domingo, 18 de maio de 2014

Simbolismo e Antropomorfismo (Por René Guénon)


A palavra “símbolo”, no sentido mais geral, pode ser aplicada a toda expressão formal de uma doutrina, seja ela verbal, visual ou outra; uma palavra não tem outra função ou justificativa senão a de simbolizar uma ideia, o que significa dizer que ela fornece, desde que seja possível, uma representação sensível - e de alguma forma analógica - de uma ideia. Partindo desde sentido, o simbolismo, nada mais é do que o emprego de formas ou imagens como sinais de ideias ou de coisas suprassensíveis, sendo, evidentemente natural a mente humana e, assim, necessário e espontâneo; a linguagem nos dá um simples exemplo deste processo. Existe também, em um sentido mais especial, um simbolismo calculado intencional, que de certa forma cristaliza os ensinamentos doutrinários em figuras simbólicas; e, realmente, entre estes dois tipos de simbolismo não existe, verdade seja dita, uma linha divisória precisa, pois é quase certo que a escrita, na sua origem, era completamente ideográfica, isto é, essencialmente simbólica, mesmo no sentido mais especial que temos referido, embora seja apenas na China, que este estado exclusivamente este ainda permanece. Todavia, o simbolismo, como geralmente compreendido, está mais em uso constante para a expressão do pensamento Oriental que o Ocidental; e isso é perfeitamente compreensível quando se percebe que se trata de um meio muito menos limitado para expressão do que a linguagem comum; sugerindo, dessa forma, muito mais do que aquilo que expressa, fornecendo o suporte que melhor se adapta as possibilidades de concepções que se encontram além do poder das palavras.

De fato, no simbolismo, a indefinitude conceitual de modo algum impossibilita uma exatidão absolutamente matemática, conciliando, assim, qualidades aparentemente contraditórias, ele representa, como se poderia dizer, a linguagem natural da metafísica; além disso, os símbolos originalmente metafísicos podem se tornar símbolos religiosos, por um processo de adaptação secundária em funcionamento ao lado da própria doutrina. Todos os ritos, por exemplo, possuem um caráter eminentemente simbólico, qualquer que seja domínio que esse esteja ligado, e é sempre possível transpor o significado dos ritos religiosos para um sentido metafísico, assim como a da doutrina teológica da qual estão vinculados; mesmo em ritos puramente sociais, se alguém deseja descobrir as razões mais profundas de sua existência, é necessário passar da esfera de aplicações, que contém as condições imediatas relativas, para a esfera dos princípios, isto é, para sua fonte tradicional, que é metafísica em sua essência. Nós não estamos, no entanto, tentando sugerir que os ritos não são nada mais que símbolos puros; são simbólicos, sem dúvida, e eles não podem deixar de ser assim, pois de outra forma seriam bastantes desprovidos de sentido, mas devem ao mesmo tempo serem concebidos de forma a possuir uma eficácia própria, como um meio de realização que funciona tendo em vista o fim para o qual foram instituídos e ao qual estão subordinados. No plano religioso, talvez reconheçam a concepção católica da virtude dos "sacramentos", enquanto que no ponto de vista metafísico se descobre o princípio subjacente a certas formas de realização para o qual faremos referência mais tarde, e é isso que nos possibilita em falar de ritos especificamente metafísicos. Além disso, pode-se dizer que cada símbolo, na medida em que deve essencialmente servir como suporte de um conceito, também é dotado de uma eficácia real; e o próprio sacramento religioso, na medida em que é um sinal sensível, de fato desempenhar um papel similar como apoio da "influência espiritual", que irá transformar o sacramento em um instrumento de regeneração psíquica imediata ou atendida; assim como as potencialidades intelectuais estão inclusas, os símbolo são capazes de despertar ou uma concepção efetiva ou simplesmente uma concepção virtual, de acordo com a capacidade receptiva de cada indivíduo. Deste ponto de vista, um rito ainda é um tipo particular de símbolo: é, pode-se dizer, um símbolo "promulgado", mas apenas se o símbolo for tomado por aquilo que ele realmente é e não considerando meramente o seu exterior ou sua aparência contingente: aqui, assim como no estudo dos textos, é preciso aprender a olhar para além da "letra", a fim de descobrir o "espírito".

