domingo, 18 de maio de 2014

Simbolismo e Antropomorfismo (Por René Guénon)


A palavra “símbolo”, no sentido mais geral, pode ser aplicada a toda expressão formal de uma doutrina, seja ela verbal, visual ou outra; uma palavra não tem outra função ou justificativa senão a de simbolizar uma ideia, o que significa dizer que ela fornece, desde que seja possível, uma representação sensível - e de alguma forma analógica - de uma ideia. Partindo desde sentido, o simbolismo, nada mais é do que o emprego de formas ou imagens como sinais de ideias ou de coisas suprassensíveis, sendo, evidentemente natural a mente humana e, assim, necessário e espontâneo; a linguagem nos dá um simples exemplo deste processo. Existe também, em um sentido mais especial, um simbolismo calculado intencional, que de certa forma cristaliza os ensinamentos doutrinários em figuras simbólicas; e, realmente, entre estes dois tipos de simbolismo não existe, verdade seja dita, uma linha divisória precisa, pois é quase certo que a escrita, na sua origem, era completamente ideográfica, isto é, essencialmente simbólica, mesmo no sentido mais especial que temos referido, embora seja apenas na China, que este estado exclusivamente este ainda permanece. Todavia, o simbolismo, como geralmente compreendido, está mais em uso constante para a expressão do pensamento Oriental que o Ocidental; e isso é perfeitamente compreensível quando se percebe que se trata de um meio muito menos limitado para expressão do que a linguagem comum; sugerindo, dessa forma, muito mais do que aquilo que expressa, fornecendo o suporte que melhor se adapta as possibilidades de concepções que se encontram além do poder das palavras.

De fato, no simbolismo, a indefinitude conceitual de modo algum impossibilita uma exatidão absolutamente matemática, conciliando, assim, qualidades aparentemente contraditórias, ele representa, como se poderia dizer, a linguagem natural da metafísica; além disso, os símbolos originalmente metafísicos podem se tornar símbolos religiosos, por um processo de adaptação secundária em funcionamento ao lado da própria doutrina. Todos os ritos, por exemplo, possuem um caráter eminentemente simbólico, qualquer que seja domínio que esse esteja ligado, e é sempre possível transpor o significado dos ritos religiosos para um sentido metafísico, assim como a da doutrina teológica da qual estão vinculados; mesmo em ritos puramente sociais, se alguém deseja descobrir as razões mais profundas de sua existência, é necessário passar da esfera de aplicações, que contém as condições imediatas relativas, para a esfera dos princípios, isto é, para sua fonte tradicional, que é metafísica em sua essência. Nós não estamos, no entanto, tentando sugerir que os ritos não são nada mais que símbolos puros; são simbólicos, sem dúvida, e eles não podem deixar de ser assim, pois de outra forma seriam bastantes desprovidos de sentido, mas devem ao mesmo tempo serem concebidos de forma a possuir uma eficácia própria, como um meio de realização que funciona tendo em vista o fim para o qual foram instituídos e ao qual estão subordinados. No plano religioso, talvez reconheçam a concepção católica da virtude dos "sacramentos", enquanto que no ponto de vista metafísico se descobre o princípio subjacente a certas formas de realização para o qual faremos referência mais tarde, e é isso que nos possibilita em falar de ritos especificamente metafísicos. Além disso, pode-se dizer que cada símbolo, na medida em que deve essencialmente servir como suporte de um conceito, também é dotado de uma eficácia real; e o próprio sacramento religioso, na medida em que é um sinal sensível, de fato desempenhar um papel similar como apoio da "influência espiritual", que irá transformar o sacramento em um instrumento de regeneração psíquica imediata ou atendida; assim como as potencialidades intelectuais estão inclusas, os símbolo são capazes de despertar ou uma concepção efetiva ou simplesmente uma concepção virtual, de acordo com a capacidade receptiva de cada indivíduo. Deste ponto de vista, um rito ainda é um tipo particular de símbolo: é, pode-se dizer, um símbolo "promulgado", mas apenas se o símbolo for tomado por aquilo que ele realmente é e não considerando meramente o seu exterior ou sua aparência contingente: aqui, assim como no estudo dos textos, é preciso aprender a olhar para além da "letra", a fim de descobrir o "espírito".

