sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

A Lógica do Absoluto - Os Escritos Metafísicos de René Guénon

René Guénon (1986-1951), notável expositor francês da philosophia perennis, tem desfrutado de uma reputação entre os que estão familiarizados com seus escritos como, talvez, o metafísico proeminente do século XX.

Embora sua obra completa compreende por volta de vinte e três volumes, o núcleo de sua exposição metafísica pode ser encontrado em três obras: O Homem e seu Devir Segundo o Vedanta, o Simbolismo da Cruz, e os Estados Múltiplos do Ser. Todas as três obras complementam atentamente uma a outra e devem ser tomadas como um todo, a fim de ser devidamente compreendidas. No entanto, cada uma possui um carácter distintivo: O Homem e seu Devir, está intimamente ligado às categorias conceituais específicas e a terminologia do Advaita Vedanta; O Simbolismo da Cruz, tanto um estudo do simbolismo, bem como da metafísica, demonstra a gama de domínio doutrinário de Guénon através das tradições, enquanto articula a metafísica tradicional em um modo particularmente geométrico. Estados Múltiplos, o mais puro trabalho metafísico de Guénon, é uma demonstração lógico-dedutiva de princípios metafísicos, categorias e relações de uma clareza e profundidade surpreendente.

Apesar de suas diferenças de modo e ênfase, todas as três obras são possuídas pela mesma animadora pergunta: "O que é possível para o ser humano" Simplesmente render-se a resposta surpreendente de que Guénon afirma não serviria, pois, se é para ser aceita, ainda que provisoriamente, ela deve ser conquistada, seguindo a cadeia inferencial de idéias que levam inexoravelmente em direção a ela. É neste contexto que o temperamento e formação de Guénon como matemático são particularmente evidentes: para ele, afirma-se primeiramente os princípios axiomáticos e, em seguida, se prossegue, em uma maneira quase-lógica de uma prova, na direção consequentes conclusões.

Guénon começa sua demonstração com um axioma primário, ou primeiro princípio, que ele chama de infinito metafísico. Para aqueles familiarizados com as fontes tradicionais, é claro que ele está evocando a mesma noção como que expressa no Brahman do Shankaracharya, o Gottheit do Meister Eckhart, o Tao do Lao Tzu, o Uno de Plotino, ou al-Dhat do Ibn 'Arabi. No entanto, ele deliberadamente forja um vocabulário independente dessas menções tradicionais, pois, ao abordar um público contemporâneo tipicamente não familiarizados com essas fontes, ele deseja uma doutrina essencial para valer por si própria, através da sua coerência intrínseca e independentemente de quaisquer associações. Guénon é cuidadoso em distinguir o Infinito metafísico do infinito matemático, que é finito, na medida em que se limita ao domínio dos números. O Infinito metafísico é simplesmente, e mais convincente, aquilo que não tem limites de qualquer tipo.

Várias características necessárias seguem sobre esta definição essencial: O Infinito não possui qualquer limitação, restrição ou determinação, pois tal anularia claramente a sua infinitude. Ele é único, abrangente, e uma absoluta totalidade, pois se alguma coisa existir fora dele, ele não seria o Infinito. É sem partes, pois qualquer parte seria relativo e finito e poderia, assim, não ter nenhuma medida ou relacionamento comum a ele. É absolutamente indeterminada, pois qualquer determinação positiva serviria como uma delimitação e, portanto, não poderia aplicar-se a ele. Pela mesma medida, é absolutamente afirmado, pois sua indeterminação - a negação de qualquer definição limitadora - é equivalente à negação da negação como tal e assim, uma afirmação total. Finalmente, é incontestável, pois sua indeterminação absoluta implica que não pode ser definido, discutido ou, desta forma, contestado.

A definição essencialmente apofática da noção do Infinito metafísico implica também - assim como ele não pode ser racionalmente contestado - que não está aberto a prova racional. Em vez disso, um outro modo de discernimento deve ser utilizado, que poderia ser chamado de "intuição intelectual". Ananda Coomaraswamy, a este respeito, tem escrito sobre a doutrina tradicional como que possuí uma "inteligibilidade que se auto-autentica", na medida em que as idéias metafísicas trazem em si sua própria evidência suficiente. No entanto, tais elementos de prova pode não se esperar falar para todos: como Frithjof Schuon afirma:
 "O Infinito é o que é;
pode-se entender ou não entender."