Isso, no entanto, é precisamente o que os ocidentais geralmente não conseguem fazer: as interpretações defeituosas dos orientalistas nos fornecem exemplos característicos, muito frequentemente assumem a forma de distorcer os símbolos que são os objetos de estudo, da mesma forma que a mente ocidental em geral distorce espontaneamente quaisquer símbolos que venha a encontrar. A causa determinante do erro, neste caso, é a predominância das faculdades sensíveis e imaginativas: em confundir o próprio símbolo com aquilo que ele representa, por meio de uma incapacidade de elevar ao seu teor puramente intelectual, essa é a confusão fundamental encontrada na raiz de todas "idolatrias", tomando esta palavra seu sentido mais estrito, como é visto com clareza especialmente no Islam. Quando nada de um símbolo resta, mas a sua forma exterior, tanto a sua justificação e sua virtude real igualmente desaparecem; o símbolo então se tornou nada mais que um "ídolo", isto é, uma imagem em vão, e sua preservação equivale a mera "superstição"; até que alguém dotado de um entendimento capaz de efetivamente restaura-lo, seja parcialmente ou totalmente, aquilo que foi perdido, ou pelo menos aqueles elementos que já não estão contidos, salvo nos casos de possibilidade latente. Isso se aplica aos vestígios deixados para trás por todas as tradições em que o real significado caiu no esquecimento, e, especialmente, a qualquer religião que tenha sido reduzida pela incompreensão geral de seus adeptos a um mero formalismo externo; já dissemos que o exemplo talvez mais marcante de tal degeneração é o caso da religião grega. É também entre os gregos que a tendência se encontrava na sua forma mais extrema, que parece ser inseparável da "idolatria" e a materialização de símbolos, ou seja, uma tendência para o antropomorfismo:  eles olhavam para seus deuses como representações de certos princípios, mas eles retratava-os como seres de formas humanas, afetados por sentimentos humanos e agindo segundo as maneiras humanas; e esses deuses, para os gregos, já não possuíam qualquer coisa pela qual fosse possível distingui-los das formas em que a poesia e a arte lhes tinha revestidos, de modo que eles eram literalmente nada além da próprio forma.

Tal redução completa para uma perspectiva humana só poderia servir de pretexto para a teoria que tem sido chamado de "Evemerismo", - nome de seu inventor, segundo a qual os deuses eram inicialmente nada mais do que os homens ilustres; de fato, seria impossível ir mais longe na incompreensão grosseira, mais grosseira até mesmo que certos modernos que se recusam a ver nos símbolos antigos nada mais do que uma figuração ou uma tentativa de explicação dos diversos fenômenos naturais; a tão famosa teoria do "mito solar" é o exemplo mais conhecido deste último tipo de interpretação. "Mitos", assim como "ídolos", nunca foram outra coisa senão símbolos mal compreendidos: um corresponde na ordem dos discursos enquanto que o outro está na ordem visual;  entre os gregos, a poesia deu origem ao primeiro, assim como a arte produziu o segundo; mas entre os povos, como os orientais, naturalismo e antropomorfismo são igualmente estrangeiros, nem um nem o outro pode surgir senão na imaginação dos ocidentais que pretendiam estabelecer-se como intérpretes de coisas que eles falharam em entender completamente. A interpretação naturalista realmente inverte as relações normais: um fenômeno natural, como qualquer outra coisa pertencente à ordem sensível, pode ser tomada para simbolizar uma ideia ou um princípio, e um símbolo não tem uso ou justificativa salvo em virtude do fato de ele pertencer a uma ordem inferior a coisa simbolizada. Da mesma forma, há, sem dúvida, uma tendência geral e natural no homem para empregar a forma humana para fins simbólicos; mas esta prática, o que em si não constitui nenhum problema assim como uso de figuras geométricas ou qualquer outro método de representação, de modo algum constitui antropomorfismo, desde que o homem não se torne um joguete da figuração que ele adotou.