Isso, no entanto, é precisamente o que os ocidentais geralmente não conseguem fazer: as interpretações defeituosas dos orientalistas nos fornecem exemplos característicos, muito frequentemente assumem a forma de distorcer os símbolos que são os objetos de estudo, da mesma forma que a mente ocidental em geral distorce espontaneamente quaisquer símbolos que venha a encontrar. A causa determinante do erro, neste caso, é a predominância das faculdades sensíveis e imaginativas: em confundir o próprio símbolo com aquilo que ele representa, por meio de uma incapacidade de elevar ao seu teor puramente intelectual, essa é a confusão fundamental encontrada na raiz de todas "idolatrias", tomando esta palavra seu sentido mais estrito, como é visto com clareza especialmente no Islam. Quando nada de um símbolo resta, mas a sua forma exterior, tanto a sua justificação e sua virtude real igualmente desaparecem; o símbolo então se tornou nada mais que um "ídolo", isto é, uma imagem em vão, e sua preservação equivale a mera "superstição"; até que alguém dotado de um entendimento capaz de efetivamente restaura-lo, seja parcialmente ou totalmente, aquilo que foi perdido, ou pelo menos aqueles elementos que já não estão contidos, salvo nos casos de possibilidade latente. Isso se aplica aos vestígios deixados para trás por todas as tradições em que o real significado caiu no esquecimento, e, especialmente, a qualquer religião que tenha sido reduzida pela incompreensão geral de seus adeptos a um mero formalismo externo; já dissemos que o exemplo talvez mais marcante de tal degeneração é o caso da religião grega. É também entre os gregos que a tendência se encontrava na sua forma mais extrema, que parece ser inseparável da "idolatria" e a materialização de símbolos, ou seja, uma tendência para o antropomorfismo:  eles olhavam para seus deuses como representações de certos princípios, mas eles retratava-os como seres de formas humanas, afetados por sentimentos humanos e agindo segundo as maneiras humanas; e esses deuses, para os gregos, já não possuíam qualquer coisa pela qual fosse possível distingui-los das formas em que a poesia e a arte lhes tinha revestidos, de modo que eles eram literalmente nada além da próprio forma.

Tal redução completa para uma perspectiva humana só poderia servir de pretexto para a teoria que tem sido chamado de "Evemerismo", - nome de seu inventor, segundo a qual os deuses eram inicialmente nada mais do que os homens ilustres; de fato, seria impossível ir mais longe na incompreensão grosseira, mais grosseira até mesmo que certos modernos que se recusam a ver nos símbolos antigos nada mais do que uma figuração ou uma tentativa de explicação dos diversos fenômenos naturais; a tão famosa teoria do "mito solar" é o exemplo mais conhecido deste último tipo de interpretação. "Mitos", assim como "ídolos", nunca foram outra coisa senão símbolos mal compreendidos: um corresponde na ordem dos discursos enquanto que o outro está na ordem visual;  entre os gregos, a poesia deu origem ao primeiro, assim como a arte produziu o segundo; mas entre os povos, como os orientais, naturalismo e antropomorfismo são igualmente estrangeiros, nem um nem o outro pode surgir senão na imaginação dos ocidentais que pretendiam estabelecer-se como intérpretes de coisas que eles falharam em entender completamente. A interpretação naturalista realmente inverte as relações normais: um fenômeno natural, como qualquer outra coisa pertencente à ordem sensível, pode ser tomada para simbolizar uma ideia ou um princípio, e um símbolo não tem uso ou justificativa salvo em virtude do fato de ele pertencer a uma ordem inferior a coisa simbolizada. Da mesma forma, há, sem dúvida, uma tendência geral e natural no homem para empregar a forma humana para fins simbólicos; mas esta prática, o que em si não constitui nenhum problema assim como uso de figuras geométricas ou qualquer outro método de representação, de modo algum constitui antropomorfismo, desde que o homem não se torne um joguete da figuração que ele adotou.