O Infinito metafísico, como um todo-abrangente, totalidade absoluta, pode ser previsto em um aspecto como um todo universal, ou Possibilidade Universal, como Guénon expressa. A Possibilidade Universal abrange o total, menos o estritamente impossível, que, como pura negação, é literalmente um nada e, portanto, não é nenhum limite sobre a infinitude do Todo. A relação entre o Infinito e Possibilidade Universal podem, a partir de uma perspectiva, ser concebida como a da perfeição ativa e passiva, de essência e substância. De um outro ponto de vista, esta relação pode ser considerada como princípio e o recipiente. Em ambos os casos, apenas há o único Infinito, pois o Todo de forma alguma é distinto do Infinito como tal.

Tudo o que é possível encontra o seu lugar em relação ao Infinito, o que pode ser visto como de uma só vez o seu próprio princípio gerador e seu recipiente abrangente. Neste sentido, e na medida em que está dentro da Possibilidade Universal e, portanto, sendo não impossível, cada possibilidade pode se dizer ser real. Isso não significa, porém, que todas as possibilidades se manifestam. Em geral, qualquer possibilidade pode ser uma possibilidade de manifestação ou uma possibilidade de não-manifestação. Esta distinção, entre manifestação e não-manifestação, é a mais fundamental e universal que pode ser feito dentro da Possibilidade Universal. Aqui, Guénon distingue entre os dois domínios de não-manifestação e manifestação. Dentro do domínio de não-manifestação são encontrados tanto o não-manifestável (aquelas possibilidades de não-manifestação), bem como o manifestável (aquelas possibilidades de manifestação na medida em que não se manifestaram). Dentro do domínio da manifestação são encontrados os manifestados (aquelas possibilidades de manifestação na medida em que se manifestam). Juntos, os domínios de não manifestação e manifestação compreendem toda a Possibilidade Universal.

As possibilidades manifestáveis e não-manifestáveis dentro do domínio de não-manifestação compreendem dois modos distintos e gerais, cada um em conformidade com sua respectiva natureza. Em contraste, as possibilidades de manifestação - vistas dentro do domínio tanto de não-manifestação como de manifestação - possuí um caráter radicalmente diferente nas suas condições não-manifestadas e manifestadas. No domínio da não-manifestação, todas as coisas subsistem eternamente em princípio, em permanência absoluta, indiferenciadas, incondicionadas por quaisquer fatores contingentes ou limitantes. Por outro lado, no domínio da manifestação, todas as coisas são transitórias, diferenciadas, condicionadas e contingentes. Em essência, o domínio de manifestação é o campo de diferenciação, multiplicidade, contingência, e das alterações, ao passo que o domínio de não-manifestação - ao mesmo tempo mais simples e principial - antecede a estas condições.

Mesmo quando se manifesta, cada possibilidade de manifestação permanece fundamentada em seu princípio imediato, que não é outro senão o seu estado como pura possibilidade de não-manifestação. É através deste fato que esta encontra a sua subsistência duradoura, independente das condições particulares e limitantes inerentes à manifestação. O mesmo caso para as possibilidades individuais de manifestação também vale para os domínios de não-manifestação e manifestação como tal. Em certo sentido, não-manifestação e manifestação podem ser considerados como dois domínios separados e independentes. Em outro, em um sentido mais profundo, o domínio de não-manifestação pode ser visto como o solo e fundamento da manifestação, da qual se extrai toda a sua realidade.

Tal como Guénon expressa a articulação da Possibilidade Universal em termos de manifestação, assim também ele expressa essa articulação em termos do Ser. Estes dois modos de expressão são intimamente equivalentes, ainda que não exatamente idênticos: por um lado, ele faz uma distinção entre as categorias de não-manifestação e manifestação; por outro, entre Não-Ser, Ser e Existência. Ao esclarecer a relação entre estas duas articulações, podemos dizer que a não-manifestação e Não-Ser são equivalentes e co-extensivos, assim como são a manifestação e Existência. Ser é uma categoria intermediária: não-manifestada mas ainda assim distinta do Não-Ser; a primeira manifestação, ainda assim distinta da Existência. Em certo sentido, o Ser pode ser dito aquele aspecto do Não-Ser que é o princípio imediato para a Existência como tal, ou Não-Ser na medida em que é exprimível à Existência; no entanto, em um sentido mais profundo, Não-Ser é anterior ao Ser, que é a primeira determinação em direção à Existência, a primeira distinção para a diferenciação, enquanto o Não-Ser, em si, é indeterminado e indistinto.

