segunda-feira, 14 de abril de 2014

Características essenciais da Metafísica (Por René Guénon)

Enquanto o ponto de vista religioso necessariamente implica a intervenção de um elemento proveniente da ordem sentimental, o ponto de vista metafísico é exclusivamente intelectual; apesar de nossa parte acharmos que tais sinais são suficientemente claros, para muitas pessoas, esta forma pode parecer descrever o ponto vista metafísico de forma inadequada, por ser estranho aos ocidentais, de modo que algumas explicações adicionais não serão desnecessárias. Ciência e filosofia, tais como são encontradas no mundo ocidental possuem, também, de fato, pretensões para a intelectualidade; se não reconhecermos que essas afirmações são bem fundamentadas e mantemos que um abismo separa todas as especulações deste tipo da metafísica, é porque a intelectualidade pura, tal como a entendemos, é algo muito diferente das ideias bastante vagas que passam normalmente sob esse nome.

Importa explicitar em primeiro lugar que, ao adotar o termo "metafísica", não estamos muito preocupados com a origem histórica da palavra, que está aberta a algumas dúvidas, e que ainda tem de ser considerada puramente acidental se admitir a opinião, definitivamente improvável, na nossa opinião, segundo a qual a palavra foi usada pela primeira vez para designar aquele que vai "além da física" nas obras completas de Aristóteles. Do mesmo modo, não precisamos nos preocupar com várias outras interpretações bastante rebuscadas que certos autores ajustam para associar essa palavra em momentos diferentes; estas não são razões, no entanto, para desistir de seu uso, pois, tal como ela é, é muito bem adequada para o que deveria normalmente expressar, pelo menos em relação a qualquer outro termo emprestado das línguas ocidentais. Na verdade, tomado em seu sentido mais natural, mesmo etimologicamente, denota o que quer que resida "além da física"; a palavra "física", aqui, deve ser tomada para indicar as ciências naturais vistas como um todo e consideradas de uma forma muito geral, como sempre foram vistas pelos antigos; não se deve ser tomada para se referir a uma dessas ciências em particular de acordo com o significado restrito em voga nos dias de hoje. É, portanto, com base em tal interpretação que fazemos uso do termo "metafísica", e devemos deixar claro de uma vez por todas que, se persistimos em sua utilização, é apenas pelas razões já dadas e porque consideramos que é sempre indesejável recorrer a neologismos, exceto em casos de extrema necessidade.


Agora podemos afirmar que a metafísica, entendida desta forma, é essencialmente o conhecimento do Universal, ou, se preferir, o conhecimento dos princípios pertencentes à ordem universal, que, aliás, sozinha pode validamente reivindicar em nome dos  princípios; mas ao fazer tal afirmação, não estamos realmente tentando propor uma definição da metafísica, pois tal coisa é uma pura impossibilidade em razão de sua própria universalidade que observamos como principal dentre suas características, a partir da qual todos as outras são derivadas. Na realidade, apenas algo que é limitado é capaz de definição, ao passo que a metafísica é, pelo contrário, por sua própria natureza, absolutamente ilimitada, e simplesmente por este motivo não nos permite encaixá-la dentro de uma fórmula mais ou menos estreita; e, uma definição neste caso, seria ainda mais imprecisa, ainda que fosse a mais exata que se pudesse fazer.

É importante notar que temos falado do conhecimento e não da ciência; nosso propósito ao fazer isso é enfatizar a distinção radical que deve ser feita entre a metafísica, por um lado, e as várias ciências, no sentido próprio da palavra, do outro, ou seja, todas as ciências particulares e especializadas, que são direcionados para o estudo deste ou daquele determinado aspecto de coisas individuais. Fundamentalmente, esta distinção não é outra senão aquela, entre as ordens universais e individuais, uma distinção que não tem como ser jamais encarada como uma oposição, uma vez que não pode haver nenhuma medida comum nem qualquer relação possível de simetria ou coordenação entre os dois termos. De fato, nenhuma oposição ou conflito de qualquer tipo entre a metafísica e as ciências é concebível, precisamente por seus respectivos domínios serem amplamente separados; e exatamente a mesma coisa se aplica ao relacionamento entre a metafísica e a religião. Deve, contudo, ser entendido que a divisão em questão não concerne tanto com as coisas da mesma forma como os pontos de vista a partir do qual são considerados. É fácil de ver que o mesmo objeto pode ser estudado por diferentes ciências sob diferentes aspectos; da mesma forma, tudo o que possa ser examinado a partir de um ponto de vista individual e particular pode, por uma transposição adequada, igualmente ser considerado do ponto de vista universal (que não deve ser considerado como um ponto de vista especial), e o mesmo se aplica no caso de coisas incapazes de serem consideradas a partir de um ponto de vista individual qualquer. Desta forma, pode-se dizer que o domínio da metafísica engloba todas as coisas, o que é uma condição indispensável de seu ser verdadeiramente universal, da forma que necessariamente deve ser; os respectivos domínios das diferentes ciências permanecem, no entanto, distinto do domínio da metafísica, pois este último, não ocupa o mesmo plano que as ciências especializadas, e é de modo algum análogo a elas, de modo que não pode haver qualquer motivo para fazer uma comparação entre os resultados obtidos por esse e aquele.

