para subsistir do princípio coesivo do terror. Abre-se à tolerância? Ela destruirá sua unidade e sua força, e atuará sobre ele como um veneno mortal que ele próprio teria administrado. É que a tolerância não é apenas o pseudônimo da liberdade, mas também o do espírito; e o espírito, mais nefasto ainda para os impérios que para os indivíduos, os corrói, compromete sua solidez e acelera seu desmoronamento. Assim, ele é o instrumento que uma providência irônica utiliza para golpeá-los.

Se nos divertíssemos, apesar do arbitrário da tentativa, estabelecendo na Europa zonas de vitalidade, comprovaríamos que, quanto mais nos aproximamos do Leste, mais se acentua o instinto, e que ele decresce à medida que nos dirigimos para o Oeste. Os russos não têm a exclusividade do instinto, embora outras nações que o possuem pertençam, em graus diversos, à esfera da influência soviética. Essa nações não disseram ainda sua última palavra; algumas, como a Polônia ou a Hungria, tiveram na história um papel nada desprezível; outras como a Iuguslávia, a Bulgária e a Romênia, tendo vivido na sombra, só conheceram sobressaltos sem futuro. Mas qualquer que tenha sido seu passado, e independentemente de seu nível de civilização, todas dispõem de um fundo biológico que em vão buscaríamos no Ocidente. Maltratadas, deserdadas, precipitadas em um martírio anônimo, dilaceradas entre o desamparo e a sedição, conhecerão talvez no futuro uma compensação para tantos infortúnios, humilhações e mesmo covardias. O grau de instinto não se avalia do exterior; para ,medir sua intensidade, é preciso haver percorrido ou adivinhado esses países, os únicos no mundo a crer ainda, em sua bela cegueira, nos destinos do Ocidente. Imaginemos agora nosso continente incorporado ao império russo, imaginemos depois este império, demasiado vasto, debilitando-se e desagregando-se, tendo como corolário a emancipação dos povos: quais dentre eles tomarão a dianteira e trarão à Europa esse incremento de impaciência e de força sem o qual uma irremediável paralisia a espreita? Não saberia duvidar: são os países que acabo de mencionar . Dada a reputação que têm, minha afirmação parecerá risível. A Europa Central ainda vai, me dirão, mas os Balcãs? Não quero defendê-los, mas também não quero ocultar seus méritos. Esse gosto pela devastação, pela desordem interior, por um universo semelhante a um bordel em chamas, essa perspectiva sardônica sobre cataclismas fracassados ou iminentes, essa aspereza, esse ócio de insones ou de assassinos, não são uma rica e pesada herança que beneficia seus possuidores?ão uma rica e pesada herança que beneficia seus possuidores? E como sofrem de uma “alma”, provam por isso mesmo que conservam um resíduo de selvageria. Insolentes e desolados, gostariam de chafurdar na glória, cujo apetite é inseparável da vontade de afirmação e de ruína, da propensão para um crepúsculo rápido. Se suas palavras são virulentas, seus sotaques inumanos e às vezes ignóbeis, é porque mil razões os impelem a berrar mais alto do que esses civilizados que esgotaram seus gritos. Únicos “primitivos” na Europa, darão a ela talvez um novo impulso; impulso que a Europa considerará sua última humilhação. E, no entanto, se o Sudeste só fosse horror, por que, quando o deixamos e nos encaminhamos para esta parte do mundo, sentimos uma espécie de queda – admirável, é verdade – no vazio?

