sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

A Lógica do Absoluto - Os Escritos Metafísicos de René Guénon

René Guénon (1986-1951), notável expositor francês da philosophia perennis, tem desfrutado de uma reputação entre os que estão familiarizados com seus escritos como, talvez, o metafísico proeminente do século XX.

Embora sua obra completa compreende por volta de vinte e três volumes, o núcleo de sua exposição metafísica pode ser encontrado em três obras: O Homem e seu Devir Segundo o Vedanta, o Simbolismo da Cruz, e os Estados Múltiplos do Ser. Todas as três obras complementam atentamente uma a outra e devem ser tomadas como um todo, a fim de ser devidamente compreendidas. No entanto, cada uma possui um carácter distintivo: O Homem e seu Devir, está intimamente ligado às categorias conceituais específicas e a terminologia do Advaita Vedanta; O Simbolismo da Cruz, tanto um estudo do simbolismo, bem como da metafísica, demonstra a gama de domínio doutrinário de Guénon através das tradições, enquanto articula a metafísica tradicional em um modo particularmente geométrico. Estados Múltiplos, o mais puro trabalho metafísico de Guénon, é uma demonstração lógico-dedutiva de princípios metafísicos, categorias e relações de uma clareza e profundidade surpreendente.

Apesar de suas diferenças de modo e ênfase, todas as três obras são possuídas pela mesma animadora pergunta: "O que é possível para o ser humano" Simplesmente render-se a resposta surpreendente de que Guénon afirma não serviria, pois, se é para ser aceita, ainda que provisoriamente, ela deve ser conquistada, seguindo a cadeia inferencial de idéias que levam inexoravelmente em direção a ela. É neste contexto que o temperamento e formação de Guénon como matemático são particularmente evidentes: para ele, afirma-se primeiramente os princípios axiomáticos e, em seguida, se prossegue, em uma maneira quase-lógica de uma prova, na direção consequentes conclusões.

Guénon começa sua demonstração com um axioma primário, ou primeiro princípio, que ele chama de infinito metafísico. Para aqueles familiarizados com as fontes tradicionais, é claro que ele está evocando a mesma noção como que expressa no Brahman do Shankaracharya, o Gottheit do Meister Eckhart, o Tao do Lao Tzu, o Uno de Plotino, ou al-Dhat do Ibn 'Arabi. No entanto, ele deliberadamente forja um vocabulário independente dessas menções tradicionais, pois, ao abordar um público contemporâneo tipicamente não familiarizados com essas fontes, ele deseja uma doutrina essencial para valer por si própria, através da sua coerência intrínseca e independentemente de quaisquer associações. Guénon é cuidadoso em distinguir o Infinito metafísico do infinito matemático, que é finito, na medida em que se limita ao domínio dos números. O Infinito metafísico é simplesmente, e mais convincente, aquilo que não tem limites de qualquer tipo.

Várias características necessárias seguem sobre esta definição essencial: O Infinito não possui qualquer limitação, restrição ou determinação, pois tal anularia claramente a sua infinitude. Ele é único, abrangente, e uma absoluta totalidade, pois se alguma coisa existir fora dele, ele não seria o Infinito. É sem partes, pois qualquer parte seria relativo e finito e poderia, assim, não ter nenhuma medida ou relacionamento comum a ele. É absolutamente indeterminada, pois qualquer determinação positiva serviria como uma delimitação e, portanto, não poderia aplicar-se a ele. Pela mesma medida, é absolutamente afirmado, pois sua indeterminação - a negação de qualquer definição limitadora - é equivalente à negação da negação como tal e assim, uma afirmação total. Finalmente, é incontestável, pois sua indeterminação absoluta implica que não pode ser definido, discutido ou, desta forma, contestado.

A definição essencialmente apofática da noção do Infinito metafísico implica também - assim como ele não pode ser racionalmente contestado - que não está aberto a prova racional. Em vez disso, um outro modo de discernimento deve ser utilizado, que poderia ser chamado de "intuição intelectual". Ananda Coomaraswamy, a este respeito, tem escrito sobre a doutrina tradicional como que possuí uma "inteligibilidade que se auto-autentica", na medida em que as idéias metafísicas trazem em si sua própria evidência suficiente. No entanto, tais elementos de prova pode não se esperar falar para todos: como Frithjof Schuon afirma:
 "O Infinito é o que é;
pode-se entender ou não entender."

O Infinito metafísico, como um todo-abrangente, totalidade absoluta, pode ser previsto em um aspecto como um todo universal, ou Possibilidade Universal, como Guénon expressa. A Possibilidade Universal abrange o total, menos o estritamente impossível, que, como pura negação, é literalmente um nada e, portanto, não é nenhum limite sobre a infinitude do Todo. A relação entre o Infinito e Possibilidade Universal podem, a partir de uma perspectiva, ser concebida como a da perfeição ativa e passiva, de essência e substância. De um outro ponto de vista, esta relação pode ser considerada como princípio e o recipiente. Em ambos os casos, apenas há o único Infinito, pois o Todo de forma alguma é distinto do Infinito como tal.

Tudo o que é possível encontra o seu lugar em relação ao Infinito, o que pode ser visto como de uma só vez o seu próprio princípio gerador e seu recipiente abrangente. Neste sentido, e na medida em que está dentro da Possibilidade Universal e, portanto, sendo não impossível, cada possibilidade pode se dizer ser real. Isso não significa, porém, que todas as possibilidades se manifestam. Em geral, qualquer possibilidade pode ser uma possibilidade de manifestação ou uma possibilidade de não-manifestação. Esta distinção, entre manifestação e não-manifestação, é a mais fundamental e universal que pode ser feito dentro da Possibilidade Universal. Aqui, Guénon distingue entre os dois domínios de não-manifestação e manifestação. Dentro do domínio de não-manifestação são encontrados tanto o não-manifestável (aquelas possibilidades de não-manifestação), bem como o manifestável (aquelas possibilidades de manifestação na medida em que não se manifestaram). Dentro do domínio da manifestação são encontrados os manifestados (aquelas possibilidades de manifestação na medida em que se manifestam). Juntos, os domínios de não manifestação e manifestação compreendem toda a Possibilidade Universal.

As possibilidades manifestáveis e não-manifestáveis dentro do domínio de não-manifestação compreendem dois modos distintos e gerais, cada um em conformidade com sua respectiva natureza. Em contraste, as possibilidades de manifestação - vistas dentro do domínio tanto de não-manifestação como de manifestação - possuí um caráter radicalmente diferente nas suas condições não-manifestadas e manifestadas. No domínio da não-manifestação, todas as coisas subsistem eternamente em princípio, em permanência absoluta, indiferenciadas, incondicionadas por quaisquer fatores contingentes ou limitantes. Por outro lado, no domínio da manifestação, todas as coisas são transitórias, diferenciadas, condicionadas e contingentes. Em essência, o domínio de manifestação é o campo de diferenciação, multiplicidade, contingência, e das alterações, ao passo que o domínio de não-manifestação - ao mesmo tempo mais simples e principial - antecede a estas condições.

Mesmo quando se manifesta, cada possibilidade de manifestação permanece fundamentada em seu princípio imediato, que não é outro senão o seu estado como pura possibilidade de não-manifestação. É através deste fato que esta encontra a sua subsistência duradoura, independente das condições particulares e limitantes inerentes à manifestação. O mesmo caso para as possibilidades individuais de manifestação também vale para os domínios de não-manifestação e manifestação como tal. Em certo sentido, não-manifestação e manifestação podem ser considerados como dois domínios separados e independentes. Em outro, em um sentido mais profundo, o domínio de não-manifestação pode ser visto como o solo e fundamento da manifestação, da qual se extrai toda a sua realidade.

Tal como Guénon expressa a articulação da Possibilidade Universal em termos de manifestação, assim também ele expressa essa articulação em termos do Ser. Estes dois modos de expressão são intimamente equivalentes, ainda que não exatamente idênticos: por um lado, ele faz uma distinção entre as categorias de não-manifestação e manifestação; por outro, entre Não-Ser, Ser e Existência. Ao esclarecer a relação entre estas duas articulações, podemos dizer que a não-manifestação e Não-Ser são equivalentes e co-extensivos, assim como são a manifestação e Existência. Ser é uma categoria intermediária: não-manifestada mas ainda assim distinta do Não-Ser; a primeira manifestação, ainda assim distinta da Existência. Em certo sentido, o Ser pode ser dito aquele aspecto do Não-Ser que é o princípio imediato para a Existência como tal, ou Não-Ser na medida em que é exprimível à Existência; no entanto, em um sentido mais profundo, Não-Ser é anterior ao Ser, que é a primeira determinação em direção à Existência, a primeira distinção para a diferenciação, enquanto o Não-Ser, em si, é indeterminado e indistinto.

Se o Infinito metafísico pode ser visto sob um duplo aspecto de princípio e recipiente, de modo que se pode falar de uma só vez de Infinito metafísico e Possibilidade Universal, essa perspectiva gêmea também é encontrada nas categorias metafísicas subsequentes de Não-Ser e Ser. Assim, o Não-Ser pode ser visto como o princípio que contem ou o solo que abrange o Ser, assim como o Ser carrega essa mesma relação dupla em respeito com a Existência. Esta relação dupla do princípio e de recipiente é fundamentalmente inerente: cada categoria antecedente, como a fonte ou base da categoria subsequente a ela, necessariamente compreende e abrange, em princípio, a totalidade dessa categoria. Expressando este duplo aspecto metaforicamente, pode-se observar que o fruto do carvalho é a "semente" do carvalho, ao mesmo tempo em que abrange, em princípio, todos os aspectos de seu crescimento e forma subsequente.

Um par de imagens sugestivas pode tornar as relações fundamentais entre categorias metafísicas mais claras. Considere quatro círculos ou esferas de assentamento, cada uma associada a uma categoria metafísica particular. Na [Imagem 1], sugerindo a perspectiva em que cada categoria antecedente engloba a categoria subsequente, o círculo externo representa Possibilidade Universal, o próximo o Não-Ser, o próximo o Ser, e do círculo mais íntimo e final, a Existência. Cada círculo contém o subsequente a ele, de forma decrescente, traçando a partir Possibilidade Universal à Existência. Na [Imagem 2], sugerindo a perspectiva em que cada categoria antecedente é o princípio imediato da categoria subsequente, podemos empregar os mesmos quatro círculos de assentamento, mas com uma inversão das relações, pois agora o círculo mais íntimo representará o Infinito Metafísico, o próximo o Não-Ser, o próximo o Ser, e o círculo externo e final, a Existência. Cada círculo é o princípio daquele que o sucede, de uma forma radiante, traçando do Infinito metafísico até a Existência.



Duas consequências adicionais e gerais podem ser verificadas a partir dessas relações categóricas. Em primeiro lugar, mesmo que uma categoria antecedente seja metafisicamente distinta da categoria subsequente, não é isolada dela. A relação principial entre as categorias, na qual a categoria subsequente é fundamentada e de onde retira sua realidade de seu antecedente, implica, de certa maneira, que a antecedente participa dela, ou equivalentemente, "participa pelo” seu antecedente. Mais uma vez, expressando metaforicamente, um fruto e um carvalho são claramente distintos, mas há também uma continuidade evidente, na medida em que o fruto participa principialmente no desdobramento subsequente do carvalho.