Por outro lado, o reino metafísico certamente não consiste daquelas coisas das quais as várias ciências falharam em tomar conhecimento simplesmente porque o seu estado atual de desenvolvimento está mais ou menos incompleto, como é suposto por alguns filósofos que dificilmente podem ter percebido o que está em questão aqui; o domínio da metafísica consiste em aquilo que, por sua própria natureza, encontra-se fora da gama dessas ciências e excede em muito no escopo de tudo o que podem legitimamente reivindicar a conter. O domínio de toda ciência é sempre dependente da experimentação em uma ou outra das suas várias modalidades, enquanto que o domínio da metafísica é essencialmente constituído por aquilo que não pode ser investigado externamente: ser "além da física" também somos, pelo mesmo motivo, para além do experimento. Consequentemente, o campo de todas as ciências independentes pode, se for capaz disso, ser prorrogado indefinidamente, sem nunca encontrar o mínimo ponto de contato com a esfera metafísica.


A partir das observações anteriores segue-se que quando se é feito a referência ao objeto da metafísica não deve ser considerado como algo mais ou menos comparável com o objeto específico desta ou daquela ciência. Segue-se também que o objeto em questão deve ser sempre absolutamente o mesmo e de maneira alguma poderá ser algo que mude ou que esteja sujeito às influências de tempo e lugar; o contingente, o acidental e a variável pertence essencialmente ao domínio individual; que são características que necessariamente condicionam coisas individuais como tal, ou, para sendo ainda mais preciso, as condições do aspecto individual das coisas em suas modalidades múltiplas. Onde a metafísica está em questão, tudo aquilo que esteja susceptível a alterar-se com o tempo e o lugar, por um lado, é uma forma de expressão, isto é, as formas mais ou menos externas que a metafísica pode assumir e que pode ser indefinidamente variadas, e por outro lado, mostra o grau de conhecimento ou ignorância na forma em que é encontrada entre os homens; mas a metafísica em si permanece fundamentalmente inalterável, sempre a mesma, pois seu objeto é um em sua essência, ou para ser mais exato, "sem dualidade", como os hindus colocam, e esse objeto, novamente pelo simples fato de se encontrar "além da natureza", também está além de toda mudança: os árabes expressam isto dizendo que "a doutrina da Unicidade é uma”.

Seguindo a mesma linha de argumentação, podemos acrescentar que é absolutamente impossível fazer qualquer "descoberta" na metafísica, pois um tipo de conhecimento que não exige uso de meio especializado ou externo de investigação, tudo que for possível de ser conhecido pode ter sido conhecido por determinadas pessoas em todo e qualquer período; e isso, de fato, emerge claramente a partir de um estudo profundo das doutrinas metafísicas tradicionais. Além disso, mesmo admitindo que as noções de evolução e progresso pode ter um certo valor relativo em biologia e sociologia - embora isso longe de ter sido provado - é contudo certo que eles não podem encontrar um lugar na metafísica; além disso, essas ideias são completamente estranhas para os orientais, assim como estranhas até mesmo para os ocidentais até quase o final do século XVIII, embora as pessoas no Ocidente já as tomam como certas de que elas são fundamentais para pensamento humano. Isto implica também, deve se notar, uma condenação formal de qualquer tentativa em aplicar o "método histórico" para a ordem metafísica; na verdade, o ponto de vista metafísico é, em si, radicalmente oposto ao ponto de vista histórico, ou aquilo que se passa por tal, e essa oposição aumenta não só em questão de método, mas também, o que é muito mais importante, a uma verdadeira questão de princípio, uma vez que o ponto de vista metafísico, em sua imutabilidade essencial, é a própria negação das noções de evolução e progresso. Pode-se dizer, de fato, que a metafísica só pode ser estudada metafisicamente. Não serão encontradas contingências, tais como influências individuais, que são rigorosamente inexistentes deste ponto de vista e que possa afetar a doutrina de qualquer forma; o último, sendo da ordem universal, é, assim, essencialmente supra-individual, e necessariamente permanece intocado por tais influências. Mesmo circunstâncias de tempo e espaço, temos de repetir, só pode afetar a expressão externa, mas não a essência da doutrina; além disso, não pode haver nenhuma questão aqui, como aquelas encontradas nas ordens relativas e contingentes de "crenças" ou "opiniões" que são mais ou menos variáveis e estão mudando precisamente porque são mais ou menos abertas para dúvidas; o conhecimento metafísico implica essencialmente na certeza permanente e imutável.

