sábado, 5 de julho de 2014

A Contradição do Relativismo (por Frithjof Schuon)

O relativismo reduz todo elemento de absolutez à relatividade, fazendo ao mesmo tempo uma exceção totalmente ilógica em favor desta própria redução. O relativismo consiste, em suma, em declarar que é verdade que não existe verdade, ou que é absolutamente verdadeiro que só existe o relativamente verdadeiro; é o mesmo que dizer que não existe linguagem, ou escrever que não há escrita. Em resumo, toda ideia é reduzida a uma relatividade de algum tipo, seja psicológica, histórica ou social; mas a afirmação anula-se a si mesma pelo fato de que ela também se apresenta como uma relatividade psicológica, histórica ou social e assim por diante. A afirmação anula-se a si mesma se é verdadeira e, ao anular-se, prova logicamente, portanto, que é falsa; sua absurdez inicial está na pretensão implícita de ser a única a escapar, como por mágica, de uma relatividade que é a única a ser declarada possível.


O axioma do relativismo é que “nunca se pode escapar da subjetividade humana”; neste caso, então esta afirmação mesma não possui valor objetivo, cai sob seu próprio veredito. É mais do que evidente que o homem pode perfeitamente escapar da subjetividade, de outro modo ele não seria homem; a prova disso está no fato de que somos capazes de conceber tanto o subjetivo como tal e ir além dele. Para um homem que está totalmente encerrado em sua própria subjetividade, esta subjetividade não seria nem mesmo concebível; um animal vive sua subjetividade, mas não a concebe porque, ao contrário do homem, não possui o dom da objetividade.

O relativismo social não perguntará se é verdadeiro que dois mais dois são quatro, ele antes perguntará de que meio é o homem que declara isto; colocará esta questão sem jamais levar em conta o fato de que se o meio determina o pensamento e  prima  sobre  a  verdade,  o  mesmo  deve  aplicar-se  em  todos os casos; ou seja, todo meio determinará o pensamento e todo pensamento será determinado por um meio. Se, contudo, alguém objetasse que este ou aquele meio particular é favorável à percepção da verdade, pode-se facilmente inverter o  argumento  referindo-se  a  outra  escala  de  valores,  que  vai  provar que o argumento acima mencionado apenas foge da questão, ou que no melhor dos casos significa não mais do que uma estimativa de probabilidades sem qualquer alcance concreto. O mesmo se aplica ao relativismo histórico: já que todo pensamento humano necessariamente ocorre num dado momento no tempo – não quanto ao seu conteúdo, mas em relação ao processo mental que dá origem a ele –, todo pensamento não terá senão um valor relativo, e estará “fora de moda” e “ultrapassado” a partir do momento mesmo em que surgiu; não haveria então porque pensar, visto que o homem nunca pode escapar da duração temporal.