Se o Infinito metafísico pode ser visto sob um duplo aspecto de princípio e recipiente, de modo que se pode falar de uma só vez de Infinito metafísico e Possibilidade Universal, essa perspectiva gêmea também é encontrada nas categorias metafísicas subsequentes de Não-Ser e Ser. Assim, o Não-Ser pode ser visto como o princípio que contem ou o solo que abrange o Ser, assim como o Ser carrega essa mesma relação dupla em respeito com a Existência. Esta relação dupla do princípio e de recipiente é fundamentalmente inerente: cada categoria antecedente, como a fonte ou base da categoria subsequente a ela, necessariamente compreende e abrange, em princípio, a totalidade dessa categoria. Expressando este duplo aspecto metaforicamente, pode-se observar que o fruto do carvalho é a "semente" do carvalho, ao mesmo tempo em que abrange, em princípio, todos os aspectos de seu crescimento e forma subsequente.

Um par de imagens sugestivas pode tornar as relações fundamentais entre categorias metafísicas mais claras. Considere quatro círculos ou esferas de assentamento, cada uma associada a uma categoria metafísica particular. Na [Imagem 1], sugerindo a perspectiva em que cada categoria antecedente engloba a categoria subsequente, o círculo externo representa Possibilidade Universal, o próximo o Não-Ser, o próximo o Ser, e do círculo mais íntimo e final, a Existência. Cada círculo contém o subsequente a ele, de forma decrescente, traçando a partir Possibilidade Universal à Existência. Na [Imagem 2], sugerindo a perspectiva em que cada categoria antecedente é o princípio imediato da categoria subsequente, podemos empregar os mesmos quatro círculos de assentamento, mas com uma inversão das relações, pois agora o círculo mais íntimo representará o Infinito Metafísico, o próximo o Não-Ser, o próximo o Ser, e o círculo externo e final, a Existência. Cada círculo é o princípio daquele que o sucede, de uma forma radiante, traçando do Infinito metafísico até a Existência.



Duas consequências adicionais e gerais podem ser verificadas a partir dessas relações categóricas. Em primeiro lugar, mesmo que uma categoria antecedente seja metafisicamente distinta da categoria subsequente, não é isolada dela. A relação principial entre as categorias, na qual a categoria subsequente é fundamentada e de onde retira sua realidade de seu antecedente, implica, de certa maneira, que a antecedente participa dela, ou equivalentemente, "participa pelo” seu antecedente. Mais uma vez, expressando metaforicamente, um fruto e um carvalho são claramente distintos, mas há também uma continuidade evidente, na medida em que o fruto participa principialmente no desdobramento subsequente do carvalho.

A importante e segunda consequência é que, enquanto que a "continuidade na distinção" entre as categorias é mais imediatamente relevante entre uma dada categoria e seu antecedente imediata, a extensão de seus princípios deixam claro que a continuidade deve persistir entre uma categoria e todo o seu conjunto de antecedentes, pois cada um em sua vez possui uma continuidade em relação ao anterior. Assim, a Existência participa não só pelo Ser, seu anterior imediato, mas também pelo Não-Ser e no Infinito metafísico também. O corolário decisivo é que o Infinito metafísico, enquanto transcendentalmente único, principialmente participa e está presente na totalidade das subsequentes categorias metafísicas, até e incluindo a totalidade da Existência. Em última instância, existe apenas um único Princípio: o próprio Infinito metafísico.

A linguagem da metafísica, necessariamente uma de alta abstração, torna-se mais acessível por Guénon através do emprego de várias metáforas adequadas. Assim como o termo Infinito metafísico de uma só vez evoca e transcende o infinito matemático, Guénon extende essa metáfora numérica para as outras categorias metafísicas. Assim, o Não-Ser, em sua indiferenciação não-manifestada, pode ser considerado com o "Zero metafísico"; O Ser, como a diferenciação primordial, pode ser considerado como "Unidade"; A Existência, tomada em sua abrangência, é uma "Unicidade", que compreende a multiplicidade como tal, tomada na indefinitude de suas possibilidades manifestas. A Unidade pode ser vista como a afirmação do Zero, assim como a Unicidade preserva uma unidade essencial, que, entretanto, expressa a multiplicidade. Em termos geométricos, pode-se considerar o Não-Ser como aquele que antecede o espaço e a extensão, o Ser como o ponto primordial, sem espaço em si, mas possuindo todo o espaço na virtualidade, e a Existência como a totalidade do espaço, em sua indefinitude da extensão. Da mesma forma, em termos da fala, pode-se considerar o Não-Ser como o silêncio, como tudo o que é inexprimível, o Ser como o som puro, ou a pura possibilidade da expressão, e a Existência como a totalidade do exprimível, de tudo o que é falado.
A Existência, com o reino das possibilidades manifestas em toda sua diversidade, em sua multiplicidade diferenciada, está necessariamente composta de diversos graus ou modos, cada um formado por um conjunto de possibilidades compatíveis sujeitos a condições em comum, tais como o espaço, tempo, forma e corporeidade. Dentro desta concepção geral, o ser humano individual pode ser visto como uma certa coleção de possibilidades manifestas, tanto corporais quanto sutis, sob certas condições definidoras. Como tal, um dado ser humano é composto de um determinado grau ou estado da Existência universal entre a indefinitude de outros. Se a Existência fosse isolada de sua categoria metafísica antecedente, então um ser humano não seria mais do que uma unidade fragmentada, presente entre uma diversidade indefinida, isolado em si mesmo de qualquer outro estado. No nível da individualidade humana, esta é precisamente a nossa condição existencial. No entanto, a Existência está principialmente "participada" por suas categorias metafísicas antecedentes, assim como cada possibilidade manifestada dentro do domínio de Existência é fundamentada em seu princípio não-manifestado.