De fato, por não se encontrar compartilhada na relatividade das ciências, a metafísica é obrigada a implicar a certeza absoluta como uma de suas características intrínsecas, não só em virtude de seu objeto, que é a própria certeza, mas também em razão de seu método, se esta palavra ainda pode ser usada no presente contexto, pois caso contrário este "método", ou o que mais possa ser assim chamado, não seria adequado ao seu objeto. Metafísica, portanto, necessariamente exclui qualquer concepção de caráter hipotético, onde se segue que as verdades metafísicas, em si, não podem de forma alguma ser contestáveis. Consequentemente, se houver, algumas vezes, ocasiões para discussão e controvérsia, isso só dá como resultado de um defeito na exposição ou por uma compreensão imperfeita dessas verdades. Além disso, cada possível exposição, neste caso, é necessariamente defeituosa, pois concepções metafísicas, em razão da sua universalidade, nunca podem ser inteiramente expressas, nem sequer imaginadas, já que sua essência é atingível pela inteligência pura e "sem forma"; superam em muito todas as formas possíveis, especialmente as fórmulas em que a linguagem tenta colocá-la, que são sempre inadequadas e tendem a restringir seu alcance e, portanto, a distorcê-la. Estas fórmulas, como todos os símbolos, só podem servir de ponto de partida, um "apoio" por assim dizer, que atua como uma ajuda para a compreensão daquilo o que em si permanece inexprimível; compete a cada homem tentar concebê-la de acordo com a extensão de seus poderes intelectuais, fazendo-o bem, em proporção de seu sucesso, entre as deficiências inevitáveis ​​de expressão formais e limitadas; é também evidente que essas imperfeições atingirão seu máximo quando a expressão tiver que ser transmitida por meio de certas línguas, como as línguas europeias e especialmente as modernas, que parecem particularmente pouco adequadas para a exposição das verdades metafísicas. . . . Metafísica, por abrir um panorama ilimitado de possibilidades, deve-se tomar cuidado para nunca perder de vista o inexprimível, que constitui de fato sua própria essência.

Conhecimento pertencente à ordem universal, necessariamente encontra-se para além de todas as distinções que condicionam o conhecimento das coisas individuais, das quais aquela entre sujeito e objeto é um tipo geral e básica; isso também serve para mostrar que o objeto da metafísica é de modo algum comparável com o objeto específico de qualquer outro tipo de conhecimento que seja, e, na verdade ele só pode ser referido como um objeto meramente por analogia, pois, a fim de falar dele em todo, somos forçados a anexar a ele alguma denominação ou outra. Da mesma forma, quando se fala dos meios de alcançar o conhecimento metafísico, é evidente que tais meios só podem ser um e a mesma coisa que o próprio conhecimento, em que o sujeito e objeto estão essencialmente unificados; isso equivale a dizer que os meios em questão, se de fato, nos é permitido descrevê-los com essa palavra, não podem de forma alguma se parecer com o exercício da faculdade discursiva, como a razão humana individual. Como já dissemos antes, estamos lidando com o supra-individual e, consequentemente, com a ordem supra-racional, o que não significa de modo algum o irracional: a metafísica não pode contradizer a razão, mas está acima da razão, que não tem qualquer influência aqui, exceto como um meio secundário para a formulação e expressão externas de verdades que estão para além sua província e fora de seu escopo. Verdades metafísicas só são concebíveis pelo uso de uma faculdade que não pertence à ordem individual, e que, em razão do caráter imediato de seu funcionamento, pode ser chamada de "intuitiva", mas somente sob a estrita condição de que ela não tenha nada em comum com a faculdade que certos filósofos contemporâneos chamam de intuição, uma faculdade puramente instintiva e vital que está muito abaixo da razão e não acima dela. Para ser mais preciso, deve-se dizer que a faculdade que estamos referindo é intuição intelectual, uma realidade que tem sido constantemente negada pela filosofia moderna, que não conseguiu captar a sua verdadeira natureza, quando não preferem simplesmente ignorá-la; esta faculdade também pode ser chamado de intelecto puro, seguindo a prática de Aristóteles e seus sucessores escolásticos, pois para eles o intelecto, de fato, era a faculdade que possuía um conhecimento direto dos princípios. Aristóteles declara expressamente que "o intelecto é mais verdadeiro do que a ciência", o que equivale a dizer que é mais verdadeiro do que a razão que constrói a ciência; ele também diz que "nada é mais verdadeiro do que o intelecto", pois é necessariamente infalível, pelo fato de que sua operação é imediata e porque, não sendo realmente distinta da seu objeto, ela é identificada com a própria verdade.