A importante e segunda consequência é que, enquanto que a "continuidade na distinção" entre as categorias é mais imediatamente relevante entre uma dada categoria e seu antecedente imediata, a extensão de seus princípios deixam claro que a continuidade deve persistir entre uma categoria e todo o seu conjunto de antecedentes, pois cada um em sua vez possui uma continuidade em relação ao anterior. Assim, a Existência participa não só pelo Ser, seu anterior imediato, mas também pelo Não-Ser e no Infinito metafísico também. O corolário decisivo é que o Infinito metafísico, enquanto transcendentalmente único, principialmente participa e está presente na totalidade das subsequentes categorias metafísicas, até e incluindo a totalidade da Existência. Em última instância, existe apenas um único Princípio: o próprio Infinito metafísico.

A linguagem da metafísica, necessariamente uma de alta abstração, torna-se mais acessível por Guénon através do emprego de várias metáforas adequadas. Assim como o termo Infinito metafísico de uma só vez evoca e transcende o infinito matemático, Guénon extende essa metáfora numérica para as outras categorias metafísicas. Assim, o Não-Ser, em sua indiferenciação não-manifestada, pode ser considerado com o "Zero metafísico"; O Ser, como a diferenciação primordial, pode ser considerado como "Unidade"; A Existência, tomada em sua abrangência, é uma "Unicidade", que compreende a multiplicidade como tal, tomada na indefinitude de suas possibilidades manifestas. A Unidade pode ser vista como a afirmação do Zero, assim como a Unicidade preserva uma unidade essencial, que, entretanto, expressa a multiplicidade. Em termos geométricos, pode-se considerar o Não-Ser como aquele que antecede o espaço e a extensão, o Ser como o ponto primordial, sem espaço em si, mas possuindo todo o espaço na virtualidade, e a Existência como a totalidade do espaço, em sua indefinitude da extensão. Da mesma forma, em termos da fala, pode-se considerar o Não-Ser como o silêncio, como tudo o que é inexprimível, o Ser como o som puro, ou a pura possibilidade da expressão, e a Existência como a totalidade do exprimível, de tudo o que é falado.
A Existência, com o reino das possibilidades manifestas em toda sua diversidade, em sua multiplicidade diferenciada, está necessariamente composta de diversos graus ou modos, cada um formado por um conjunto de possibilidades compatíveis sujeitos a condições em comum, tais como o espaço, tempo, forma e corporeidade. Dentro desta concepção geral, o ser humano individual pode ser visto como uma certa coleção de possibilidades manifestas, tanto corporais quanto sutis, sob certas condições definidoras. Como tal, um dado ser humano é composto de um determinado grau ou estado da Existência universal entre a indefinitude de outros. Se a Existência fosse isolada de sua categoria metafísica antecedente, então um ser humano não seria mais do que uma unidade fragmentada, presente entre uma diversidade indefinida, isolado em si mesmo de qualquer outro estado. No nível da individualidade humana, esta é precisamente a nossa condição existencial. No entanto, a Existência está principialmente "participada" por suas categorias metafísicas antecedentes, assim como cada possibilidade manifestada dentro do domínio de Existência é fundamentada em seu princípio não-manifestado.

A "continuidade na distinção" entre as categorias metafísicas implica que um ser humano é mais do que a sua individualidade particular, pois ele carrega em si a marca principial de todos os antecedentes metafísicos que participam dele. Assim como isto é verdade para um ser humano em um estado particular de existência, também é válido para todos os Estados, independentemente da sua natureza. E, no entanto, no final, há apenas um princípio antecedente - o Infinito metafísico - presente em todas as suas reverberações ao longo de todas as categorias metafísicas e todas aquelas possibilidades que compreendem. Neste sentido, pode-se considerar o Infinito metafísico ainda noutro aspecto, para além da Possibilidade Universal, aquilo que Guénon chama de Ser integral ou total. Este Ser - que deve ser claramente distinguido tanto do Ser como uma categoria metafísica, bem como do ser humano individual - pode ser entendido como o Infinito metafísico em seu aspecto em que principialmente participa ao longo de toda Possibilidade Universal. Como tal, ele é ao mesmo tempo singular em si mesmo, mas diferenciado entre as categorias metafísicas e possibilidades.

Um termo estreitamente relacionado que Guénon emprega é "o Si." Fundamentalmente, o Si é idêntico ao Ser total, mas a partir do ponto de vista do indivíduo humano, o Si é aquele princípio último através do qual todo o conjunto de possibilidades manifestas e não-manifestas que subsistem o ser humano. O Si, então, pode ser entendido com o Ser total visto sob o aspecto particular e limitativo de um determinado indivíduo humano. Sob este aspecto, pode-se dizer, metaforicamente, que se o Ser total é um sol, então o Si é um raio; se o Ser total é uma tapeçaria, então o Si é um fio. O Si, como princípio, é a verdadeira realidade do ser humano, a individualidade sendo só uma modificação transitória e contingente.

O indivíduo humano, do ponto de vista de sua individualidade, é, na melhor das hipóteses, um fragmento dentro da vasta multiplicidade de manifestação. Como participado pelo Si, no entanto, o indivíduo tem sua raiz e remonta ao próprio Infinito metafísico, do qual o Si é um aspecto particular. Tem que ser assim, pois sem essa continuidade essencial, o indivíduo estaria completamente sem realidade, desligado de sua sustentação. Esta continuidade, por toda sua importância fundamental para o indivíduo, não é sentida, é despercebida e desconhecida. É isso que é ao mesmo tempo a tragédia e a promessa da condição humana: uma tragédia, pois sem este conhecimento, esta gnosis, experimentamos a nós mesmos de maneira estreita, fragmentária com a qual estamos muito familiar; uma promessa, pois nenhuma outra correção é exigida para esse conhecimento libertador. Nós não podemos fazer nada, pois não há nada a ser feito; precisamos apenas saber o que é, o que sempre foi, e do que deve ser.


O que é possível para o ser humano é realizar sua identidade essencial com o Si, e, portanto, com o Ser integral e total, o Infinito metafísica em seu aspecto participativo dentro Possibilidade universal. Com essa realização, o ser humano transcende sua individualidade particular, sua humanidade, sendo não mais um fragmento, mas uma totalidade. Guénon descreve esta condição final nas palavras do grande sábio vedântico Shankaracharya: "O iogue, cujo intelecto é perfeito, contempla todas as coisas como habitando em si mesmo e, portanto, pelo olho do Conhecimento, ele percebe que tudo é o Si. Ele sabe que todas as coisas contingentes não são diferentes do Si e que, além do Si, não há nada."

The Logic of the Absolute
The Metaphysical Writings of René Guénon
by Peter Samsel
Parabola 31:3 (2006), pp.54-61.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Realismo – Comunismo – Antiburguesia (Por Julius Evola)

Uma das razões que nós vemos hoje intelectuais simpatizando com o comunismo (o que é paradoxal, pois é bem sabido o desprezo que o comunismo tem para com os intelectuais) está relacionado com a postura antiburguesa que o comunismo assumiu. Entre outras coisas, o comunismo afirma representar a superação da "era burguesa" e que conduzirá a humanidade para um novo realismo, além do subjetivismo, individualismo, o culto do ego, e todas as outras retóricas idealistas. Se não é reconhecido o plano exclusivamente econômico e materialista no qual o comunismo contextualiza essas questões, é provável que este possa exercer certo poder de sugestão sobre os intelectuais.
Não há dúvida que atualmente vários processos estão agindo nesta direção. Após a Primeira Guerra Mundial, esta direção exibiu traços específicos: podemos lembrar na Alemanha o movimento chamado Neue Sachlichkeit, ou Nova Objetividade; na França, a corrente inspirada pelo Espirit Nouveau (de inclinações comunistas) estava destinada a exercer uma influência considerável, especialmente no campo da arquitetura. Hoje, o comunismo encontra solidariedade com questões semelhantes que são formuladas em determinados ambientes; assim, não é nenhuma surpresa que alguns intelectuais sem princípios, que não conseguem entender o último e contaminante significado do comunismo (conhecido apenas de longe e em teoria), fique do lado dele, se iludindo, pensando estar em uma posição de vanguarda.
Este é um erro grave. No entanto, devemos reconhecer que, por si só, uma postura anti-burguesa possui uma razão de ser. Eu não quero dizer burguesa no sentido de uma classe econômica, mas sim aquilo que carrega: há um mundo intelectual, uma arte, costumes e visão geral da vida que, depois de ter sido moldada no último século em paralelo com a revolução do Terceiro Estado, aparecem como vazia, decadente e corrupta. A superação resoluta de tudo isso é uma das condições necessárias para resolver a atual crise da nossa civilização.