A "continuidade na distinção" entre as categorias metafísicas implica que um ser humano é mais do que a sua individualidade particular, pois ele carrega em si a marca principial de todos os antecedentes metafísicos que participam dele. Assim como isto é verdade para um ser humano em um estado particular de existência, também é válido para todos os Estados, independentemente da sua natureza. E, no entanto, no final, há apenas um princípio antecedente - o Infinito metafísico - presente em todas as suas reverberações ao longo de todas as categorias metafísicas e todas aquelas possibilidades que compreendem. Neste sentido, pode-se considerar o Infinito metafísico ainda noutro aspecto, para além da Possibilidade Universal, aquilo que Guénon chama de Ser integral ou total. Este Ser - que deve ser claramente distinguido tanto do Ser como uma categoria metafísica, bem como do ser humano individual - pode ser entendido como o Infinito metafísico em seu aspecto em que principialmente participa ao longo de toda Possibilidade Universal. Como tal, ele é ao mesmo tempo singular em si mesmo, mas diferenciado entre as categorias metafísicas e possibilidades.

Um termo estreitamente relacionado que Guénon emprega é "o Si." Fundamentalmente, o Si é idêntico ao Ser total, mas a partir do ponto de vista do indivíduo humano, o Si é aquele princípio último através do qual todo o conjunto de possibilidades manifestas e não-manifestas que subsistem o ser humano. O Si, então, pode ser entendido com o Ser total visto sob o aspecto particular e limitativo de um determinado indivíduo humano. Sob este aspecto, pode-se dizer, metaforicamente, que se o Ser total é um sol, então o Si é um raio; se o Ser total é uma tapeçaria, então o Si é um fio. O Si, como princípio, é a verdadeira realidade do ser humano, a individualidade sendo só uma modificação transitória e contingente.

O indivíduo humano, do ponto de vista de sua individualidade, é, na melhor das hipóteses, um fragmento dentro da vasta multiplicidade de manifestação. Como participado pelo Si, no entanto, o indivíduo tem sua raiz e remonta ao próprio Infinito metafísico, do qual o Si é um aspecto particular. Tem que ser assim, pois sem essa continuidade essencial, o indivíduo estaria completamente sem realidade, desligado de sua sustentação. Esta continuidade, por toda sua importância fundamental para o indivíduo, não é sentida, é despercebida e desconhecida. É isso que é ao mesmo tempo a tragédia e a promessa da condição humana: uma tragédia, pois sem este conhecimento, esta gnosis, experimentamos a nós mesmos de maneira estreita, fragmentária com a qual estamos muito familiar; uma promessa, pois nenhuma outra correção é exigida para esse conhecimento libertador. Nós não podemos fazer nada, pois não há nada a ser feito; precisamos apenas saber o que é, o que sempre foi, e do que deve ser.


O que é possível para o ser humano é realizar sua identidade essencial com o Si, e, portanto, com o Ser integral e total, o Infinito metafísica em seu aspecto participativo dentro Possibilidade universal. Com essa realização, o ser humano transcende sua individualidade particular, sua humanidade, sendo não mais um fragmento, mas uma totalidade. Guénon descreve esta condição final nas palavras do grande sábio vedântico Shankaracharya: "O iogue, cujo intelecto é perfeito, contempla todas as coisas como habitando em si mesmo e, portanto, pelo olho do Conhecimento, ele percebe que tudo é o Si. Ele sabe que todas as coisas contingentes não são diferentes do Si e que, além do Si, não há nada."

The Logic of the Absolute
The Metaphysical Writings of René Guénon
by Peter Samsel
Parabola 31:3 (2006), pp.54-61.

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