Tal é a base essencial da certeza metafísica; poderá, assim, ser visto que o erro só se mostra com a utilização da razão, isto é, com a formulação das verdades que o intelecto concebeu, e isso decorre do fato de que a razão é, obviamente falível em consequência de seu caráter discursivo e mediador. Além disso, uma vez que toda expressão está fadada a ser imperfeita e limitada, o erro é inevitável em sua forma, se não em seu conteúdo: mesmo que se tente criar uma expressão exata, o que é deixado de fora é sempre muito maior do que está incluído; mas esse erro inevitável na expressão, nada contém de positivo enquanto tal, e simplesmente equivale a uma verdade menor, uma vez que reside apenas na formulação parcial e incompleta da verdade integral.

Torna-se agora possível compreender o profundo significado da distinção entre o conhecimento metafísico e o científico: o primeiro é derivado do intelecto puro, que tem o Universal por seu domínio; o segundo é derivada da razão, que tem o geral como seu domínio, pois, como Aristóteles declarou, "não há ciência, mas o geral." Não se deve, de forma alguma, confundir o Universal com o geral, como muitas vezes acontece entre os logicistas ocidentais, que aliás nunca vão além do geral, mesmo quando eles erroneamente aplicam lhe o nome universal. O ponto de vista das ciências, como temos mostrado, pertence à ordem individual; o geral não se opõe ao individual, mas somente ao particular, já que nada mais é do que o individual estendido; Além disso, o individual pode receber uma extensão indefinida sem assim alterar a sua natureza e sem fugir de suas condições restritivas e limitantes; é por isso que dizemos que a ciência poderia ser estendida indefinidamente sem nunca tocar a metafísica, da qual permanecerá sempre completamente separada, porque a metafísica por si só engloba o conhecimento Universal.


. . . Tudo o que acabamos de dizer pode ser aplicado, sem reservas, a cada uma das doutrinas tradicionais do Oriente, apesar das grandes diferenças de forma que possam esconder sua identidade fundamental dos olhos de um observador casual: esta concepção da metafísica é igualmente verdade no taoísmo, na doutrina hindu, e também no aspecto interior e extra-religioso do Islam. Há algo do tipo a ser encontrado no mundo ocidental? Se fosse apenas para considerar o que realmente existe no momento presente, certamente não seria possível outra resposta diferente de uma negativa, pois o que o pensamento filosófico moderno, por vezes, se contenta em afirmar que a metafísica não tem relação alguma com o concepção que acabamos de mostrar. . . No entanto, o que dissemos sobre Aristóteles e da doutrina escolástica, ao menos mostra que a metafísica realmente existiu no Ocidente, até certo ponto, e de forma incompleta; e apesar desta reserva necessária, pode-se dizer que ali estava algo que não possui equivalente algum na mentalidade moderna e que parece estar totalmente para além do sua compreensão. Por outro lado, se a reserva acima é inevitável, é porque, como dissemos anteriormente, existem algumas limitações que parecem ser inatas em toda a intelectualidade ocidental, pelo menos desde o tempo da antiguidade clássica em diante; já observamos, a este respeito, que os gregos não tinham noção do Infinito. Além disso, porque é que os ocidentais modernos, quando imaginam que estão a conceber o Infinito, representam sempre como um espaço, que só pode ser indefinido, e por que eles persistem confundindo a eternidade, que permanece essencialmente no "intemporal", se assim se pode expressar, na perpetuidade, que é apenas um prolongamento indefinido de tempo, enquanto que tais equívocos não ocorrem entre os orientais? O fato é que a mente ocidental, sendo quase exclusivamente inclinada ao estudo das coisas dos sentidos, é constantemente levada a confundir a concepção com a imaginação, na medida em que aquilo que não for capaz de representação sensível parece ser impensável por essa mesma razão; mesmo entre os gregos as faculdades imaginativas foram preponderantes. Isto é, obviamente, o oposto do pensamento puro; nestas condições não pode haver nenhuma intelectualidade no sentido real da palavra e, consequentemente, nenhuma metafísica. Se fossemos adicionar aqui outra confusão comum, a saber, aquela do racional com o intelectual, torna-se evidente que a suposta intelectualidade ocidental, especialmente entre os modernos, na realidade, equivale nada mais do que o exercício das faculdades exclusivamente individuais e formais da razão e imaginação; assim, pode-se então entender que um abismo separa da intelectualidade Oriental, que considera nenhum conhecimento como real ou valioso se esses não possuírem suas mais profundas raízes no Universal e no sem forma.


René Guénon em Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus

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