Assim, essas tentativas de reagir contra os aspectos mais extremos da subversão mundial são muito perigosas, quando elas visam apenas idéias, hábitos e instituições da era burguesa. Isso equivale a fornecer munição para o inimigo. A mentalidade e o espírito burguês, com seu conformismo, seu apêndice psicológico e romantico, seu moralismo e sua preocupação em uma existência mesquinha e segura em seu materialismo fundamental, encontra sua compensação em um sentimentalismo e na retórica de palavras de grande humanitarismo e democracia - tudo isso apenas em uma vida artificiual, periférica e precária, não importando o quão decididamente sobrevive devido a uma inércia nos estratos sociais de muitos países do "mundo livre". Portanto, afirmo que reagir em nome de ídolos, estilo de vidas e valores medíocres do mundo burguês, como é o caso da grande maioria dos adeptos modernos da "lei e ordem", significa que a batalha esta perdida desde o início.
No entanto, assim como a burguesia nas civilizações anteriores situava-se numa classe socialmente intermediária, entre os guerreiros e a aristocracia política por um lado e o mero "povo" do outro lado - da mesma forma, existe uma possibilidade dupla (uma positiva e uma negativa) de superação da burguesia em geral - a de tomar uma posição firme contra o tipo burguês, a civilização burguesa, seu espírito e seus valores.
A primeira possibilidade corresponde a uma direção que conduz para ainda mais baixo, para uma sub-humanidade coletivizada e materialista, sob a bandeira do realismo marxista - aos valores sociais e proletários contra a "decadência burguesa". De fato, é possível conceber uma liquidação de tudo que diz respeito ao mundo convencional, subjetivista e "irreal" burguês, levando não para cima, mas para baixo daquilo que é próprio da ideia normal da personalidade.  Isso acontece quando o resultado final é o indivíduo em massa, o "coletivo" da ideologia soviética, no clima mecanizado e sem alma que o acompanha. Neste caso, o resultado da liquidação do mundo burguês pode atingir apenas a mais uma regressão: vamos para o que está mais abaixo ao invés daquilo que está acima da pessoa. É o oposto daquilo que aconteceu nas grandes civilizações "objetivas" (para usar a expressão de Goethe), que impulsionava o anonimato e o desdém para o indivíduo, embora num contexto de valores superiores, heróicos e transcendentes.
Da mesma forma, se o esforço em direção a um novo realismo é correto, podemos ver claramente o erro daqueles que consideram apenas os graus inferiores da realidade como real. Isto acontece quando o realismo é formulado essencialmente em termos economicos (como acontece no comunismo). O mesmo se aplica a algumas tendências que surgiram nas artes ou nas margens da filosofia, e que estão ao lado dos movimentos de esquerda, assumindo uma postura anticonformista para a sociedade atual. Uma dessas tendencias se autodenomina "neo-realismo", enquantro a outra é um existencialismo radical inspirado por Sartre e seu círculo. Nessa filosofia, "existência" é identificada com as formas de vida mais rasas; este tipo de existência é separado de qualquer princípio superior, estimando sua imediação angustiada e sem luz. Este tipo de existencialismo tem sua contrapartida na psicanálise, uma doutrina que despe e marca como irreal o princípio consciente e soberano da pessoa, considerando como "real" a dimensão irreacional, inconsciente, coletiva e noturna do ser humano: nesta base, cada faculdade superior é vista como derivada e dependenteIsso também ocorre no plano social e cultural, onde o Marxismo se esforça para retratar como uma mera "superestrutura" tudo aquilo que não pode ser contado como processos sociais e econômicos. Estamos, obviamente, na mesma linha de pensamento quando o existencialismo proclama a primazia da "existência" sobre o "ser", em vez de reconhecer que a existência adquire um significado apenas quando ela é inspirada por algo além de si mesma. Assim, há um paralelo exato e visível entre essas correntes intelectuais revolucionárias e movimentos socio-políticos, pois o que estamos tratando é a manifestação, no domínio individual, daquilo que no domínio social e histórico manifesta-se como uma mudança subversiva do poder para as massas, a substituição do superior pelo inferior e a remoação de qualquer princípio de soberania que não se orgine "de baixo". O "realismo" existencialista e psicoanalítico, juntamente com tendências semelhantes, aponta para uma imagem humana que reflete tais relações no individual; tal imagem aparece como multilada, distorcida e subversiva. Assim, podemos considerá-la como resultado de uma cogenialiadde quando muitos intelectuais de tendências semelhantes simpatizam com essas correntes sociais de esquerda, mesmo quando os líderes políticos dessas correntes não possuem os mesmos sentimentos por eles.
No entanto, há uma segunda possibilidade: pode-se conceber uma visão realística e uma luta contra o espírito burguês, o individualismo e o falso idealismo que é mais radical do que a luta travada contra eles pela esquerda, e ainda orientada para cima, não para baixo. Como já disse no capítulo anterior, essa possibilidade diferente depende de uma retomada dos valores heróicos e aristocráticos quando são assumidos com naturalidade e clareza, sem retórica ou pomposidade: em retrospecto, aspectos típicos exemplificados pelo mundo romano e germânico-romano. É possível manter uma distância de tudo o que tem apenas um caráter especialmente subjetivista humano; sentir desprezo pelo conformismo burguês e seu moralismo e egoísmo mesquinho; para encarnar o estilo de uma atividade impessoal; preferir o que é essencial e real em um sentido mais elevado, livre das armadilhas do sentimentalismo e da superestrutura pseudo-intelectual - e ainda, tudo isso deve ser sentido permanecendo de pé, sentindo a presença na vida daquilo que o leva além da vida, tirando daí as normas precisas da ação e do comportamento.
Tudo o que é antiburguês, nesse sentido, não converge para o mundo comunista; pelo contrário, é a premissa para o surgimento de novos homens e líderes, capazes de erguer verdadeiras barreiras contra a subversão global, em correspondência com o estabelecimento de um novo clima, que disporá de suas próprias expressões únicas, mesmo em termos de cultura e civilização.
Por isso, é imprescindível reconhecer claramente a oposição entre as duas possibilidades ou as direções da postura antiburguesa mencionadas acima. Isto é especialmente verdadeiro na Itália. No passado, o fascismo adotou uma postura antiburguesa e, como parte da renovação a qual pressupunha inaugurar, desejou o advento de um novo homem, que deveria romper com o estilo burguês de pensar, sentir e agir. Infelizmente, foi um dos casos em que o fascismo nunca passou de seus próprios slogans; esses elementos no fascismo que, apesar de tudo, permaneceram burgueses ou se tornaram burgueses por contágio constituiu um dos seus pontos fracos. Na medida em que o presente está em causa, com raras exceções, o Italiano comunista médio é nada além de um burguês que vai as ruas (o próprio Lenin disse que um proletário, deixado a si mesmo, tende a torna-se um burguês), assim como um falso cristão e um membro do Partido Democrata Cristão representam nada mais do que a burguesia do templo. Mesmo aqueles que se dizem monarquistas só pode conceber um rei burguês. O pior mal para a Itália é a burguesia: o burguês-sacerdote, o burguês de trabalho, o burguês "nobre", o intelectual burguês. Este tipo é inconsistente, uma substância sem forma, na qual não existe qualquer "acima" e "abaixo". A palavra de ordem ou grito de guerra deveria ser: "limpar a lousa!" Somente seguindo esta máxima uma mudança para a direção errada pode ser evitada.
Depois de mencionar os intelectuais e realismo, ainda é necessário introduzir um ponto. Sugeri que o flerte de alguns intelectuais com o comunismo é paradoxal, uma vez que o comunismo despreza a figura do intelectual, a quem considera como um membro da odiada burguesia. Aliás, uma atitude semelhante pode ser compartilhada mesmo por aqueles que estão na frente oposta ao comunismo. Na verdade, é possível se opor a qualquer valorização exagerada da cultura e da intelectualidade, considerando o que constituem no mundo contemporâneo. Cultuar eles, definir seus representantes como um estrato social mais elevado, quase uma aristocracia - "aristocracia do pensamento", que acredita ser a verdadeira, legitimamente substituindo as formas anteriores da elite e da nobreza, é um preconceito característico da era burguesa em sua esfera humanista ou liberal. A verdade é que esta cultura e o intelectualismo são nada mais que os produtos da dissociação e neutralização dentro de uma ordem mais ampla das coisas. Como isso não passou despercebido, o anti-intelectualismo tem sido quase uma reação biológica, desempenhando um papel relevante nos últimos tempos: infelizmente, tem prosseguido em direções falsas ou problemáticas.
Não vou, no entanto, me debruçar sobre este último ponto, como já discutimos isso em outro contexto, ao lidar com o erro do anti-racionalismo. Aqui só quero salientar que, se desejamos superar a "cultura" burguesa, há um terceiro ponto de referência possível além de ambos intelectualismo e anti-intelectualismo: uma visão de mundo (em alemão - Weltanschauung). A visão de mundo é baseada não em livros, mas em uma forma interna e uma sensibilidade dotada de um caráter inato, ao invés de adquirido. É essencialmente uma disposição e uma atitude, em vez de uma cultura ou de uma teoria - uma disposição e uma atitude que não apenas dizem respeito ao domínio mental, mas também afetam o domínio dos sentimentos e da vontade, forjam o caráter da pessoa, e se manifestam em reações com a mesma certeza instintiva, dando provas de um sentido certo da vida. Normalmente, uma visão de mundo, ao invés de ser uma questão individual, procede de uma tradição e é o efeito biológico das forças que moldaram um certo tipo de civilização; ao mesmo tempo, uma placa para o sujeito [do ponto de vista do sujeito], a visão de mundo se manifesta como uma espécie de "pista interna" e uma estrutura existencial. Em todas as civilizações, era uma "visão de mundo" e não uma "cultura" que permeava os vários estratos da sociedade; onde a cultura e o pensamento conceitual estavam presentes, eles nunca tiveram a primazia, pois sua função era simples meios expressivos e órgãos em serviço da visão de mundo. Ninguém acreditava que o "pensamento puro" revelaria a verdade e forneceria um sentido para a vida: o papel do pensamento consistia em esclarecer o que já se possuía e que já pre-existia como evidências e sentimento direto, antes de qualquer especulação fosse formulada. Os produtos do pensamento tinham apenas valor simbólico, atuando como indicadores. Assim, a expressão conceitual não tinha um caráter privilegiado em relação as outras formas de expressão. Nas civilizações precedentes o último consistia em imagens evocativas, símbolos e mitos. Hoje as coisas funcionam de outra forma, considerando-se o crescimento e a hipertrofia cerebral do homem ocidental. No entanto, é importante não confundir o essencial pelo acessório, e que as relações acima referidas são reconhecidas e retidas; em outras palavras, sempre que a "cultura" e "intelectualismo" estão presentes, eles podem ter um papel apenas instrumental, expressando alguma coisa de mais profundo e mais orgânica, ou seja, uma visão de mundo. A visão de mundo pode encontrar expressão mais clara em um homem sem educação formal do que em um escritor, assim como pode ser mais fortemente representada em um soldado, um aristocrata, ou um agricultor que é fiel à terra do que no intelectual burguês, o típico "o professor", ou o jornalista.
Em relação a tudo isso, a Itália está em desvantagem, pois todos aqueles com o poder na mídia, na cultura acadêmica, em revistas críticas, e que assim, organizam, monopolizando, sociedades reais quasi-maçonicas, são os piores tipos de intelectuais, que nada sabem do significado da espiritualidade, da totalidade humana, ou do pensamento que reflete princípios fortes.
"Cultura" no sentido moderno deixa de ser um perigo apenas quando aqueles que lidam com ela já possuiem uma visão de mundo. Só então será possível uma relação ativa em direção a ela, pois, já terá uma forma interior que lhe permita discernir com segurança o que pode ser assimilado e o que deve ser rejeitado, mais ou menos como acontece em todos os processos diferenciados de assimilação orgânica.
Tudo isso é bastante evidente, ainda que tenha sido mal interpretado sistematicamente pelo pensamento liberal e individualista: uma das calamidades da "cultura livre" disponibilizada a todos e exposta por esta ideologia é o fato de que, desta forma, muitos que são incapazes de discriminação de acordo com o julgamento apropriado, e que ainda não têm sua própria forma e visão de mundo, encontra-se à mercê de influências similares. Esta situação deletéria, que é ostentada como um triunfo e como progresso, procede de uma premissa de que é exatamente o oposto da verdade: presume-se que, ao contrário dos homens que viviam nas épocas "obscurantistas" do passado, o homem moderno é espiritualmente maduro, e, portanto, capaz de julgar por si mesmo e de estar por si só (esta é a mesma premissa da "democracia" moderna em suas polêmicas contra qualquer princípio de autoridade). Mas isso é pura ilusão: nunca antes, como nos tempos modernos, houve tal número de homens que são espiritualmente sem forma, e, portanto, aberto a qualquer sugestão e intoxicação ideológica, de modo a tornar-se dominado por correntes psíquicas (sem estar ciente disso) e de manipulações pertencentes ao clima intelectual, político e social em que vivem. Mas estas considerações nos levariam muito longe.
Minhas observações sobre a "visão de mundo" complementam os aspectos do problema que tenho lidado quando mencionei o novo realismo; elas especificam onde este problema deve ser situado e resolvido, em um modo antiburguês - pois não há nada pior do que uma reação meramente intelectual contra o intelectualismo. Se o nevoeiro levantará, ficará claro que a "visão de mundo" deve ser o fator de unificação ou divisão, demarcando barreiras intransponíveis espiritualmente. Mesmo em um movimento político ela constitui o elemento principal, porque só uma visão de mundo tem o poder de produzir um determinado tipo humano e, portanto, transmitir um tom específico de uma determinada comunidade.


Com o comunismo já houve situações em que algo começou a chegar a tais profundidades. Muito corretamente, um político contemporâneo falou de uma mudança interior e profunda que, por manifestar-se sob a forma de uma obsessão, é produzido naqueles que realmente aderem ao comunismo; seu pensamento e conduta são alterados por ele. Na minha opinião, é uma alteração ou contaminação fundamental do ser humano: em tais casos, afeta o plano da realidade existencial, o que não é o que acontece com aqueles que reagem de posições burguesas ou intelectualistas. A possibilidade de uma ação revolucionária-conservadora depende essencialmente da medida em que a idéia contrária, ou seja, a tradicional, a aristocrática, a ideia anti-proletária, é capaz de atingir tais níveis existenciais - assim dando a um novo realismo e permitindo a Tradição, como uma visão de mundo, para dar forma a um tipo específico de homem antiburguês como o núcleo de novas elites, que ultrapassa a crise de todos os valores individualistas e irrealistas.