Na China e na Índia, nunca houve qualquer paralelo com o que ocorreu na Grécia, e os símbolos baseados na figura humana, embora comumente utilizados, nunca foram transformados em "ídolos"; e, neste contexto, também pode-se notar o quão oposto é a concepção ocidental de arte ao simbolismo: nada é menos simbólico do que a arte grega "clássica" e nada é mais simbolico do que as artes orientais; mas onde a arte é considerada apenas como um meio de expressão para servir como veículo de certas concepções intelectuais, obviamente não poderia ser tomada possuindo um fim em si mesma, só acontecendo entre os povos de mentes voltadas ao sentimentalÉ nesses povos que antropomorfismo acontece naturalmente, e deve-se notar que estes são os povos entre os quais, pela mesma razão, o ponto de vista religioso propriamente dito foi capaz de estabelecer-se; a religião, no entanto, sempre tentou reagir contra a tendência antropomórfica e combater-lo em seu princípio, até mesmo quando uma concepção mais ou menos distorcida na mente popular tenha ajudado a desenvolve-la na prática.  Os povos chamados semitas, como os judeus e árabes, são neste aspecto semelhante aos povos ocidentais: de fato, não há nenhuma razão para explicar a proibição de símbolos sob uma forma humana, que é comum tanto ao judaísmo e no islamismo, mas com a exceção, que no Islam nunca foi aplicado de forma estrita entre os persas, para quem o emprego de símbolos deste tipo oferecia menos perigos porque, sendo mais inteiramente Oriental que os árabes, e além disso, de uma raça bem diferente, eles estavam muito menos propensos a cair no antropomorfismo.
Estas últimas observações nos dão a oportunidade de proferir algumas palavras sobre a ideia de "criação". Essa concepção, que é tão estranha para os orientais, sendo os muçulmanos uma exceção, assim como também estranho para a antiguidade greco-romana, aparenta ser especificamente judaica em sua origem; a palavra que a denota é realmente de forma Latina, mas ela não carrega mais o significado que o cristianismo lhe deu mais tarde, uma vez que creare, a princípio, significava nada mais do que "fazer", um sentido em que a raiz verbal kri, que é idêntica a raiz da palavra latina, sempre preservou em Sânscrito; a mudança de significado que ocorreu foi profunda e, como já apontado, foi semelhante a alteração sofrida pelo termo "religião".


É claramente do Judaísmo que essa ideia passa para o Cristianismo e ao Islam e a razão para isso é essencialmente a mesma que deu origem à proibição de símbolos antropomórficos. Na prática, a tendência de conceber a Deus como "um ser," mais ou menos semelhante ao um indivíduo e, especialmente, aos seres humanos, onde quer que se encontre, certamente produz como corolário natural uma tendência de atribuir a Deus uma função simplesmente "demiúrgica", isto é, uma atividade exercida sobre uma "matéria" que é encarada como externa a Ele e que é um modo de ação próprio de seres individuais. Sob essas condições, de modo a salvaguardar a noção da Unidade Divina e Infinito, tornou-se necessário declarar expressamente que Deus "criou o mundo a partir do nada", o que equivale a dizer "de nada que fosse externo a Si mesmo", de outra forma a suposição resultaria em limitar-Lo ao dar à luz a um dualismo radical. Neste caso, a heresia teológica eleva-se a uma expressão metafísica absurda, que é, aliás, o que normalmente acontece; mas esse perigo, quase inexistente no que se refere a metafísica pura, se torna bem real do ponto de vista religioso, porque nesta forma derivada, o absurdo não fica imediatamente claro. A concepção teológica de "criação" é uma tradução apropriada da concepção metafísica da "manifestação universal", sendo aquela que melhor se adapta à mentalidade dos povos ocidentais; há, porém, nenhuma equivalência real entre essas duas concepções, uma vez que elas necessariamente devem ser separadas por toda a diferença que distanciam os pontos de vista a que se referem. 

René Guénon em Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus

quinta-feira, 1 de maio de 2014

A Psicologia "Principial": A Natureza Tripartite da Psique Humana na Queda e Restauração (Por Charles Upton)


Giovanni di Paolo - The Creation of the World and the Expulsion from Paradise
A natureza tripartite do microcosmo humano - Espírito, Alma e Corpo - está diretamente relacionada com a natureza tripartite do macrocosmo - O Plano Celestial / Inteligível / Espiritual; o Plano Psíquico/Imaginário e o Plano Físico/Sensual - encontra-se refletido em um nível inferior dentro da alma ou da própria psique. Em conformidade com esta verdade, podemos dizer que a alma humana é composta de três faculdades principais: a mente racional, as afeições e a vontade. A mente racional é o reflexo psíquico do Intelecto; a vontade simbolicamente está relacionada com o corpo, uma vez que ela se manifesta mais visivelmente e concretamente como um movimento voluntário; e as afeições são, por assim dizer, o símbolo da psique como um todo. A alma é também sede dAquilo que a transcende, o intelecto espiritual, o Nous. Na alma original não caída, como Deus o criou, a mente racional se volta para o Intelecto para os seus princípios fundamentais; a vontade obedece às diretrizes que a mente racional obtém desses princípios; e as afeições capacita a vontade para obedecer à mente racional constantemente e de boa vontade.

