sábado, 19 de julho de 2014

O Falso Amanhecer do Livre Mercado Global (por John Gray)


A política do laissez-faire que produziu a Grande Transformação na Inglaterra do século 19 foi baseada na teoria de que a liberdade do mercado é natural e as restrições políticas ao mercado são artificiais. A verdade é que o livre mercado é uma criação do poder do Estado e existe apenas enquanto o Estado for capaz de impedir que a necessidade humana de segurança e de controle dos riscos econômicos ganhe expressão política. 

Na ausência de um Estado forte voltado para a execução de um programa econômico liberal, o mercado será inevitavelmente sufocado por uma miríade de restrições e regulamento. Isto surgirá espontaneamente em resposta a problemas sociais específicos, não como elementos de qualquer grande projeto. Os parlamentares que aprovaram as Leis das Fábricas nos anos 1860 e 1870 não reconstruíram a sociedade ou a economia de acordo com um plano. Eles respondiam a problemas do dia-a-dia - perigo, miséria, ineficiência - assim que tomavam consciência deles. O laissez-faire desapareceu como inesperada consequência de uma multiplicidade de reações descoordenadas. 

Mercados controlados são norma em qualquer sociedade, ao passo que os mercados livres são produto de estratagemas, planos e coerção política. O laissez-faire deve ter um planejamento central; mercados regulamentados apenas acontecem. O livre mercado não é, como os pensadores da Nova Direita imaginaram ou afirmaram, o presente da evolução social. É um produto final da engenharia social e da vontade política obstinada. Ele foi exequível na Inglaterra do século 19 somente porque, e enquanto, as instituições democráticas em funcionamento eram deficientes. 

As implicações dessas verdades para o projeto de construção de um livre mercado mundial num período de governo democrático são profundas. É que as regras do jogo do mercado devem ser isoladas da deliberação democrática e da emenda política. A democracia e o livre mercado são rivais, não aliados.
 
A contrapartida natural da economia de livre mercado é uma política de insegurança. Se "capitalismo" quer dizer "livre mercado", então nenhuma visão é mais ilusória do que a crença de que o futuro reside no "capitalismo democrático". No curso normal da vida política democrática, o livre mercado sempre tem vida curta. Seus custos sociais são tais que não podem ser legitimados por muito tempo em qualquer democracia. Esta verdade é demonstrada pela história do livre mercado na Grã-Bretanha e isto é bem entendido pelos mais sagazes pensadores neoliberais que planejam fazer o livre mercado global. 

Aqueles que procuram projetar um livre mercado em escala mundial sempre insistiram que a estrutura legal que o define e fortalece deve ser posta fora do alcance de qualquer legislatura democrática. Estados soberanos podem filiar-se como membros da Organização Mundial do Comércio; mas é esta organização, e não a legislatura de qualquer Estado soberano, que determina o que deve ser considerado livre comércio e o que é restrição a ele. As regras do jogo do mercado devem ser colocadas acima de qualquer possibilidade de revisão através de escolha democrática. 

O papel de uma organização transnacional como a OMC é o de projetar mercados livres na vida econômica de qualquer sociedade. Ela o faz tentando forçar a adesão às regras que libertam o livre mercado dos mercados complicados ou engessados que existem em toda sociedade. As organizações transnacionais podem escapar ilesas somente na medida em que estejam imunes às pressões da vida política democrática. 
A descrição de Polanyi da legislação exigida para criar uma economia de mercado do século 19 ajusta-se com igual força ao projeto de livre mercado global de hoje em dia, como foi antecipado pela Organização Mundial do Comércio e entidades similares. 

Nada que iniba a formação de mercado deve ser permitido nem deve ser admitida que seja através de renda que não seja através de venda. Nem deve haver qualquer interferência em relação ao ajuste de preços para modificar as condições de mercado – sejam os preços das mercadorias do trabalho, da terra ou do dinheiro. Portanto, deve haver não apenas mercado para todos os produtos da indústria, como também não deve ser aprovado nenhuma medida ou política que possa influencias na ação desse mercado. Nem preço, nem oferta, nem procura devem fixados ou regulados; apenas cabem aquelas políticas e medidas destinadas a ajudar a garantir a auto-regulamentação do mercado pela criação de condições que façam do mercado a única força organizada da esfera econômica

Certamente, esta é uma fantasia irrealizável; sua busca, empreendida pelos organismos transnacionais, produziu desordem econômica, caos social e instabilidade política em países imensamente diferentes ao redor do mundo. Nas condições em que foi tentada no final do século 20 a reinvenção do livre mercado envolveu uma ambiciosa engenharia social em grande escala. Nenhum programa de reformas tem chance de êxito hoje, a menos que leve em conta que muitas das mudanças produzidas, aceleradas ou reforçadas pelas políticas da Nova Direta são irreversíveis.  Igualmente, nenhuma reação política às consequências dos planos de livre mercado será eficaz se não dominar as transformações econômicas e tecnológicas que tais planos foram capazes de utilizar. 