Julius Evola - Cavalcare la Tigre

domingo, 16 de novembro de 2014

As Dificuldades do Historicismo (Por Mircea Eliade)

O reaparecimento das teorias cíclicas no pensamento contemporâneo está repleto de significado. Incompetentes que somos para passar julgamento sobre sua validade, devemos nos limitar a observar que a formulação de um mito arcaico, em termos modernos, representa, quando menos, uma traição ao desejo de encontrar um significado e uma justificação trans-histórica para os acontecimentos históricos. Assim, encontramo-nos uma vez mais na posição pré hegeliana, com a validade das soluções "historicistas", de Hegel a Marx, sendo implicitamente questionada. A partir de Hegel em diante, todo esforço é concentrado no sentido de conservar e atribuir um valor ao acontecimento histórico como tal, o acontecimento em si mesmo e para si mesmo. Em seu estudo da Constituição alemã, Hegel escreveu que, se reconhecermos que as coisas são necessariamente como elas são, isto é, que elas não são arbitrárias e nem resultam da casualidade, teremos ao mesmo tempo de reconhecer que elas devem ser como são. Um século mais tarde, o conceito da necessidade histórica vai desfrutar de uma aplicação prática cada vez mais triunfante: na verdade, todas as crueldades, aberrações e tragédias da história têm sido, e ainda são, justificadas pelas necessidades do "momento histórico". Hegel provavelmente não pretendia ir tão longe. Mas, como tinha decidido reconciliar-se com seu próprio momento histórico, considerou-se obrigado a ver em cada acontecimento a vontade do Espírito Universal. Por isso é que ele considerava "a leitura dos jornais matinais como uma espécie de bênção realista da manhã". Para ele, só o contato diário com os acontecimentos podia orientar a conduta do homem em suas relações com o mundo e com Deus.

Como podia Hegel saber o que era necessário na história, o que, conseqüentemente, tinha de ocorrer, do jeito que havia ocorrido? Hegel acreditava saber qual era o desejo do Espírito Universal. Não pretendemos insistir sobre a audácia de suas teses, que, afinal de contas, servem para abolir precisamente aquilo que Hegel pretendia salvar na história — a liberdade humana. Mas existe um aspecto na filosofia da história defendida por Hegel que nos interessa muito, porque ainda preserva algo da concepção judeu-cristã: para Hegel, o acontecimento histórico era a manifestação do Espírito Universal. Agora, é possível encontrar um paralelo entre a filosofia da história, de Hegel, e a teologia da história defendida pelos profetas hebreus: para estes últimos, assim como para Hegel, um acontecimento é irreversível e válido em si mesmo enquanto é uma nova manifestação da vontade de Deus — uma proposta que, verdadeiramente, consideramos revolucionária, do ponto de vista das sociedades tradicionais, dominadas pela eterna repetição dos arquétipos. Portanto, na visão de Hegel, o destino de um povo ainda preservava um significado trans-histórico, porque toda a história revelava uma nova e mais completa manifestação do Espirito Universal. Mas, com Marx, a história lançou fora todo o seu significado transcendental; já não era coisa alguma, além da epifania da luta de classes. Até que ponto uma tal teoria justifica o sofrimento histórico? Para obter uma resposta, precisamos apenas nos voltar, por exemplo, para a patética resistência de um Belinsky ou um Dostoyevski, que perguntavam a si mesmos como, a partir do ponto de vista das dialéticas hegeliana e marxista, seria possível redimir todos os dramas da opressão, dos sofrimentos coletivos, das deportações, humilhações e massacres que enchem a história universal.

No entanto, o marxismo preserva um significado da história. Para o marxismo, os acontecimentos não são uma sucessão de acidentes arbitrários; eles demonstram ter uma estrutura coerente, e, acima de tudo, levam a um propósito definido — à eliminação final do terror da história, à "salvação". Desta maneira, no ponto final da filosofia marxista da história, encontramos a era de ouro das escatologias arcaicas. Neste sentido, é correto afirmar não apenas que Marx "trouxe a filosofia de Hegel de volta à terra", mas também que ele reconfirmou, em um nível exclusivamente humano, o valor do mito primitivo da era de ouro, com a diferença de que coloca a era de ouro no final da história, ao invés de colocá-la também no seu ponto inicial. Para o militante marxista, é aqui que está o segredo do remédio para o terror da história: da mesma forma que os contemporâneos de uma "era obscura" consolavam-se, diante dos seus sofrimentos cada vez maiores, com o pensamento de que o agravamento do mal acelera a libertação final, os militantes marxistas dos nossos dias interpretam o drama provocado pelas pressões da história como um mal necessário, um sintoma premonitório da aproximação da vitória, que colocará um fim permanente a todos os "males" históricos.

O terror da história torna-se cada vez mais intolerável a partir dos pontos de vista proporcionados pelas várias filosofias historicistas. Porque nelas, naturalmente, cada acontecimento histórico encontra seu único e total significado apenas em sua realização. Não precisamos aqui entrar nas dificuldades teóricas do historicismo, que já serviram para perturbar Rickert, Troeltsch, Dilthey e Simmel, e que os recentes esforços de Croce, de Karl Mannheim, ou de Ortega y Gasset conseguiram apenas parcialmente ultrapassar. Este ensaio não exige que discutamos o valor filosófico do historicismo como tal, nem a possibilidade de estabelecimento de uma "filosofia da história" que definitivamente transcendesse ao relativismo. O próprio Dilthey, aos setenta anos de idade, reconheceu que "a relatividade de todos os conceitos humanos é a última palavra da visão histórica do mundo". Em vão ele proclamou uma allgemeine Lebenserfahrung como meio final de transcender a esta relatividade. E foi também em vão que Meinecke invocou o "exame de consciência" como uma experiência transubjetiva, capaz de transcender à relatividade da vida histórica. Heidegger tinha se dado ao trabalho de mostrar que a historicidade da existência humana proíbe toda esperança de transcendermos ao tempo e à história.

Para nossos propósitos, só uma questão deve nos preocupar: como pode o "terror da história" ser tolerado a partir do ponto de vista do historicismo? A justificação de um acontecimento histórico, pelo simples fato de ele ser um acontecimento histórico, em outras palavras, pelo simples fato de ter "acontecido dessa maneira", não caminha no sentido de libertar a humanidade do terror que o acontecimento inspira. Deve-se compreender que não estamos aqui preocupados com o problema do mal, que, independente do ângulo a partir do qual possa ser visto, permanece como um problema filosófico e religioso; estamos preocupados, isto sim, com o problema da história como história, do "mal" que está limitado não pela condição do homem, mas pelo seu comportamento em relação aos outros. Deveríamos querer saber, por exemplo, como seria possível tolerar e justificar os sofrimentos e a aniquilação de tantas pessoas que sofrem e que são aniquiladas pela simples razão de que sua situação geográfica as coloca no caminho da história; por serem vizinhos de impérios que se encontram em estado de permanente expansão. Como justificar, por exemplo, o fato de o sudeste da Europa ter sofrido durante séculos — sendo portanto obrigado a renunciar a qualquer impulso no sentido de uma existência histórica mais elevada, na direção da criação espiritual no plano universal — pela única razão de que estava no caminho dos invasores asiáticos e, mais tarde, vizinho do Império Otomano? E, em nossos dias, quando as pressões históricas já não permitem mais qualquer fuga, como pode o homem tolerar as catástrofes e horrores da história — desde as deportações e massacres coletivos até os bombardeios atômicos — se, além deles, não consegue ver qualquer sinal nem significado trans-histórico; se esses acontecimentos são apenas as jogadas cegas de forças econômicas, sociais ou políticas, ou, pior ainda, unicamente o resultado das "liberdades" que uma minoria toma e exercita de modo direto sobre o cenário da história universal? 

Sabemos como, no passado, a humanidade conseguia suportar os sofrimentos que já tivemos oportunidade de enumerar: eles eram considerados como uma punição aplicada por Deus, a síndrome do declínio da "era", e assim por diante. E era possível aceitar os acontecimentos precisamente porque tinham um significado meta-histórico, porque, para a maior parte da humanidade, ainda apegada ao ponto de vista tradicional, a história não tinha, e nem poderia ter, valor em si mesma. Todos os heróis repetiam o gesto arquetípico, todas as guerras ensaiavam a luta entre o bem e o mal, cada nova injustiça social era identificada com os sofrimentos do Salvador (ou, por exemplo, no mundo pré-cristão, com a paixão de um mensageiro divino ou deus da vegetação), cada novo massacre repetia o glorioso fim dos mártires. Não nos compete aqui decidir se tais motivos eram pueris ou não, nem se uma tal rejeição da história mostrava-se sempre eficaz. Em nossa opinião, só um fato importa: em virtude deste ponto de vista, dezenas de milhões de homens, século após século, foram capazes de suportar enormes pressões históricas sem se desesperar, sem cometer o suicídio nem cair naquela aridez espiritual que sempre traz consigo uma visão relativista ou niilista da história. Além do mais, como já tivemos oportunidade de observar, uma parte considerável da população da Europa, sem falar naquela de outros continentes, ainda vive, hoje em dia, à luz do ponto de vista tradicional, anti-"historicista". Portanto, são as "elites", acima de tudo, que se vêm confrontadas pelo problema, uma vez que apenas elas são forçadas, e cada vez com maior rigor, a tomar conhecimento de sua situação histórica. É verdade que o cristianismo e a filosofia escatológica da história não pararam de satisfazer a uma considerável proporção dessas elites. Até certo ponto, e em relação a determinados indivíduos, pode-se dizer que o marxismo — especialmente em suas formas populares — representa uma defesa contra o terror da história. Somente a posição historicista, em todas as suas variedades e matizes — desde o "destino" de Nietzsche até à "temporalidade" de Heidegger — permanece desarmada. De modo algum se pode considerar apenas como coincidência fortuita que, no caso desta filosofia, o desespero, o amor fati e o pessimismo sejam elevados ao grau de virtudes heróicas e instrumentos de conhecimento.