A vida profunda, a existência secreta dos povos que, tendo a imensa vantagem de haver sido rejeitados pela história, puderam capitalizar sonhos, essa existência escondida, destinada às desgraças de uma ressurreição, começa para além de Viena, extremidade geográfica do enfraquecimento ocidental. A Áustria, cuja deterioração quase atinge o limite do símbolo ou do cômico, prefigura o destino da Alemanha. Não há mais desvios de envergadura entre os germanos, nem mais missão nem frenesi, nada mais que os torne atraentes ou odiosos! Bárbaros predestinados, destruíram o Império romano para que a Europa pudesse nascer; eles a fizeram, cabia a eles desafazê-la; cambaleando junto com eles, ela sofre a consequência de seu esgotamento. O dinamismo que ainda lhes resta já não possui o que esconde ou justifica toda energia. Condenados à insignificância, helvécios em germe, afastados para sempre de seu habitual exagero, reduzidos a ruminar suas virtudes degradadas e seus vícios diminuídos, tendo como única esperança o recurso de ser uma tribo qualquer, os germanos são indignos do temor que ainda possam inspirar: crer neles ou temê-los é fazer-lhes uma honra que não merecem de modo algum. Seu fracasso foi providencial para a Rússia. Se tivessem tido êxito, a Rússia teria sido afastado de seus propósitos por mais um século pelo menos. Mas não podiam triunfar, pois atingiram o ápice de seu poderio material no momento em que não tinham mais nada a nos propor, quando eram fortes e vazios. Havia chegado a hora dos outros. “Não são os eslavos antigos germanos em relação ao mundo que desaparece?”, perguntava-se, no meio do século passado, Herzen, o mais clarividente e o mais dilacerado dos liberais russos, espírito de interrogações proféticas, enojado de seu país, decepcionado com o Ocidente, tão inapto para instalar-se em uma pátria como em um problema, embora gostasse de especular sobre a vida dos povos, matéria vaga e inesgotável, passatempo de emigrado. Os povos, entretanto, segundo outro russo, Soloviev, não são o que imaginam ser, mas o que Deus pensa deles na Eternidade.Ignoro as opiniões de Deus sobre os germanos e eslavos; sei contudo que Ele favoreceu estes últimos, e que é tão inútil felicitá-Lo como condená-Lo.

Hoje está respondida a pergunta que tantos russos se colocavam, no século passado, a respeito de seu país: “Esse colosso foi criado para nada?”; O colosso tem um sentido, e que sentido! Um mapa ideológico revelaria que ele se estende para além de seus limites, que estabelece suas fronteiras onde quer, onde lhe convém, que sua presença evoca, por toda parte, menos a ideia de uma crise que de uma epidemia, salutar às vezes, frequentemente nociva, fulgurante sempre.

O Império romano foi obra de uma cidade, a Inglaterra fundou o seu para remediar a exiguidade de uma ilha; a Alemanha tentou erigir um para não sufocar em um território superpovoado. Fenômeno sem paralelo, a Rússia ia justificar seus desígnios de expansão em nome de seu imenso espaço. “Já que tenho o suficiente, por que não ter demasiado?”, esse é o paradoxo implícito em suas proclamações e em seus silêncios. Ao transformar o infinito em categoria política, ia transtornar o conceito clássico e os padrões tradicionais do imperialismo, e suscitar através do mundo uma esperança grande demais para não degenerar em confusão.

Com seus dez séculos de terrores, de trevas e de promessas, ela estava mais apta do que qualquer outra nação para ajustar-se ao aspecto noturno do momento histórico que atravessamos. O apocalipse lhe convém perfeitamente, está habituada a ele e o aprecia, exercita-se nele hoje mais do que nunca, já que mudou visivelmente de ritmo. “Para onde te apressas dessa maneira, ó Rússia?”, perguntava-se já Gogol, que tinha percebido o frenesi que se escondia sob sua aparente imobilidade. Hoje sabemos para onde ela corre, sabemos sobretudo que, à semelhança das nações com destino imperial, está mais impaciente para resolver os problemas alheios do que os seus próprios. Isso quer dizer que nossa carreira no tempo depende do que ela decidirá ou levará a cabo: ela tem nosso futuro em suas mãos... Felizmente para nós, o tempo não esgota nossa substância. O indestrutível, o alhures, é concebível: em nós? Fora de nós? Como sabê-lo? No ponto em que as coisas se encontram, só merecem interesse as questões de estratégia e de metafísica, aquelas que nos fixam na história e as que nos afastam dela: a atualidade e o absoluto, os jornais e os Evangelhos... Vislumbro o dia em que só leremos telegramas e orações. Fato notável: quanto mais o imediato nos absorve, mais sentimos necessidade de tomar a direção oposta, de forma que vivemos, no interior do mesmo instante, dentro e fora do mundo. Da mesma maneira, ante o desfile dos impérios, só nos resta buscar um meio termo entre o ricto e a serenidade.