A reinvenção do livre mercado provocou profundas rupturas nos países em que foi tentada. As instituições políticas e socais que ela destruiu - os princípios de Beveridge na Grã-Bretanha e o New Deal de Roosevelt nos EUA - não podem agora ser reconstruídas. As economicas de mercado social da Europa continental não podem ser remodeladas como variações reconhecíveis da democracia social ou cristã do pós-guerra. Aqueles que imaginam que possa haver um retorno às "políticas normais" de administração econômica do pós-guerra iludem a si próprios e aos outros. 

Ainda assim, o livre mercado não teve sucesso em estabelecer para si o poder hegemônico projetado. Em todos Estados democráticos a supremacia política do livre mercado é incompleta, precária e, em pouco tempo, solapada. Ele não sobrevive facilmente a períodos de retração econômica prolongada. Na Inglaterra, as consequências inesperadas das próprias políticas neoliberais enfraqueceram o poder político da Nova Direita. A frágil coalização de setores do eleitorado e da área econômica que a Nova Direita mobilizou em defesa de suas próprias políticas logo se desfez. 



Contudo, a desordem da vida econômica e social hoje não é causada unicamente pelo livre mercado. Ultimamente decorre da banalização da tecnologia. As inovações tecnológicas ocorridas nos países ocidentais adiantados são logo copiadas em toda parte. Mesmo sem política do livre mercado, as econômicas dirigidas do período pós-guerra poderiam não ter sobrevivido - o avanço tecnológico as tornariam insustentáveis. 

As novas tecnologias tornam impraticáveis as políticas de pleno emprego tradicionais. O efeito das tecnologias da informação é o de levar a divisão social do trabalho a um fluxo permanente. Muitas ocupações estão desaparecendo e todos os empregos estão menos seguros. A divisão do trabalho na sociedade é agora menos estável do que foi desde a Revolução Industrial. O que os mercados globais fazem é transmitir essa instabilidade a toda economia do mundo e, agindo assim, tornam universal a nova política de insegurança econômica. 



O livre mercado não pode perdurar numa era em que a segurança econômica da maioria do povo está sendo reduzida pela economia mundial. O regime do laissez-faire está destinado a desencadear movimentos contrários que rejeitam suas características. Tais movimentos - sejam eles populistas e xenófobos, fundamentalistas ou neocomunistas - podem atingir poucas de suas metas; mas também podem destroçar ruidosamente a frágil estrutura que sustenta o laissez-faire mundial. Devemos aceitar que a vida econômica mundial não pode ser organizada como um livre mercado universal e que formas melhores de governar pela regulamentação global são inalcançáveis? Seria o nosso destino histórico uma anarquia moderna tardia? 

É necessário uma reforma da economia mundial que aceite a diversidade de culturas, regimes e economias de mercado como uma realidade permanente. O livre mercado global pertence a um mundo no qual a hegemonia ocidental parece assegurada. Como todas as variáveis da utopia iluminista sobre uma civilização universal, esta pressupõe a supremacia ocidental. Não se harmoniza com um mundo pluralista no qual não há poder que possa esperar exercer a hegemonia que a Grã-Bretanha, os Estados unidos e outros Estados ocidentais exerceram no passado. Não vai ao encontro das necessidades de um tempo no qual as instituições e os valores ocidentais não são mais universais. Não permite que as diversas culturas do mundo busquem modernizações adaptadas às suas histórias, circunstâncias e necessidades particulares. 

Um livre mercado global trabalha para jogar os Estados soberanos uns contra os outros em lutas geopolíticas por causa da diminuição dos recursos naturais. O efeito de uma filosofia laissez-faire que condena a intervenção estatal na economia é o de impelir os Estados a se tornarem rivais no controles de dos recursos, cuja conservação não é da responsabilidade de nenhuma instituição. 



Nem, evidentemente, uma economia mundial organizada como um livre mercado global vai ao encontro da universal necessidade humana de segurança. A raison d'être de qualquer governo é a capacidade de proteger seus cidadãos da insegurança. Um regime de laissez-faire global que impede os governos de cumprir esse papel protetor está criando as condições para uma instabilidade política, e econômica, ainda maior. 

Nas economias avançadas, competente e engenhosamente controladas, podem ser encontrados caminhos nos quais os riscos impostos aos cidadãos pelos mercados mundiais possam ser reduzidos. Nos países mais pobres, o laissez-faire global produz regimes fundamentalistas e funciona como um catalisador para a desintegração do Estado moderno. Em nível mundial, bem como no de Estado-nação, o livre mercado não promove estabilidade ou democracia. O capitalismo democrático mundial é uma condição tão irrealizável quanto o comunismo mundial. 

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