Na alma decaída, no entanto - a alma condicionada por e identificada com o ego - o Intelecto espiritual é vendado; consequentemente, esta hierarquia é invertida. As afeições são agora atraídas para objetos inadequados (um estado simbolizado na Gênesis por Eva comendo fruto proibido) sem levar em conta o que a mente racional - em seu estado decaído - direciona; a vontade segue estas afeições rebeldes intencionalmente e aprovando o que elas sugerem (simbolizado oferta do fruto proibido  para Adão, que também comeu); e a mente racional (algo como a serpente no jardim) é pressionada a serviço da vontade, tanto para sugerir várias formas e métodos pelos quais poderia transgredir, como para justificar e racionalizar essas transgressões.

Assim, a alma caída, ou a dependência de um determinado vício, é hierarquizado (em ordem decrescente) como Afetos / Vontade / Racionalidade; A sugestão afetiva/sensual para o pecado aparece como um impulso que é imediatamente atendido, muitas vezes em quase completa inconsciência. A tentação para pecar, por outro lado, não quando impulsivamente cedemos a ela, mas quando pelo menos resistimos inicialmente  (já que se nós não resistíssemos ao impulso, nós não reconheceríamos como uma tentação), é hierarquizado como Afeições/Racionalidade/Vontade: a sugestão primeiramente aparece para as afeições, e em seguida é "entretida" pela mente racional que irá produzir argumentos a favor ou contra, e finalmente - a não ser que a tentação seja impedida com êxito - é promulgada pela vontade, seja mentalmente ou fisicamente. A culpabilidade cármica só surge quando a ação entra na terceira fase; somente a vontade pode pecar.

Mas o que exatamente é este "ego" que define a alma "caída"? O ego, no sentido em que estou usando o termo, não é a personalidade consciente de Freud e Jung, mas sim, o nosso apego obsessivo pela auto-definição, que é inseparável do nosso ato de definir quem são as outras pessoas e o que é o mundo. Quando a presença e providência de Deus estão encoberta para nós, a auto-definição se torna obsessiva e fixa; começamos a acreditar - inconscientemente, mas mesmo assim de forma eficaz - que somos autocriados; consequentemente, torna-se impossível para nós vermos que Deus está continuamente recriando nós e o mundo em que vivemos, e, assim, deixamos de apreciar a singularidade de cada momento. Perdemos a capacidade de deixar o mundo e as outras pessoas se revelem para nós, e nem mesmo estamos interessados em aprender algo novo ou surpreendente sobre nós mesmos. A vida fica estagnada, e nós voltamos para as várias paixões, como a luxúria, avareza e a ira, em uma tentativa auto-destrutiva para superar essa estagnação. Além disso, o conhecimento e experiência, que estão necessariamente excluídos pelas nossas definições fixas do eu e do mundo começam a formar uma grande "mente inconsciente" - a inconsciência sendo simplesmente todas as coisas sobre nós mesmos e o mundo, e aos mundos superiores, que não queremos estar consciente, individual ou coletivamente, porque não queremos estar consciente de Deus. A prescrição de Platão para lidar com esse "inconsciente" foi a anamnese - a "recordação" (ou, mais literalmente, "a não-não-recordação"). Todo conhecimento está virtualmente presente em nós; a necessidade para atualiza-lo, para retornar ao que conhecíamos antes do "descuido", é o que os muçulmanos chamam de ghaflah, que nos expulsou do Paraíso.