No entanto, esta posição, embora seja a mais moderna, e, num certo sentido, quase inevitável para todos os pensadores que definem o homem como um "ser histórico", ainda não conseguiu realizar uma conquista definitiva do pensamento contemporâneo. Algumas páginas atrás, tivemos oportunidade de observar diversas orientações recentes que demonstram uma tendência no sentido de reconferir valor ao mito da periodicidade cíclica, e mesmo ao mito do eterno retorno. Essas orientações desprezam não só o historicismo, mas até mesmo a história como tal. Acreditamos dispor de justificativa que nos permite ver nelas, ao invés de uma resistência à história, uma revolta contra o tempo histórico, uma tentativa que visa restaurar esse tempo histórico, carregado que está de experiência humana, a um tempo que é cósmico, cíclico e infinito. De qualquer modo, vale a pena observar que o trabalho de dois dos mais significativos autores de nosso tempo — T. S. Eliot e James Joyce — acha-se saturado de nostalgia pelo mito da eterna repetição e, em última análise, pela abolição do tempo. Também encontramos razão para prever que, do mesmo modo como o terror da história vai piorando, ao mesmo tempo em que a existência se torna mais e mais precária por causa da história, as posições do historicismo irão perdendo cada vez mais o seu prestígio. E, num momento em que a história poderia fazer aquilo que nem o Cosmo, nem o homem, nem a casualidade conseguiram ainda fazer — isto é, aniquilar a raça humana por completo —, talvez estejamos testemunhando uma tentativa desesperada no sentido de proibir os "acontecimentos da história", por intermédio de uma reintegração das sociedades humanas dentro do horizonte (artificial, por ter sido decretado) dos arquétipos e de sua repetição. Em outras palavras, não é de modo algum inadmissível pensar numa época, e uma época não muito distante, na qual a humanidade, para garantir sua própria sobrevivência, ver- se-á reduzida a desistir de qualquer nova tentativa de "fazer" a história, no sentido em que a começou a fazer a partir da criação dos primeiros impérios, limitar-se-á a repetir gestos arquetípicos prescritos, esforçando-se no sentido de esquecer, por serem insignificativos e até perigosos, determinados gestos espontâneos que poderiam trazer consigo algumas conseqüências "históricas" Seria até interessante comparar a solução a-histórica das sociedades futuras com os mitos paradisíacos  ou escatológicos da era dourada do princípio ou do fim do mundo. Mas, como nossa intenção é perseguir essas especulações em outra obra, devemos agora voltar ao nosso problema, ou seja, à posição do homem histórico em relação ao homem arcaico, e procurar compreender as objeções levantadas contra este último, com base na visão historicista.

Mircea Eliade - Le Mythe de l'eternel retour: archétypes et répetition, 1949.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Relações do Ponto e da Extensão (Por René Guénon)

A questão que a última observação levanta merece que nos detenhamos aí um pouco, sem no entanto tratarmos aqui das considerações relativas à extensão com todos os desenvolvimentos que o assunto merece, que caberiam melhor num estudo sobre as condições da existência corporal. O que queremos assinalar, sobretudo, é que a distância de dois pontos imediatamente vizinhos, de que tratamos em razão da introdução da continuidade na representação geométrica do ser, pode ser vista como o limite da extensão no sentido das quantidades indefinidamente decrescentes; em outros termos, ela é a menor extensão possível, aquela após quem não há mais extensão, vale dizer não há mais condição espacial, e que não se pode suprimir sem sair do domínio de existência que está submetido a esta condição. Portanto, a partir do momento em que se divide a extensão indefinidamente, e que se leva essa divisão tão longe quanto possível, ou seja, até os limites da possibilidade espacial pela qual a divisibilidade está condicionada (e que aliás é indefinida tanto no sentido crescente como no decrescente), não é ao ponto que se chega como resultado último, mas sim à distância elementar entre dois pontos. Resulta daí que, para que haja extensão ou condição espacial, é preciso que haja dois pontos, e a extensão (em uma dimensão), que é realizada por sua presença simultânea e que é precisamente a distância entre eles, constitui um terceiro elemento que exprime a relação existente entre estes dois pontos. De resto, esta distância, na medida em que a consideramos como uma relação, não é evidentemente composta de partes, pois as partes nas quais ela poderia ser dividida, se ela o pudesse, constituiriam outras relações de distância, das quais ela é logicamente independente, assim como, do ponto de vista numérico, a unidade é independente das frações. Isto é válido para uma distância qualquer, desde que a encaremos em relação aos dois pontos que são suas extremidades, e o é a fortiori para uma distância infinitesimal, que não é absolutamente uma quantidade definida, mas que exprime apenas uniu relação espacial entre dois pontos imediatamente vizinhos, tais como os dois pontos consecutivos de uma linha qualquer. Por outro lado, os próprios pontos, considerados como extremidades de urna distancia, não são partes do continuum espacial, embora a relação de distância suponha que eles são vistos como situados no espaço; portanto, em realidade, é a distância que é o verdadeiro elemento espacial.

Consequentemente, não podemos dizer, com todo o rigor, que a linha seja formada de pontos, e isto se compreende facilmente, pois, sendo cada um dos pontos sem extensão, sua simples adição, mesmo sendo eles em multitude indefinida, não poderá jamais formar uma extensão; na verdade, a linha é constituída pelas distâncias elementares entre seus pontos consecutivos. Do mesmo modo, e por uma razão semelhante, se considerarmos em um plano uma indefinidade de linhas paralelas, não podemos dizer que o plano seja formado pela reunião de todas essas retas, ou que elas sejam verdadeiros elementos constitutivos do plano; os verdadeiros elementos são as distâncias entre as retas, distâncias pelas quais elãs são retas distintas e não confundidas, e, se as retas formam um plano em um certo sentido, não é por si mesmas, assim como ocorre com os pontos em relação a cada reta. Do mesmo modo ainda, a extensão de três dimensões não é composta por uma indefinidade de planos paralelos, mas das distâncias entre todos esses planos.

Entretanto, o elemento primordial, aquele que existe por si mesmo, é o ponto, pois ele é pressuposto pela distância, sendo esta uma relação; a própria extensão, portanto, pressupõe o ponto. Podemos dizer que este contém em si uma virtualidade de extensão, que ele só pode desenvolver primeiramente desdobrando-se, para colocar-se de certo modo em face de si mesmo, e depois multiplicando-se (ou melhor submultiplicando-se) indefinidamente, de tal sorte que a extensão procede inteiramente desta diferenciação, ou, para falar mais exatamente, dele mesmo na medida em que ele se diferencia. Esta diferenciação, aliás, só tem realidade do ponto de vista da manifestação espacial; ela é ilusória em relação ao ponto principal, que não cessa por isso de continuar sendo o que era, e cuja unidade essencial não poderia nunca ser afetada. O ponto, considerado em si não está absolutamente submetido à condição espacial, porque, bem ao contrário, ele é o seu princípio: é ele que realiza o espaço, que produz a extensão pelo seu ato, o qual, na condição temporal (mas somente nela), traduz-se pelo movimento; mas, para realizar assim o espaço, é preciso que, através de alguma de suas modalidades, ele próprio se situe dentro desse espaço, que de resto não é nada sem ele, e que ele preencherá inteiramente através do desdobramento de suas próprias virtualidades. Ele pode - sucessivamente, na condição temporal, ou simultaneamente, fora dessa condição (o que, diga-se de passagem, nos faria sair do espaço comum tridimensional) - identificar-se, para realizá-los, a todos os pontos dessa extensão, sendo esta então vista apenas como uma pura potência de ser, que não é outra coisa senão a virtualidade total do ponto concebida sob seu aspecto passivo, ou como potencialidade, o lugar ou o continente de todas as manifestações de sua atividade, continente que atualmente não é nada, a não ser pela efetivação de seu conteúdo possível.

O ponto primordial, sendo sem dimensões, é também sem forma; ele não está, portanto, na ordem das existências individuais; ele só se individualiza a partir do momento em que ele se situa no espaço, e isto não em si mesmo, mas apenas através de alguma de suas modalidades, de modo que, a bem dizer, são estas que são propriamente individualizadas, e não o ponto principiai. De resto, para que haja forma, é preciso que haja previamente diferenciação, portanto multiplicidade realizada numa certa medida, o que só é possível quando o ponto se opõe a si mesmo, se podemos dizer assim, por duas ou mais de suas modalidades de manifestação espacial; e esta oposição é aquilo que, no fundo, constitui a distância, cuja realização é a primeira efetivação do espaço, que, sem ela, é apenas pura potência de receptividade. Lembremos ainda que a distância existe, em primeiro lugar, virtualmente ou implicitamente na forma esférica de que falamos acima, e que é esta que corresponde ao mínimo de diferenciação, sendo “isotrópica” em relação ao ponto central, sem nada que distinga uma direção particular em relação a todas as outras; o raio, que é aqui à expressão da distância (tomada do centro à periferia), não é traçado efetivamente e não faz parte integrante da figura esférica. A realização efetiva da distância só é explicitada na linha reta, e enquanto elemento inicial e fundamental desta, como resultado da especificação de uma certa direção determinada; daí por diante, o espaço não pode mais ser visto como "isotrópico", e, deste ponto de vista, ele deve ser reportado a dois pólos simétricos (os dois pontos entre os quais existe a distância), em lugar de sê-lo a um centro único.


O ponto que realiza toda a extensão, como indicamos, torna-se seu centro, medindo-a segundo todas as suas dimensões, pela extensão indefinida dos braços da cruz nas seis direções, ou em direção aos seis pontos cardeais desta extensão. É o “Homem Universal”, simbolizado por esta cruz, mas não o homem individual (pois este, enquanto tal, não pode atingir nada que esteja fora de seu próprio estado de ser), que é verdadeiramente a “medida de todas as coisas”, para empregarmos a expressão de Protágoras que já citamos, mas, bem entendido, sem atribuir ao sofista grego a menor compreensão desta interpretação metafísica.

René Guénon, Les principes du calcul infinitésimal

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A Juventude, os Beats e os Anarquistas de Direita (Por Julius Evola)

Muito tem sido escrito sobre a questão da nova geração e da "juventude". Na maioria dos aspectos, a questão não merece o interesse que tem recebido, e, por vezes, a importância concedida hoje à juventude em geral, associada a um tipo de desvalorização de todos aqueles que não são 'jovens', é um absurdo. Não há dúvidas de que estamos vivendo em uma época de dissolução: a tal ponto que as pessoas se aproximam da condição "sem raízes", para quem a "sociedade" não faz qualquer sentido, nem as normas usadas para regular a vida - as leis da época imediatamente anterior a nossa, que ainda persiste em vários lugares, e que representam apenas os costumes da burguesia. Naturalmente, esta situação é sentida fortemente e especialmente pelos jovens; levantar algumas questões nesse sentido pode ser legítimo. No entanto, o tipo de resposta que se limita a somente ao sofrimento disso tudo, incapaz de libertar-se em virtude de qualquer iniciativa ativa de si mesmo, como poderia ter sido possível para os poucos rebeldes individualistas intelectuais do século anterior, tem de ser isolada e considerada em primeiro lugar e essencialmente.
Desta forma a nova geração está apenas submetida ao estado de coisas; não levanta nenhum problema real e faz um uso completamente estúpido da "liberdade" à sua disposição. Quando este tipo de juventude finge que é mal compreendida, a única resposta que se pode dar é que não há nada para entender sobre o assunto, e que, sob uma ordem normal, seria apenas uma questão de colocar esses jovens de volta para onde pertencem, sem demora, como é feito com as crianças quando sua estupidez se torna cansativa, invasiva e impertinente. O chamado anti-conformismo de algumas das suas atitudes, que em outros aspectos, são bastante banais, segue ainda, um tipo de tendência, uma nova convenção, de tal forma que o resultado é exatamente o oposto de uma manifestação de liberdade. Outros fenômenos que consideramos nas páginas anteriores, como o gosto pela vulgaridade e algumas formas novas de costumes, pode-se, em geral, considerar como característica desse tipo de juventude; alguns proporcionam para ambos os sexos provas de prêmio, ou para os "cantores" epilépticos do momento, ou para as sessões coletivas de fantoches representados pelas sessões de 'yeah, yeah', ou para o 'hit' do momento, e assim por diante, com o correspondente comportamento. A ausência entre eles de qualquer senso de ridículo torna impossível exercer qualquer influência sobre eles, então, de fato, deve-se deixá-los para si em sua própria estupidez, e considere que, se por algum acaso, algumas polêmicas em relação, por exemplo, a emancipação sexual de menores, ou no sentido da família, apareça neste tipo de juventude, estas polêmicas possuem necessariamente nenhuma substância. Como o passar dos anos, a necessidade, para a maioria entre eles, de enfrentar os problemas econômicos da vida material e, sem dúvida quando tais jovens, tendo-se tornados adultos, adaptarão-se às rotinas profissionais, produtivas e sociais de tal mundo como o verdadeiro; De fato, este tipo de juventude passa, assim, de uma forma do nada para outra forma do nada.