Contudo, nem sempre é a verdade enquanto tal o alvo do relativismo; seu objeto pode ser qualquer expressão ou modalidade da verdade, como os valores morais ou estéticos, por exemplo; assim, toda retidão moral pode ser reduzida a algum fator contingente ou mais ou menos insignificante, abrindo então a porta a todas as assimilações abusivas, degradações e imposturas. Quando aplicado aos fatos da tradição, o relativismo manifesta-se no erro de confundir  elementos  estáticos  com  os  dinâmicos:  fala-se  sobre  “épocas”  ou “estilos” e esquece-se que o que está em discussão aqui é a manifestação de dados objetivos e estáveis, definitivos portanto à sua própria maneira. No crescimento de uma árvore, uma determinada fase obviamente corresponde a um dado momento da duração temporal; isto, contudo, não impede o tronco de ser o tronco e os ramos de serem os ramos, ou os frutos de serem frutos; o tronco de uma macieira não é simplesmente um momento em relação à maçã, e esta última não é simplesmente algum outro momento em relação ao tronco ou ramo. A época que nós chamamos de “gótica” tinha, segundo sua própria natureza, o direito de sobreviver, no setor ao qual pertence, e mesmo até o fim dos tempos, pois os dados étnicos que determinaram esta época não se modificaram, nem podem se modificar, a não ser que imaginemos que a Cristandade latino-germânica  pudesse  subitamente  tornar-se  mongólica  ou  coisa  parecida. A civilização gótica, ou romano-gótica, não foi superada pela “evolução”, nem deixou de existir graças a algum processo intrínseco de transmutação; ela foi assassinada por uma força extra-cristã, o neopaganismo da Renascença. Seja como for, um dos traços marcantes do século XX é a confusão tornada habitual entre evolução e decadência: não há nenhum tipo de decadência, empobrecimento ou falsificação que as pessoas não desculpem com a ajuda do argumento relativista da “evolução”, reforçado por assimilações as mais abusivas e errôneas. E é assim que o relativismo, espertamente instilado na opinião pública, abre a porta para todo tipo de corrupção, por um lado e, por outro, vigia para que nenhum tipo de reação saudável possa colocar freio neste processo de escorregar para baixo.

Enquanto estes erros que tendem a negar a inteligência objetiva e intrínseca destroem a si mesmos ao postular uma tese que é desmentida pela própria existência do postulado, o fato de que erros existem não é uma prova de que a inteligência sofre de uma falibilidade inevitável, pois o erro não deriva da inteligência enquanto tal. Pelo contrário, o erro é um fenômeno privativo que leva a atividade da inteligência a desviar-se pela intervenção de um elemento de paixão ou de cegueira, sem, contudo, ser capaz de invalidar a própria natureza da faculdade cognitiva.

Um exemplo patente da contradição clássica aqui em questão, que em grande medida caracteriza todo o pensamento moderno, é fornecido pelo existencialismo, que postula uma definição do mundo que é impossível se o próprio existencialismo é possível. Pois temos de escolher entre duas coisas: ou o conhecimento objetivo, absoluto, portanto, em sua própria ordem, é possível, provando assim que o existencialismo é falso; ou então o existencialismo é verdadeiro, mas então sua própria promulgação é impossível, já que no universo existencialista não há lugar para qualquer intelecção que seja objetiva e estável.

*

Se tudo que é legitimamente humano tem razões meramente psicológicas, pode-se, e de fato deve-se, explicar tudo pela psicologia – daí a “psicologia da religião” e a crítica supostamente psicológica dos textos sacros; em todos os casos deste tipo, está-se lidando com especulações no vazio em razão da falta de dados objetivos indispensáveis – dados que são inacessíveis aos métodos de investigação arbitrariamente definidos como normais, ou abusivamente estendidos para cobrir todo tipo concebível de conhecimento.
No escorregadio terreno do psicologismo, a lógica da filosofia crítica de Kant é de fato tratada como tendo sido “superada”; isto é, a “crítica” assume de bom grado a aparência de uma “análise”, fato que é sintomático desde que a própria noção de “crítica” é sem dúvida ainda demasiado intelectual para convir a esses demolidores que os psicologistas pretendem ser; de resto, reduzem a metafísica e mesmo a simples lógica a questões de gramática. Querem “analisar” tudo em linhas quase-físicas ou quase-químicas, e chegariam mesmo a analisar Deus se isto fosse possível; de fato, eles o fazem indiretamente quando atacam a noção de Deus ou as concomitâncias mentais e morais desta noção, ou as expressões -- perfeitamente fora de alcance – da verdadeira intelecção.

