sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Relações do Ponto e da Extensão (Por René Guénon)

A questão que a última observação levanta merece que nos detenhamos aí um pouco, sem no entanto tratarmos aqui das considerações relativas à extensão com todos os desenvolvimentos que o assunto merece, que caberiam melhor num estudo sobre as condições da existência corporal. O que queremos assinalar, sobretudo, é que a distância de dois pontos imediatamente vizinhos, de que tratamos em razão da introdução da continuidade na representação geométrica do ser, pode ser vista como o limite da extensão no sentido das quantidades indefinidamente decrescentes; em outros termos, ela é a menor extensão possível, aquela após quem não há mais extensão, vale dizer não há mais condição espacial, e que não se pode suprimir sem sair do domínio de existência que está submetido a esta condição. Portanto, a partir do momento em que se divide a extensão indefinidamente, e que se leva essa divisão tão longe quanto possível, ou seja, até os limites da possibilidade espacial pela qual a divisibilidade está condicionada (e que aliás é indefinida tanto no sentido crescente como no decrescente), não é ao ponto que se chega como resultado último, mas sim à distância elementar entre dois pontos. Resulta daí que, para que haja extensão ou condição espacial, é preciso que haja dois pontos, e a extensão (em uma dimensão), que é realizada por sua presença simultânea e que é precisamente a distância entre eles, constitui um terceiro elemento que exprime a relação existente entre estes dois pontos. De resto, esta distância, na medida em que a consideramos como uma relação, não é evidentemente composta de partes, pois as partes nas quais ela poderia ser dividida, se ela o pudesse, constituiriam outras relações de distância, das quais ela é logicamente independente, assim como, do ponto de vista numérico, a unidade é independente das frações. Isto é válido para uma distância qualquer, desde que a encaremos em relação aos dois pontos que são suas extremidades, e o é a fortiori para uma distância infinitesimal, que não é absolutamente uma quantidade definida, mas que exprime apenas uniu relação espacial entre dois pontos imediatamente vizinhos, tais como os dois pontos consecutivos de uma linha qualquer. Por outro lado, os próprios pontos, considerados como extremidades de urna distancia, não são partes do continuum espacial, embora a relação de distância suponha que eles são vistos como situados no espaço; portanto, em realidade, é a distância que é o verdadeiro elemento espacial.

Consequentemente, não podemos dizer, com todo o rigor, que a linha seja formada de pontos, e isto se compreende facilmente, pois, sendo cada um dos pontos sem extensão, sua simples adição, mesmo sendo eles em multitude indefinida, não poderá jamais formar uma extensão; na verdade, a linha é constituída pelas distâncias elementares entre seus pontos consecutivos. Do mesmo modo, e por uma razão semelhante, se considerarmos em um plano uma indefinidade de linhas paralelas, não podemos dizer que o plano seja formado pela reunião de todas essas retas, ou que elas sejam verdadeiros elementos constitutivos do plano; os verdadeiros elementos são as distâncias entre as retas, distâncias pelas quais elãs são retas distintas e não confundidas, e, se as retas formam um plano em um certo sentido, não é por si mesmas, assim como ocorre com os pontos em relação a cada reta. Do mesmo modo ainda, a extensão de três dimensões não é composta por uma indefinidade de planos paralelos, mas das distâncias entre todos esses planos.

Entretanto, o elemento primordial, aquele que existe por si mesmo, é o ponto, pois ele é pressuposto pela distância, sendo esta uma relação; a própria extensão, portanto, pressupõe o ponto. Podemos dizer que este contém em si uma virtualidade de extensão, que ele só pode desenvolver primeiramente desdobrando-se, para colocar-se de certo modo em face de si mesmo, e depois multiplicando-se (ou melhor submultiplicando-se) indefinidamente, de tal sorte que a extensão procede inteiramente desta diferenciação, ou, para falar mais exatamente, dele mesmo na medida em que ele se diferencia. Esta diferenciação, aliás, só tem realidade do ponto de vista da manifestação espacial; ela é ilusória em relação ao ponto principal, que não cessa por isso de continuar sendo o que era, e cuja unidade essencial não poderia nunca ser afetada. O ponto, considerado em si não está absolutamente submetido à condição espacial, porque, bem ao contrário, ele é o seu princípio: é ele que realiza o espaço, que produz a extensão pelo seu ato, o qual, na condição temporal (mas somente nela), traduz-se pelo movimento; mas, para realizar assim o espaço, é preciso que, através de alguma de suas modalidades, ele próprio se situe dentro desse espaço, que de resto não é nada sem ele, e que ele preencherá inteiramente através do desdobramento de suas próprias virtualidades. Ele pode - sucessivamente, na condição temporal, ou simultaneamente, fora dessa condição (o que, diga-se de passagem, nos faria sair do espaço comum tridimensional) - identificar-se, para realizá-los, a todos os pontos dessa extensão, sendo esta então vista apenas como uma pura potência de ser, que não é outra coisa senão a virtualidade total do ponto concebida sob seu aspecto passivo, ou como potencialidade, o lugar ou o continente de todas as manifestações de sua atividade, continente que atualmente não é nada, a não ser pela efetivação de seu conteúdo possível.

O ponto primordial, sendo sem dimensões, é também sem forma; ele não está, portanto, na ordem das existências individuais; ele só se individualiza a partir do momento em que ele se situa no espaço, e isto não em si mesmo, mas apenas através de alguma de suas modalidades, de modo que, a bem dizer, são estas que são propriamente individualizadas, e não o ponto principiai. De resto, para que haja forma, é preciso que haja previamente diferenciação, portanto multiplicidade realizada numa certa medida, o que só é possível quando o ponto se opõe a si mesmo, se podemos dizer assim, por duas ou mais de suas modalidades de manifestação espacial; e esta oposição é aquilo que, no fundo, constitui a distância, cuja realização é a primeira efetivação do espaço, que, sem ela, é apenas pura potência de receptividade. Lembremos ainda que a distância existe, em primeiro lugar, virtualmente ou implicitamente na forma esférica de que falamos acima, e que é esta que corresponde ao mínimo de diferenciação, sendo “isotrópica” em relação ao ponto central, sem nada que distinga uma direção particular em relação a todas as outras; o raio, que é aqui à expressão da distância (tomada do centro à periferia), não é traçado efetivamente e não faz parte integrante da figura esférica. A realização efetiva da distância só é explicitada na linha reta, e enquanto elemento inicial e fundamental desta, como resultado da especificação de uma certa direção determinada; daí por diante, o espaço não pode mais ser visto como "isotrópico", e, deste ponto de vista, ele deve ser reportado a dois pólos simétricos (os dois pontos entre os quais existe a distância), em lugar de sê-lo a um centro único.


O ponto que realiza toda a extensão, como indicamos, torna-se seu centro, medindo-a segundo todas as suas dimensões, pela extensão indefinida dos braços da cruz nas seis direções, ou em direção aos seis pontos cardeais desta extensão. É o “Homem Universal”, simbolizado por esta cruz, mas não o homem individual (pois este, enquanto tal, não pode atingir nada que esteja fora de seu próprio estado de ser), que é verdadeiramente a “medida de todas as coisas”, para empregarmos a expressão de Protágoras que já citamos, mas, bem entendido, sem atribuir ao sofista grego a menor compreensão desta interpretação metafísica.

René Guénon, Les principes du calcul infinitésimal

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