Este tipo de "juventude", definida apenas pela idade (pois, neste contexto, seria fora de questão falar de certas possibilidades característicos da juventude, no sentido interior, espiritual) está fortemente estabelecida na Itália. Na Alemanha apresenta um caso muito diferente: as formas estúpidas e decompostas dos quais já falamos são muito menos prevalentes lá; a nova geração parece ter calma e aceitam o fato de uma existência em que nenhum problema deva ser levantado, de uma vida em que nem o bom nem o fim deva ser procurado; eles só pensam em utilizar os recursos e facilidades que o desenvolvimento recente da Alemanha adquiriu. Podemos nos referir a esse tipo de juventude como sendo "despreocupada", esses têm gradativamente deixado muitas convenções para trás, e adquiriram novas liberdades, sem conflitos, mas tudo dentro de uma esfera bidimensional de "factualidade", para o qual qualquer interesse maior, em mitos, em uma disciplina, em uma força-ideia, é desconhecido.

Na Alemanha, isto é provavelmente uma fase de transição, pois voltamos nossa atenção para as nações que foram mais longe na mesma direção, quando o ideal do "Estado de Bem-Estar" está quase alcançado, onde a existência é tida como certa, onde tudo é racionalmente regimentado - pode-se, nomeadamente, referir-se a Dinamarca, a Suécia, e, em parte, para a Noruega - eventualmente, de forma intermitente, reações na forma de erupções violentas e inesperadas acontecem. Estas são incitadas principalmente por jovens. Este fenômeno já é interessante e pode valer a pena examinar.
Mas, a fim de estudar as formas mais comuns devemos concentrar na América, e, em certa medida, na Inglaterra. Na América, os fenômenos de trauma espiritual e revolta da nova geração já surgiram de forma muito clara, em grande escala. Referimo-nos à geração que adquiriu o nome de "geração beat", e sobre o qual já falamos nas páginas precedentes: 'beat', ou 'beatniks', ou mesmo 'hipsters', para citar outra variação. Eles foram os representantes de uma espécie de existencialismo anarquista e anti-social, de um caráter mais prático do que intelectual (deixando de lado certas manifestações literárias, de ordem mais baixa). No momento em que escrevo estas linhas, o período áureo do movimento já passou; praticamente desapareceu da cena, ou se dissolveu. No entanto, ele mantém um significado único, porque este fenômeno está intrinsecamente ligado à própria natureza da presente civilização; enquanto esta civilização persistir, é de se esperar que as manifestações semelhantes apareçam, embora sob variadas formas e denominações. Mais particularmente, a sociedade americana, o que representa, mais do que qualquer outra sociedade, o limite e o reductio ad absurdum de todo o sistema contemporâneo, as formas 'beat' do fenômeno da revolta ganharam um caráter especial, paradigmático, e, portanto, não devem ser considerados como pertencentes ao mesmo nível dos jovens estúpidos, de que já falamos quando consideramos o caso da Itália, em particular.

Do nosso ponto de vista, um breve estudo desses fenômenos se justifica, porque partilhamos a opinião, expressa por um número de 'beats': a saber -  ao contrário do que os psiquiatras, psicanalistas e os "trabalhadores sociais" pensam - em uma sociedade, uma civilização, como o nossa, e, especialmente, como a dos EUA - deve-se em geral admitir que o rebelde, aquele ser que não se adapta, o ser anti-social, é, na verdade, o homem mais são. Em um mundo anormal, os valores esão invertidos: todo aquele que parece anormal, em relação ao meio existente, é, provavelmente, uma pessoa 'normal', no sentido de que nele ainda subsistem vestígios de energia vital integral; e nós não seguimos aqueles que querem 'reabilitar' tais indivíduos, a quem eles consideram como doentes, e 'salva-los' para a 'sociedade'. O psicanalista, Robert Linder, teve a coragem de admitir isso. Do nosso ponto de vista, o único problema diz respeito à definição do que poderíamos chamar de "anarquista de direita". Vamos examinar a distância que separa este tipo para a orientação problemática que quase sempre caracteriza o "não-conformismo" dos "beats" e "hipsters”.

O ponto de partida, isto é, a condição de que determina a revolta do 'beat', é evidente. O sistema é acusado, embora este não empregue formas políticas "totalitárias", que estrangule a vida, ou que ataque as personalidades. Às vezes a questão da insegurança física do futuro é levantada, na forma da opinião de que a própria existência da espécie humana é posta em jogo pela probabilidade de uma eventual guerra nuclear (em proporções apocalípticas); mas o que é sentido principalmente é o perigo de morte espiritual, inerente à adaptação ao sistema atual e as suas forças externas impostas condicionantes (seu 'heteroconditioning'). América é descrita como "um país podre com um câncer que se prolifera em cada uma de suas células" e afirma-se que "a passividade (conformidade), ansiedade e tédio são as suas três características." Nesse clima, a condição do ser sem raízes, a unidade perdida na "multidão solitária", é nitidamente experimentada; "sociedade, vozes vazias, insignificância." Os valores tradicionais foram perdidos, os novos mitos são desmascarados, e esta "desmistificação" mina toda uma nova esperança: "liberdade, revolução social, a paz - são nada além de mentiras hipócritas." "A alienação do eu como condição normal" - tal é a ameaça.

No entanto, já se pode notar a diferença mais importante do tipo 'anarquista de direita': o beat não reage ou se rebela partindo do positivo - isto é, ter uma idéia precisa de como a ordem normal e sã seria, e firmemente apoiando-se em alguns valores fundamentais. Ele reage instintivamente, de forma confusa, existencial, contra a situação, de um modo semelhante ao que ocorre em certas formas de reação biológica. Por outro lado, o "anarquista de direita" sabe o que quer, ele tem uma base para dizer" não ". O 'beat', em sua revolta caótica, não só carece de tal base, mas, provavelmente, rejeitaria, também, se fosse indicado. É por isso que as frases, "rebelde sem bandeira", ou "rebelde sem causa", podem realmente apelar para ele. Isto implica uma fraqueza fundamental, em que o 'beat' e o 'hipster', apesar de seu medo de ser 'hetero-condicionado', isto é, estar sujeito a forças impostas externamente condicionadas, na verdade correm precisamente esse perigo, pois suas atitudes são motivadas pela situação existente (no sentido de serem meras reações). Aceitando tudo, de forma impassível, de forma fria, seria uma atitude mais consistente.

Portanto, quando o 'beat', além de seu protesto e revolta direcionado ao exterior, considera o problema real de sua vida interior pessoal, e procura resolvê-lo, ele inevitavelmente se encontra em terreno escorregadio. Na falta de um centro concreto interior, atira-se para a busca de emoções, obedecendo a impulsos que o fazem regredir em vez de desenvolver, enquanto ele busca todas as formas possíveis para preencher o vácuo e a obscuridade da vida sem sentido. Um precursor dos "beats", Henry Thoreau, tomou o mito do homem natural de Rousseau, de um voo na natureza, para propor uma solução que é ilusória; uma fórmula que é muito simples, e essencialmente insípida. No entanto, há aqueles que seguiram este caminho, para um estilo de vida neo-primitivo boêmio, o nomadismo, e malandragem (como personagens de Kerouac); que procurou desordem e o caráter imprevisível de uma existência que abomina todas as linhas pré-ordenadas da ação, e toda a disciplina, em favor de uma tentativa de tomar todo o momento a plenitude da vida e da existência (pode-se referir aos primeiros romances mais ou menos autobiográficos de Henry Miller: "queimando a consciência do presente, nem com um "bom" ou um "mau").



A situação agrava-se ainda mais com o recurso a soluções extremas: ou seja, se busca preencher o vazio interior e sentir-se 'real', na busca para provar a si mesmo digno de uma liberdade superiores ("o que eu, sem lei e sem qualquer obrigação"), por meio de ações violentas e criminosas, que são dadas no sentido de uma afirmação de si mesmo, ao invés de apenas atos extrema resistência e protesto contra a ordem estabelecida, contra o que é normal e racional. Assim se gera uma base "moral" para a criminalidade desenfreada, sem motivos materiais ou afetivos, impulsionados somente por uma "necessidade desesperada de valor", porque tem que "provar a si mesmo que é um homem", que "não tem medo de si mesmo", "cortar com a morte e o além". O uso de tudo frenético, irracional e violento - a "violência frenética para criar ou destruir" - entram em jogo.

Aqui, o caráter ilusório e equívoca das soluções deste tipo emerge claramente. É óbvio que, nesses casos, a busca de sensação vital intensificada serve quase sempre como um substituto ilusório para um verdadeiro sentido do Eu. Ao discutir atos extremos e irracionais, vamos, além disso, mostrar que esta não é apenas, por exemplo, uma questão de ir para a rua e atirar em transeuntes aleatoriamente (como André Breton propôs uma vez para os 'surrealistas'), ou de estuprar a própria irmã mais nova, mas também, talvez, se afastar, ou destruir, tudo o que se possui, ou arriscar a vida para salvar um estranho estúpido. É preciso, portanto, ser capaz de discernir se o que se vê como um ato extremo 'gratuito' não seja dirigido por impulsos ocultos, cujo o indivíduo pode ser escravo, ao invés de algo que atesta, e concretiza, a liberdade superior. Em geral, há uma ambivalência considerável dentro do individualista anarquista: "ser você mesmo, livre de vínculos", mesmo permanecendo escravo de si mesmo. A observação de Herbert Gold de tais casos, carente de auto-exame, é, sem dúvida, correta: "O hipster é uma vítima da pior forma de escravidão, o escravo que, inconsciente e orgulhoso de sua condição de servidão, chama isso a liberdade."

Ainda há mais. Muitas das experiências intensas que poderiam dar ao "beat" uma sensação fugaz de "realidade" faz dele, em essência, muito menos "real", porque elas condicionam-o. Wilson traz essa situação de forma muito clara, por meio de um personagem em seu já mencionado livro. Este personagem executa, de uma forma bastante "beat", uma série de assassinatos sádicos de mulheres, a fim de sentir-se "reintegrar", para escapar frustração, "porque ele foi frustrado em sua busca de seu direito de ser um deus”, e acaba revelando-se como um ser partido e irreal. "Como um paralítico que sempre precisa de estimulantes mais fortes e para quem nada importa ... Achei que o assassinato era apenas uma expressão de revolta contra o mundo moderno e suas emboscadas, porque quanto mais se fala da ordem e da sociedade, maior a taxa de crime. Eu pensei que seus crimes eram um ato desafiador... isso estava longe de ser o caso - ele mata, pela mesma razão que leva o álcool para si: porque ele não pode fazer sem ele". O mesmo se aplica, naturalmente, para outras experiências extremas.