Se a psicologia freudiana declara que a racionalidade não é senão uma máscara hipócrita para uma animalidade reprimida, esta afirmação, evidentemente de natureza racional, cai sob o mesmo veredito; o freudismo, se estivesse certo, não seria nada mais do que um desnaturamento simbolizante de instintos psicofísicos. Sem dúvida os psicanalistas dirão que, no seu caso, o raciocínio não se deve a recalques inconfessáveis; mas é difícil ver, em primeiro lugar, sobre que bases esta exceção seria admissível em termos de sua própria doutrina e, depois, por que esta lei da exceção se aplicaria apenas em seu favor e não em favor daquelas doutrinas espirituais que eles rejeitam com um ânimo e com uma revoltante falta de qualquer senso de proporção. De qualquer maneira, nada pode ser mais absurdo para um homem do que fazer-se a si mesmo o acusador, não de algum acidente psicológico ou outro, mas do homem como tal: de onde vem este semi-deus que acusa, e de onde ele obtém esta faculdade para a acusação? Se o acusador tem razão, é porque o homem afinal de contas não é tão ruim assim e que é capaz de objetividade. De outro modo, teríamos de admitir que os campeões da psicanálise são seres divinos imprevisivelmente caídos do céu, algo improvável para dizer o mínimo.

Em primeiro lugar, a psicanálise elimina aqueles fatores transcendentes essenciais ao homem e então substitui os complexos de inferioridade ou frustração por  complexos  de  complacência  e  egoísmo;  ela  permite  à  pessoa pecar calmamente e com segurança, e danar-se serenamente. Como todas as filosofias destrutivas (a de Nietzsche, por exemplo), o freudismo atribui um alcance absoluto a uma situação relativa; como todo pensamento moderno, só consegue sair de um extremo para cair em outro, sendo incapaz de levar em conta o fato de que a verdade – e a solução – que está buscando é encontrada na natureza mais profunda do homem, da qual as religiões e as sabedorias tradicionais são, precisamente, os porta-vozes, os guardiões e os fiadores.

De fato, a mentalidade criada e disseminada pela psicanálise consiste em recusar-se a engajar-se num diálogo lógico ou intelectual, único digno de seres humanos, e em responder obliquamente as questões com conjecturas insolentes: ao invés de tentar descobrir se o interlocutor está certo ou não, questões são feitas sobre seus pais ou sua pressão sanguínea – para nos limitar a exemplos simbólicos e ainda bastante inócuos – , como se tais argumentos não pudessem prontamente ser voltados contra seus autores, ou como se não fosse fácil, modificando o modo do argumento, retrucar uma análise por meio de outra. Os pseudo-critérios favoritos da análise são fisiológicos ou sociológicos, dependendo da mania particular do momento; contudo, não seria difícil encontrar contra--critérios e fazer uma análise séria da análise imaginária por sua vez.

Se o homem é um hipócrita, de duas uma: ou ele é fundamentalmente hipócrita, e então seria impossível observar o fato sem ir além da natureza humana, por meios miraculosos ou divinos; ou então o homem é apenas acidental e relativamente hipócrita, caso em que não havia necessidade de esperar pela psicanálise para dar conta do fato, já que a saúde é mais fundamental à natureza do homem do que a doença, e que, portanto, sempre houve homens que podiam reconhecer o mal e que conheciam sua cura. Ou ainda, se o homem está profundamente doente, não se pode ver como apenas a psicanálise deveria ter sido capaz de perceber o fato e por que sua explicação, que é totalmente arbitrária e de fato essencialmente perversa, devesse ser a única correta. Pode-se obviamente colocar tal fato na conta da “evolução”, mas neste caso é preciso ser cego tanto em face das qualidades de nossos ancestrais e dos vícios de nossos contemporâneos, para não dizer nada da impossibilidade de demonstrar – ou a absurdez de admitir – a possibilidade de uma súbita objetividade intelectual e moral num processo que é meramente biológico e quantitativo.