Na China e na Índia, nunca houve qualquer paralelo com o que ocorreu na Grécia, e os símbolos baseados na figura humana, embora comumente utilizados, nunca foram transformados em "ídolos"; e, neste contexto, também pode-se notar o quão oposto é a concepção ocidental de arte ao simbolismo: nada é menos simbólico do que a arte grega "clássica" e nada é mais simbolico do que as artes orientais; mas onde a arte é considerada apenas como um meio de expressão para servir como veículo de certas concepções intelectuais, obviamente não poderia ser tomada possuindo um fim em si mesma, só acontecendo entre os povos de mentes voltadas ao sentimentalÉ nesses povos que antropomorfismo acontece naturalmente, e deve-se notar que estes são os povos entre os quais, pela mesma razão, o ponto de vista religioso propriamente dito foi capaz de estabelecer-se; a religião, no entanto, sempre tentou reagir contra a tendência antropomórfica e combater-lo em seu princípio, até mesmo quando uma concepção mais ou menos distorcida na mente popular tenha ajudado a desenvolve-la na prática.  Os povos chamados semitas, como os judeus e árabes, são neste aspecto semelhante aos povos ocidentais: de fato, não há nenhuma razão para explicar a proibição de símbolos sob uma forma humana, que é comum tanto ao judaísmo e no islamismo, mas com a exceção, que no Islam nunca foi aplicado de forma estrita entre os persas, para quem o emprego de símbolos deste tipo oferecia menos perigos porque, sendo mais inteiramente Oriental que os árabes, e além disso, de uma raça bem diferente, eles estavam muito menos propensos a cair no antropomorfismo.
Estas últimas observações nos dão a oportunidade de proferir algumas palavras sobre a ideia de "criação". Essa concepção, que é tão estranha para os orientais, sendo os muçulmanos uma exceção, assim como também estranho para a antiguidade greco-romana, aparenta ser especificamente judaica em sua origem; a palavra que a denota é realmente de forma Latina, mas ela não carrega mais o significado que o cristianismo lhe deu mais tarde, uma vez que creare, a princípio, significava nada mais do que "fazer", um sentido em que a raiz verbal kri, que é idêntica a raiz da palavra latina, sempre preservou em Sânscrito; a mudança de significado que ocorreu foi profunda e, como já apontado, foi semelhante a alteração sofrida pelo termo "religião".


É claramente do Judaísmo que essa ideia passa para o Cristianismo e ao Islam e a razão para isso é essencialmente a mesma que deu origem à proibição de símbolos antropomórficos. Na prática, a tendência de conceber a Deus como "um ser," mais ou menos semelhante ao um indivíduo e, especialmente, aos seres humanos, onde quer que se encontre, certamente produz como corolário natural uma tendência de atribuir a Deus uma função simplesmente "demiúrgica", isto é, uma atividade exercida sobre uma "matéria" que é encarada como externa a Ele e que é um modo de ação próprio de seres individuais. Sob essas condições, de modo a salvaguardar a noção da Unidade Divina e Infinito, tornou-se necessário declarar expressamente que Deus "criou o mundo a partir do nada", o que equivale a dizer "de nada que fosse externo a Si mesmo", de outra forma a suposição resultaria em limitar-Lo ao dar à luz a um dualismo radical. Neste caso, a heresia teológica eleva-se a uma expressão metafísica absurda, que é, aliás, o que normalmente acontece; mas esse perigo, quase inexistente no que se refere a metafísica pura, se torna bem real do ponto de vista religioso, porque nesta forma derivada, o absurdo não fica imediatamente claro. A concepção teológica de "criação" é uma tradução apropriada da concepção metafísica da "manifestação universal", sendo aquela que melhor se adapta à mentalidade dos povos ocidentais; há, porém, nenhuma equivalência real entre essas duas concepções, uma vez que elas necessariamente devem ser separadas por toda a diferença que distanciam os pontos de vista a que se referem. 

René Guénon em Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus

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