Nós podemos, na passagem, relembrar, de modo a estabelecer novamente as distinções precisas, que o mundo da Tradição também estava familiarizado com o "Caminho da Mão Esquerda" - um caminho do qual já falamos em outro lugar, que inclui violar a lei, destruição e a experiência orgiástica de várias formas, mas a partir de uma orientação positiva, sagrada e 'sacrificial', "para o que está em cima", para a transcendência de todas as limitações. Este é o oposto da busca de sensações violentas simplesmente porque se está internamente espancado e inconsistente, apenas com o intuito de prolongar a sensação de existência, de uma forma ou de outra. É por isso que o título do livro de Wilson, "O Ritual no Escuro", é muito apropriado: ele descreve um modo de celebração, dentro de um reino de sombra, sem luz, o que poderia ter tido sentido, em um contexto diferente, de um rito de transfiguração.

Da mesma forma, os "beats" frequentemente utilizaram certas drogas, procurando assim induzir uma ruptura, uma abertura, além da consciência comum. E isso, com as melhores intenções. No entanto, um dos principais representantes do movimento, Norman Mailer, chegou a reconhecer o "jogo de dados" implícito no uso de drogas. Além da "lucidez superior", da percepção da "nova, fresca e original da realidade, agora desconhecida para o homem comum", aquela que alguns aspiram pelo uso de drogas, há o perigo de "paraísos artificiais", de render-se a formas de voluptuosidade em êxtase, de sensação intensa, e até mesmo visões, desprovidas de qualquer conteúdo espiritual ou revelador, e seguidas de depressão uma vez que se retorna à normalidade, o que só agrava a crise existencial. O fator determinante aqui é a atitude subjacente assumido pelo próprio ser: este quase sempre decide o efeito de tais drogas, em um sentido ou outro. No relato, pode-se referir, por exemplo, dos efeitos da mescalina, descrito por Aldous Huxley (autor já familiarizado com a metafísica tradicional), que se sentia capaz de fazer uma analogia com certas experiências de alto misticismo, ao contrário dos efeitos totalmente banais descritos por Zaehner (o autor quem já citado em nossa crítica Cuttat), que queria repetir experiências de Huxley, com o objetivo de "controlar", mas a partir de uma equação pessoal e atitude completamente diferente. No entanto, dado que o "beat" é um ser profundamente traumatizado, que se lançou em uma busca confusa de 'imprevistos', não se deve esperar nada de muito positivo do uso de drogas. A outra alternativa certamente prevalecerá revertendo os ganhos aparentes iniciais. Além disso, o problema não é resolvido por aberturas escapistas esporádicas na "Realidade", na sequência da qual nos encontramos mergulhados de volta a uma vida privada de significado. Que as premissas essenciais para se aventurar neste terreno são inexistentes é evidente a partir do fato de os"beats" e "hipsters" em grande parte eram jovens, sem a maturidade necessária, evitando toda a auto-disciplina por princípio.

Algumas pessoas afirmaram que o que os 'beats', ou pelo menos alguns deles, obscuramente procuraram, era em essência, uma nova religião. Mailer, disse: "Eu quero que Deus me revele o seu rosto," radicalmente afirmou que eles são os precursores de uma nova religião, que seus excessos e revoltas são formas transaccionais, que "poderia dar à luz amanhã uma nova religião, como o Cristianismo" Tudo isso soa como conversa fiada e, hoje, agora que a avaliação pode ser feita, não existem tais resultados visíveis. É bastante claro que aquilo essas forças carecem são precisamente os pontos superiores e transcendentes de referência, similares aos das religiões, capazes de proporcionar um apoio e uma orientação correta. "Eles buscam por um credo que os salvem", como alguém disse, mas "Deus não está sob ameaça de morte" (Mailer, referindo-se ao Deus da religião teísta ocidental). É por isso que as pessoas que foram chamadas de "místicos beat" buscaram em outras partes, tornaram-se atraídos pela metafísica oriental e, especialmente, no Zen, como já mencionado em outro capítulo. No entanto, em relação a este último ponto, há motivos para questionar as motivações envolvidas. O Zen exerceu influência sobre os indivíduos em questão, especialmente, por causa das súbitas aberturas iluminadoras na Realidade (através do satori), a explosão e rejeição de todas as superestruturas racionais, e da irracionalidade pura, a demolição implacável de todos os ídolos, e dos eventuais meios violentos, poderiam produzir. Pode-se entender que tudo isso atrairia bastante o ocidental jovem desenraizado, que não pode tolerar qualquer disciplina, que vive de aventuras, e que está em um estado de rebelião. Mas a realidade é que o Zen pressupõe tacitamente uma orientação anterior, ligada a uma tradição secular, e os ensaios muito difíceis não são excluídos. Poderá ser suficiente ler a biografia de alguns mestres zen: Suzuki, que foi o primeiro a introduzir essas doutrinas no Ocidente, literalmente falou de um "batismo de fogo", como preparação para o satori. Arthur Rimbaud expôs um método de se tornar um vidente, através de "desarranjo sistemático dos sentidos", e não descarta a possibilidade de que, em uma vida absolutamente, mortalmente, aventureira, mesmo sem um guia, procedendo sozinho, 'aberturas' do tipo que alude o Zen poderiam acontecer. Mas estas seriam sempre exceções, que, de fato, incorporam um certo caráter miraculoso, como se estivesse predestinado, ou sob a proteção de um bom daemon. Pode-se suspeitar que o motivo por trás da atração que o Zen e semelhantes doutrinas são capazes de exercer sobre 'beats' é esta: os 'beats' supõem que essas doutrinas dão uma espécie de justificação espiritual para a sua disposição anárquica puramente negativa, no sentido da pura desordem, o que lhes permite escapar a tarefa inicial, que, no seu caso, se resume a dar-se uma forma interna. Essa necessidade confusa de um ponto superior e supra-racional de referência, e, como alguém já disse, um meio de aproveitar "o segredo chamado do ser", também é completamente desviante, quando esse "ser" é confundida com a 'Vida', seguindo teorias como as de Jung e Reich, e quando se vê no orgasmo sexual, e na entrega ao tipo crises degeneradas e Dionisíaca, por vezes, oferecido pelo jazz, e outros caminhos adequados para 'sentir-se real ", de entrar em contato com a Realidade.

Com relação ao sexo, repetimos o que já disse acima, no capítulo XII, ao analisar as perspectivas dos precursores da "revolução sexual". Um dos personagens de Wilson do já citado romance interroga-se se "a necessidade sentida por uma mulher não é apenas a necessidade em nós por aquela intensidade", se o impulso maior, rumo a uma liberdade suprema, não é obscuramente manifestado no impulso sexual. Esta questão poderia ser legítima. Já lembramos que a concepção não-biológica e não sensacionalista, mas, em certo sentido, transcendente da sexualidade, tem, de fato, antecedentes precisos e não-extravagantes em ensinamentos tradicionais. No entanto, é preciso consultar a discussão já apresentada sobre este assunto em "A Metafísica do Sexo", onde sublinhamos a ambivalência da experiência sexual, ou seja, o positivo ou negativo "des-realização" e "des-condicionamento" das possibilidades ali contidas. No entanto, quando o ponto de partida é uma espécie de angústia existencial, ao ponto em que o 'beat' parece obcecado com sua incapacidade de atingir "o orgasmo perfeito '(como descrito nas vistas acima mencionados por Wilhelm Reich, e, em parte, por DH Lawrence, que afirmou ver no sexo um meio de integrar-se na energia primordial da vida) - em tais casos, não há motivos para pensar que os conteúdos negativos e dissolucionários da experiência sexual irão predominar, também porque as condições existenciais preliminares necessárias para o oposto ser verdade são inexistentes: o sexo e a força corrente do orgasmo irá possuir o eu, e não vice-versa, como deve ser o caso, se isso fosse servir como um caminho. O mesmo vale para drogas: uma geração jovem desperdiçada não pode lidar com experiências deste tipo (que também são considerados pela Via da Mão Esquerda). Quanto à liberdade sexual plena, como revolta simples e não-conformidade, é estupidez, e não tem nada a ver com o problema espiritual.

Infelizmente, não há muito para se extrair numa análise do que os 'beats' e 'descolados' têm buscado, em um plano individual e existencial, como uma contrapartida a uma revolta legítima contra o atual sistema, para preencher o vazio, e resolver o problema espiritual. A situação de crise continua. Apenas em casos excepcionais, pode-se encontrar algo de valor positivo, no caso de um "anarquista de direita". É certo que o problema é um problema de material humano. Quanto à prática do não-conformismo, destruição dos mitos, dissociação fria em frente a todas as instituições burguesas: não pode haver objeção, se tal curso é seriamente seguido pela nova geração. Seguindo o desejo de alguns representantes da 'beat' geração, nós não rejeitamos seu movimento como uma tendência passageira. Nós apenas consideramos em seus aspectos mais característicos; seu problema característico é uma expressão natural da época atual. Seu significado permanece, apesar de suas formas terem deixado de existir nos Estados Unidos, ou de apresentar qualquer sedução especial para a juventude.

Gostaríamos agora de considerar o problema da geração mais jovem um pouco mais especificamente. Há jovens que se revoltam contra a situação sócio-política na Itália, e que estão, ao mesmo tempo interessado no que chamamos, em geral, o mundo da Tradição. Enquanto, por um lado, eles se opõem às forças de esquerda e ideologias que invadem perigosamente no plano prático, por outro lado, eles olham para horizontes espirituais, e tomam algum interesse nos ensinamentos e disciplinas da sabedoria antiga. Temos, assim, forças que estão potencialmente 'em guarda'. O problema é chegar com as direções que são capazes de dar uma orientação positiva para a sua atividade.

O nosso livro 'Ride the Tiger ", considerado por alguns como um "manual para o anarquista de direita", resolve o problema até certo ponto, na medida em que se trata essencialmente - uma coisa que não tem sido salientada suficiente - apenas para um tipo diferenciado e bastante específico de homem, com um alto nível de maturidade. Consequentemente, as orientações oferecidas no livro nem sempre são adaptados, ou, em geral, realizáveis, para a categoria de jovens a que acabamos de aludir.
A primeira coisa a recomendar a esses jovens é a prudência em relação a todas as formas de interesse ou entusiasmo que pode ser de origem meramente biológica, isto é, devido à sua idade. Deve ser visto se a sua atitude permanecerá inalterada com a chegada da idade adulta, quando terão de resolver os problemas concretos da existência. Infelizmente, a nossa experiência pessoal mostrou-nos que este é raramente o caso. Na virada do, digamos, seus trinta anos, apenas alguns mantêm as mesmas posições.

Já falamos de uma juventude que não é apenas biológica, mas que também tem um aspecto espiritual interno, não necessariamente condicionada pela idade. Essa juventude superior pode, contudo, manifestar-se nos outros jovens. Não iremos dizer que é caracterizada por "idealismo", pois o termo é usado e ambíguo, e devido a capacidade de "desmistificar" ideais, ao aproximar-se do nível dos valores convencionais, é uma qualidade que esses jovens compartilhem com outras correntes de uma orientação bastante diferente. Preferimos falar de uma certa capacidade de entusiasmo e élan, a devoção incondicional e desprendimento de existência burguesa e de interesses puramente materiais e egoístas. Preferimos falar de uma certa capacidade de entusiasmo e élan, a devoção incondicional e desapego da existência burguesa e de interesses puramente materiais e egoístas. No entanto, a primeira tarefa é assimilar aquelas disposições que, entre as melhores, se desenvolvem em paralelo com a juventude física, fazer delas qualidades permanentes, resistindo a todas as influências opostas ao que se está fatalmente exposto com a idade. Quanto à não-conformismo, a primeira coisa necessária é um estilo de vida que é estritamente anti-burguês. Em seu primeiro período, Ernst Jünger não tinha medo de escrever: "É melhor ser um delinquente do que um burguês"; não estamos dizendo que esta fórmula deve ser tomada ao pé da letra, mas indica uma orientação geral. Na vida diária é preciso também ter cuidado com as armadilhas apresentadas pelos assuntos sentimentais, como casamento, família, e tudo o que pertence às estruturas residuais de uma sociedade visivelmente absurda. Esse é um ponto fundamental. Por outro lado, para o tipo em questão, certas experiências, como o caráter problemático que vimos no caso dos 'beats' e 'hipsters', não podem oferecer os mesmos perigos.