Pois se um desenvolvimento natural levasse a uma inteligência reflexiva, a uma súbita tomada de consciência que percebesse o desenvolvimento pelo que ele era, este resultado seria uma realidade que está inteiramente fora do domínio do processo evolucionário; não haveria, assim, medida comum entre o ato de consciência e o movimento totalmente contingente que o precedeu, e este movimento, portanto, sob nenhuma circunstância, poderia ser a causa da consciência em questão. Este argumento é a própria negação da teoria do evolucionismo transformista e, portanto, de todas as noções como aquela do homem como “elo”, ou do homem como produto do acaso; ele exclui igualmente qualquer “mística” de uma matéria generativa, de uma biosfera ou noosfera, ou de um “ponto ômega” [1]. O homem é o que é, ou não é nada; a capacidade para a objetividade e a absolutez inerente ao pensamento prova o caráter quase--absoluto ou fixo e insubstituível da criatura pensante; isto é o que significam as palavras escriturais “feito à imagem de Deus”.

Esta capacidade para a objetividade e a absolutez é uma refutação antecipada e existencial de todas as ideologias da dúvida: se o homem é capaz de duvidar, isto é porque a certeza existe; do mesmo modo, a própria noção de ilusão prova que o homem tem acesso à realidade. Disso se segue que há necessariamente homens que têm conhecimento da realidade e que graças a este fato possuem a certeza; os grandes porta-vozes deste conhecimento e desta certeza não são senão os melhores dos homens. Pois se a verdade estivesse do lado da dúvida, então o indivíduo que duvidasse seria superior não apenas a estes porta-vozes que não duvidaram, mas também à maioria das pessoas normais através dos milênios de existência humana. Se a dúvida se conformasse ao real, a inteligência humana seria privada de sua razão suficiente e o homem seria menos do que um animal, já que a inteligência dos animais não experimenta a dúvida acerca daquela realidade ao qual está proporcionada.

*

Toda ciência da alma deveria ser uma ciência das diferentes ordens de limitação ou debilidade; e aqui há quatro ordens essenciais a considerar, ou seja, o universal, o geral, o individual e o acidental. Assim, recai sobre cada homem uma limitação ou “debilidade” universal pelo fato de que ele é criatura e não Criador, manifestação e não Princípio ou Ser; depois, há uma limitação ou debilidade geral pelo fato de que ele é um homem terreno e não um anjo ou uma das almas bem-aventuradas; a seguir, há uma debilidade individual pelo fato de que ele é ele mesmo e não outros; e finalmente há uma debilidade acidental que deriva do fato de que o homem está aquém de suas próprias possibilidades, a não ser que seja perfeito. Não há ciência da alma sem base metafísica e sem remédios espirituais.