Para contrapor o peso da auto-disciplina, essa juventude tem de desenvolver um gosto pela auto-disciplina que é livre de formas, desligada de qualquer necessidade social ou "pedagógica". Esta dificuldade é causada pelo fato que tal formação pressupõe, como um ponto de referência, certos valores, enquanto a juventude rebelde rejeita todos os valores, todas as "morais", da sociedade atual, e da sociedade burguesa, em particular.

Entretanto, aqui, uma distinção deve ser feita. Há valores que possuem um caráter conformista, e uma justificativa inteiramente externa, social - para além de certos "valores" que permanecem como tal, porque suas fundações originais estão irremediavelmente perdidas. Por outro lado, certos outros valores são oferecidos apenas como suportes, para garantir ao ser uma verdadeira forma e firmeza. Coragem, lealdade, franqueza, o desgosto por ter mentido, a incapacidade de trair, a superioridade a todo egoísmo mesquinho e todo o interesse inferior, pode ser contado entre os valores que, em certo sentido, estão acima do "bem" e do "mal", e que estão em uma 'não-moral', um plano ontológico: precisamente porque eles fornecem a base para um 'eu', ou reforçá-o, contra a condição apresentada pela natureza instável, fugitiva e amorfa. Aqui não existe qualquer obrigatoriedade. A disposição natural do indivíduo por si só deve decidir. Para usar uma imagem, a natureza nos presenteia com tantas substâncias que tenham atingido a cristalização completa, como aqueles cristais imperfeitos e incompletos, misturadas com gangas frágeis (o mineral ou substância de terra associado com minério metálico). Claro, não chamaremos o primeiro de "bom" e o segundo de "ruim", num sentido moral. Em verdade eles são diferentes graus da "realidade". O mesmo vale para o ser humano. O problema da formação dos jovens, e seu amor para a auto-disciplina, deve ser medido nesse plano, além de todos os critérios e valores da moral social. F. Thiess com razão escreveu: "Existe vulgaridade, mesquinhez, baixeza, animalidade, traição, assim como existe a prática estúpida da virtude, a intolerância, o respeito conformista com a lei. O primeiro vale tão pouco quanto o último.".

Em geral, cada juventude é caracterizada por um excesso de energias. A questão do seu uso surge em mundo como o nosso. A este respeito, pode-se considerar em primeiro lugar o aspecto do desenvolvimento externo, físico do processo de "formação". Faríamos bem em não recomendar a prática de esportes modernos em sua quase totalidade. O esporte é de fato um dos fatores típicos da brutalização das massas modernas, e um caráter vulgar é quase sempre associado a ele. Mas certas atividades físicas particulares podem ser admitidas. Um exemplo é oferecido pelo montanhismo de alta altitude, desde que possam ser restaurados à sua forma original, sem as ajudas técnicas e a tendência à pura acrobacia que deformou e tornou-o um pouco materialista nos últimos tempos. Pára-quedismo também pode oferecer possibilidades positivas - em ambos os casos, a presença do fator de risco é um apoio útil para o fortalecimento interior. Como outro exemplo, pode-se mencionar artes marciais japonesas, desde que haja a oportunidade de aprender de acordo com sua tradição original e não sob as formas que hoje em dia são difundidas no Ocidente - formas privadas de qualquer contraparte espiritual, graças ao domínio dessas atividades estarem ligados às formas sutis de disciplina interna e espiritual. Nos últimos tempos, certas corporações de estudantes da Europa Central, o Korpsstudenten praticaram o Mensur - ou seja, duelos cruéis, mas não fatais, seguindo normas precisas (com cicatrização faciais como marcas) - com o objetivo de desenvolver a coragem, firmeza, intrepidez , resistência a dor física. Enquanto certos valores de uma ética superior, da honra e da camaradagem foram privilegiados, evitando certos excessos eventuais, essas corporações ofereceram várias possibilidades. Mas tendo os contextos sócio-culturais desaparecidos, qualquer coisa desse tipo hoje em dia na Itália, é impensável.

A superabundância de energias também pode levar a várias formas de "ativismo" no domínio sócio-político. Nestes casos, um sério exame é essencial, em primeiro lugar para garantir que um eventual envolvimento com certas ideias que se opõem ao clima geral não são somente uma forma de gastar energia (ainda mais quando, em diferentes circunstâncias, até mesmo ideias muito diferentes poderiam servir ao mesmo objetivo): o ponto de partida e a força motor são uma verdadeira identificação com essas ideias, atingindo à base de um reconhecimento de seu valor intrínseco. Dito isto, em relação a qualquer tipo de ativismo, a dificuldade é que, mesmo se o tipo de juventude que nos referimos compreenda quais idéias valem a pena lutar, dificilmente poderiam encontrar, no clima atual, as frentes, partidos ou grupos políticos que verdadeiramente e intransigentemente defendem idéias desse tipo. Outra circunstância - dada a fase em que estamos atualmente, a luta contra movimentos políticos e sociais que hoje dominam possui poucas chances de alcançar resultados globais apreciáveis - tem pouco peso na análise final, porque aqui a norma deve ser fazer aquilo que deve ser feito, enquanto disposto a lutar, eventualmente, até mesmo por posições perdidas. De qualquer forma, afirmar hoje uma "presença" pela ação sempre será útil.

Quanto ao ativismo anarquista de mero protesto, este pode variar de certas manifestações violentas rotuladas como "pertencente ao underground", como aquelas dos jovens de certas nações (já discutimos o caso dos países do Norte da Europa onde reina o estado de "bem estar social"), até atos terroristas, como aqueles utilizados pelos anarquistas políticos niilistas da 'velha guarda'. Devemos excluir os motivos de certos 'beats', isto é, o desejo de uma ação violenta só por querer uma sensação que ela traz - mesmo no contexto de uma simples tomada de energias, tal ativismo parece infundado. Certamente, se pudessem organizar hoje uma espécie ativa de "Santo Vehm", capaz de manter os principais responsáveis pela subversão contemporânea em um estado de insegurança física contínua, seria algo excelente. Mas isso não é algo que os jovens possam organizar, e, além disso, o sistema defesa da atual sociedade é muito bem construído para que essas iniciativas não sejam interceptadas desde o início, e o preço pago é muito alto.

Um ponto final deve ser considerado. Na categoria de jovens que estamos atualmente discutindo, que, no contexto do mundo atual, podem ser definidos como "anarquistas de direita", encontramos alguns indivíduos que, ao mesmo tempo, com as perspectivas de realização espiritual que foram apresentadas por sérios proponentes do movimento tradicionalista, com referências as antigas doutrinas sapienciais e iniciáticas, possuem uma atração. Isso é algo muito mais sério que o interesse ambíguo exercido pelo irracionalismo de um mal entendido entre alguns 'beats' americanos, talvez somente por conta de uma diferente qualidade das fontes de informação. Tal atração é compreensível, se consideramos o vácuo espiritual que tem sido criado, após a decadência das formas religiosas que dominaram o ocidente e o questionamento de seu valor. Distinto destes, pode-se observar que existe uma aspiração a algo muito superior, e não por substitutos inúteis. No entanto, quando se fala da juventude, não devemos nutrir aspirações demasiadamente ambiciosas e distantes da realidade. Não é preciso somente ter a maturidade exigida; o que também deve ser levado em conta é o fato que o caminho que nós indicamos nos capítulos anteriores (XI e XV) requer, e sempre exigiu, um pré-condicionamento particular, algo semelhante ao que é conhecido como uma 'vocação', em um sentido específico, dentro das ordens religiosas. Sabe-se que nestas ordens uma certa quantidade de tempo é permitido para que o novato possa verificar a autenticidade de sua vocação. Aqui, devemos repetir o que dissemos antes sobre a vocação mais geral que se pode sentir como um jovem: é preciso verificar se ele se fortalece em vez de enfraquecer com a idade.

As doutrinas a que nos referimos não podem dar à luz as ilusões patrocinados pelas muitas formas impuras do neo-espiritualismo contemporâneo - teosofia, a antroposofia, etc - ou seja, a ideia de que o maior objetivo está dentro do alcance de todos, e a realização por este ou aquele expediente; ao contrário, deve antes aparecer como um distante divisor de águas, alcançado apenas por um longo caminho, difícil e perigoso. Apesar disso, podemos sempre indicar, para aqueles que nutrem um interesse sério, algumas tarefas preliminares e momentâneas. Em primeiro lugar, poderiam dedicar-se a uma série de estudos sobre sua visão geral da vida e do mundo, que é a contrapartida natural dessas doutrinas, de modo a adquirir uma nova formação mental, que corrobora de forma positiva o "não" que devem pronunciar a tudo o que existe hoje, e para eliminar as várias intoxicações graves pela cultura moderna. A segunda fase, a segunda tarefa, seria ultrapassar a fase puramente intelectual, fazendo um certo conjunto "orgânico" de ideias, que determinam uma orientação existencial fundamental e dar, assim, o sentimento de uma segurança indestrutível e inalterável. Um jovem que gradualmente chegou a esse patamar já teria ido muito longe. Pode-se deixar indeterminado o "sim" e o "quando" a terceira fase, em que, mantendo a tensão original, certos atos de "descondicionamentos" podem ser analisados em respeito ao limite humano. A este respeito, fatores imponderáveis entram em jogo e a única coisa razoável a se conseguir é uma preparação adequada. Esperar resultados imediatos em sua juventude é um absurdo.



Várias experiências nos convenceu que estas breves considerações e esclarecimentos finais não são desnecessários, embora, obviamente, dizem a respeito de um grupo bastante diferenciado da juventude não conformista: daqueles que com precisão perceberam o problema espiritual específico. Assim, temos ido muito além do que é comumente chamado de "o problema da juventude". O "anarquista de direita" pode ser concebido como um tipo suficientemente distinto e compreensível, em oposição à juventude estúpida, dos rebeldes "sem causa", e aqueles que se oferecem para a aventura, para realizar experiências que proporcionam nenhuma solução real, nenhuma contribuição positiva, uma vez que ainda não tem uma forma interna. Em todo rigor, pode-se objetar que essa forma é uma limitação, uma forma de escravidão e que contradiz com a pretensão inicial, a liberdade absoluta do anarquismo. Mas, uma vez que é bastante improvável que alguém que faça tal objeção tenha em mente a transcendência, no sentido real e pleno da palavra - o sentindo que este termo tem, por exemplo, na alta ascese - só é preciso responder que a outra alternativa diz respeito a uma juventude "queimada", de tal maneira que nenhum centro sólido resistiu a prova representada pela dissolução geral, pode muito bem ser considerada como um produto existencial puro da mesma dissolução, de modo que essa juventude se ilude muito em pensar que é realmente livre. Essa juventude, seja rebelde ou não, atrai pouco interesse de nós, e não há nada para ser feito com ela. Ela só pode servir como um estudo de uma patologia dentro de um quadro geral da época.

Julius Evola em L'Arco e la Clava (1968)