*

O pensamento de tipo psicologista sempre queima as etapas; busca ser dinâmico e eficaz antes de ser verdadeiro, e ser uma solução ou um remédio antes de ser diagnóstico; ademais, abandona-se facilmente a uma forma oblíqua de raciocínio para escapar de suas responsabilidades intelectuais. Imaginemos um caso em que alguém diz que todos os homens devem morrer, diante do que recebemos a resposta de que isto não é verdade, porque faz as pessoas se sentirem melancólicas, ou fatalistas, ou desesperadas; este é exatamente o modo pelo qual o homem de “nosso tempo” aprecia raciocinar, suas objeções a verdades que ele acha desagradáveis são sempre alheias ao assunto, constituem sempre evasões ou confusões de planos. Se um homem faz soar o alarme contra o fogo, diz-se que ele não tem o direito de fazê-lo a não ser que saiba como apagar o fogo; e se alguém sustenta que dois mais dois são quatro e, portanto, torna as coisas embaraçosas para certos preconceitos ou interesses, dir-se-á que este cálculo denota, não sua capacidade de contar, mas um complexo de exatidão, sem dúvida contraído por um apego excessivo a “dias passados”, e assim por diante. Se as metáforas acima parecem caricaturais em razão de sua simplicidade ou sua franqueza, há que se admitir que muito frequentemente a realidade não é menos absurda. A psicanálise foi bem sucedida em perverter a inteligência dando origem a um “complexo psicanalítico” que corrompe tudo e todos. Se for possível negar o absoluto de diferentes maneiras, o relativismo psicologista e existencialista o nega no interior da própria inteligência: esta é praticamente instituída como um deus, mas ao preço de tudo que constitui sua natureza intrínseca, seu valor e sua eficácia; a inteligência se torna “adulta” destruindo-se.
Há um relativismo moral que é verdadeiramente odioso: se se diz que Deus e o mundo vindouro são reais, isto mostra que você é covarde, ou desonesto, ou infantil, ou vergonhosamente anormal; mas se se diz que religião é apenas simulacro, isto mostra que você é corajoso, honesto, sincero, adulto, totalmente normal. Se isto tudo fosse verdade, o homem não seria nada, não seria capaz nem de veracidade, nem de heroísmo; e não haveria nem mesmo alguém para notar o fato, pois não se extrai um herói de um covarde, nem um sábio de um homem de mente medíocre, nem mesmo por “evolução”. Mas este subterfúgio moralista, baixo ou simplesmente tolo segundo o caso, não é totalmente uma coisa nova. Antes de ser aplicado a posições intelectuais, foi usado para desacreditar a vida contemplativa que, de sua parte, foi descrita como uma “fuga” -- como se o homem não tivesse o direito de fugir de perigos que dizem respeito apenas a ele e, sobretudo, como se a vida contemplativa de afastamento do mundo não fosse muito mais verdadeiramente suscetível de ser descrita como uma peregrinação rumo a Deus. Fugir de Deus como faz o mundano é muito mais insensato e irresponsável do que afastar-se do mundo. Fugir de Deus é ao mesmo tempo fugir de si mesmo, pois o homem, quando está só consigo – e isto mesmo quando cercado pelos outros – está sempre na companhia de seu Criador, a quem ele encontra na própria raiz de seu ser.

Totalmente alinhado com este psicologismo invasivo e simplificador está o  preconceito  de  reduzir  atitudes  religiosas  a  reflexos  de  temor  e  servilismo, consequentemente também de infantilidade e baixeza. Mas então que provem, primeiramente, que os temores religiosos realmente não têm fundamento, e depois se procure entender o verdadeiro significado e as autênticas conseqüências interiores das atitudes devocionais [2]. Para começar, digamos que não rebaixa o homem humilhar-se diante do Absoluto: nem objetivamente, nem subjetivamente isto é verdadeiro. Ademais, é importante responder a questão de “quem” se prostra ou se humilha: claramente não é nosso núcleo transpessoal, a misteriosa sede da Imanência divina, que é humilhada. Na realidade, trata-se aqui do ser relativo – a “criatura” se se prefere – tornando-se consciente de sua própria dependência ontológica em face daquele único Ser do Qual ela mesma deriva e a Quem ela manifesta à sua própria maneira; esta tomada de consciência parecerá acidentalmente como uma humilhação em razão da decadência congênita do homem, mas isto serve para fazer a atitude tanto mais realista. É evidente que nossa personalidade divina e imortal comporta um aspecto de majestade – já visível na própria forma do corpo humano – e as religiões foram as primeiras a apontar o fato; mas elas não foram desculpadas por isto, tanto quanto não o foram por promover a atitude inversa. De qualquer maneira, é igualmente evidente que há algo no homem que merece coação e rebaixamento. É impossível para o ego, tal como é em sua animalidade humana, ser imune a toda repreensão celeste; o desequilíbrio e o fragmento têm uma dívida a pagar ao Equilíbrio e à Totalidade, e não o contrário. Ser consciente desta situação é a primeira condição da dignidade humana, tão pouco entendida nos dias de hoje, em que a demagogia foi transformada num “imperativo categórico” em todas as esferas do pensamento.

*

O relativismo engendra o espírito de rebelião e é ao mesmo tempo seu fruto. O espírito de rebelião não é, como a santa cólera, um estado passageiro e dirigido contra algum abuso terreno; é, ao contrário, uma doença crônica dirigida contra o Céu e contra tudo o que o Céu representa ou é um lembrete dele. Quando Lao-Tsé disse que “nos últimos tempos o homem de virtude parecerá vil”, tinha em mente este espírito de rebelião que caracteriza nosso século; ora, para o relativismo psicologista e existencialista, que, por definição, está sempre em ação para justificar o ego bruto, tal estado de espírito é a norma, é sua falta que é uma doença; daí a abolição do senso do pecado. O senso do pecado é realmente a consciência de um equilíbrio que supera nossa vontade pessoal e, mesmo quando nos fere em algumas ocasiões, age em longo prazo para o bem de nossa personalidade integral e da coletividade humana; este senso do pecado é solidário do senso do sagrado, o instinto para aquilo que nos supera e que, por esta mesma razão, não deve ser tocado por mãos ignorantes e iconoclastas.

Seguramente que a ideia de que alguém possa merecer a danação por “ofender a Divina Majestade” é aceitável apenas com a condição de que a pessoa sinta o que está em jogo ou que saiba disto. A Divindade é impessoal antes de determinar-se como Pessoa Divina ante a pessoa humana e, no plano da impessoalidade, há apenas uma relação ontológica e lógica de causa para efeito entre Deus e o homem: neste plano, não pode se tratar de “bondade”, pois a Realidade absoluta é o que é, e a pura causalidade não tem nada de especificamente moral. É, contudo, no plano da revelação enquanto Pessoa Divina que a Misericórdia pode intervir, aquela Misericórdia que é o mais maravilhoso de todos os mistérios; é precisamente esta intervenção que nos mostra que o Absoluto não é uma forca cega. É verdade que os homens, em sua indolência de espírito e falta de imaginação, estão sempre propensos a recomendar um tipo tolo de humildade, mas isto não é razão para acreditar que Deus exija isto de nós e que não há possibilidade de manifestar inteligentemente nossa consciência de causalidade e de equilíbrio. Deus prefere em todo caso uma humildade tola do que um orgulho inteligente, um orgulho alimentado por um abuso de inteligência.

Limitado e degradado como o homem inegavelmente é, mesmo assim ele continua “a prova pelos contrários” do Protótipo Divino e de tudo que este implica e determina em relação ao homem. Não admitir o que nos supera e não querer superar a si mesmo: este é de fato todo o programa do psicologismo, e é a própria definição de Lúcifer. A atitude oposta, ou primordial e normativa é: não pensar a não ser em referência ao que nos excede, e não viver senão por causa da superação de si mesmo; buscar a grandeza onde ela deve ser encontrada, e não no plano do indivíduo e de sua pequenez revoltada. Para encontrar a verdadeira grandeza, o homem deve antes de tudo consentir em pagar a dívida de sua pequenez e a permanecer pequeno no plano onde ele não pode deixar de sê-lo; o senso da realidade objetiva, por um lado, e do absoluto, por outro, não existe sem uma certa abnegação, e é esta abnegação de fato que nos permite ser plenamente fiéis à nossa vocação humana.

Tradução de Mateus Soares de Azevedo

[1] Digamos mais uma vez, o evolucionismo transformista é apenas um substituto materialista para o antigo conceito da “materialização” solidificante ou segmentante de uma substância primordial sutil e suprassensorial, na qual estavam prefiguradas todas as diversas possibilidades do mundo material a posteriori. A resposta ao evolucionismo é encontrada na doutrina dos arquétipos e das “ideias”, a última referindo-se ao puro Ser – ou ao Intelecto Divino – e a primeira a substancia primordial na qual os arquétipos se “encarnam”, por assim dizer por reverberação.

[2] A associação de ideias que liga a infância com o temor negligencia o fato de que há também alguns temores peculiares à idade adulta ou, inversamente, que há ilusões de segurança que pertencem à infância.

Nenhum comentário:

Postar um comentário