Além disso, o conhecimento e a experiência excluída pelo ego é, paradoxalmente, inseparável do ego, sendo uma parte dele; encontra-se no sinal obsessivo da auto-definição. O ego é como um iceberg, uma parte consciente relativamente pequena no ápice e uma grande base do inconsciente. E já que é impossível de assumir responsabilidade por coisas que estamos inconscientes, e conscientemente colocamos nas mãos de Deus, nosso inconsciente se torna caótico e indisciplinado; ele aparece como um domínio das paixões. A psicologia Sufi chama esse ego inconsciente (comparável em alguns aspectos, de acordo com o professor Sufi Javad Nurbakhsh, ao id freudiano) de nafs al-Ammara, a "alma comandando para o mal". Se a mente racional for cortada do Intelecto, se as afeições governarem a vontade, e a vontade domina a mente racional em vez de servi-la, isso se dá inteiramente devido ao fato de que a nossa obsessiva auto-definição relega a maior parte da nossa psique, e maioria de nossa experiência potencial tanto deste mundo material como os mundos superiores sutis, à esfera inconsciente. Cada psicopatologia de qualquer que seja (excluindo, claro, aquelas condições, obviamente baseadas em causas físicas) em última instância, nasce do fato de que o ego, e não o Espírito de Deus, tomou posse do centro da psique humana, o coração espiritual. O fato de que esta ou aquela doença mental é refletida na fisiologia e química do cérebro também não prova que a fisiologia e a química do cérebro são necessariamente as causas da mesma. Quando estamos assustado por um evento interior ou exterior - a visão de um acidente de automóvel, por exemplo – faz a frequência de batimentos cardíacos aumentar. Será que isso significa que o nosso aumento na frequência cardíaca realmente causou o acidente de automóvel?

Assim, a inversão da hierarquia das faculdades psíquicas e nossa servidão ao ego são duas maneiras de falar sobre a mesma condição. Nós falamos da alma "caída" - mas quanto exatamente ela "caiu"? Já houve um "tempo", quando as faculdades da alma não estavam invertidas, pelo menos em parte, onde não havia "inconsciente"? Falamos, mais ou menos em termos míticos, da Idade de Ouro ou o Jardim do Éden; e idealizamos (ou pelo menos nós costumávamos) o paraíso da infância e / ou a "experiência oceânica" da vida no útero. Mas o fato é que, de acordo com a nossa noção de tempo linear, nenhum paraíso perdido está em evidência. A auto-definição obsessiva era um problema menor em nossa infância, mas a nossa capacidade de tomar decisões racionais, controlar nossos impulsos e conscientemente submeter nossas vidas a Deus também era menos desenvolvida (se, de fato, tiver melhorado até agora!) Então, somos forçados a concluir que, se há de fato houve uma "queda", foi uma queda da eternidade para o tempo, não necessariamente uma queda de um momento anterior e melhor. Em Deus todos nós estávamos perfeitamente, na forma como Ele nos conhecia e nos criou para ser; e considerando que a eternidade é um aspecto de Deus, todos nós estamos, em certo sentido, lá. Mas quando o tempo sobreveio - quando, devido à natureza excludente da nossa obsessiva auto-definição fez a experiência deixar de ser global e, fazendo-se parcial, necessariamente também se tornou sequencial (assim como uma sala escura, depois do pôr do sol, já não se pode mais ver tudo de uma vez, somente como sequencias parciais de pontos de vista de acordo para onde nós fixamos nossa lanterna), a alma caiu; a hierarquia adequada das faculdades psíquicas se inverteu. "Quando", ou mesmo "como" isso aconteceu pode vir a cair sob as perguntas que o Buda classificou como "tendendo a não edificação": a verdadeira questão é, não como entramos nessa prisão, mas como podemos sair novamente. A resposta a essa pergunta é o caminho espiritual, a expressão por excelência da "misericórdia especial" de Deus, al-Rahim, no curso desta caminhada, todas as perguntas necessárias serão respondidas, enquanto que todas as perguntas desnecessárias e estéreis serão alegremente esquecidas.

Nos primeiros estágios do caminho espiritual - aqueles conhecidos como "os mistérios menores" - o objetivo é devolver a alma à sua natureza original, como Deus a criou, assim, restabelecer a sua hierarquia própria, onde a mente racional obedece ao intelecto, a vontade obedece à mente racional, e as afeições obedecem à vontade. A alma é "edificada", construída como um edifício sólido, com uma ampla base de caráter forte apoiando o "pináculo" da consciência exaltada. Essa edificação representa o re-ordenamento da alma em seu modo ativo, o retorno de sua capacidade de agir em consonância com os princípios espirituais. A alma humana também é capaz, no entanto, de operar em modo receptivo - como no caso da memória, por exemplo, assim como na imaginação ativa ou objetiva, que está em polos opostos da fantasia subjetiva. Quando as afeições são receptivas, elas recuperam a capacidade de refletir o Intelecto diretamente, sem a mediação de qualquer mente racional ou vontade individual - uma capacidade que define todo o aspecto imaginário da contemplação espiritual, bem como a contemplação da beleza espiritual na natureza, na arte e no corpo humano. Quando a vontade é pacificada mediante a obediência à mente racional, e a mente racional é corretamente reorientada obedecendo ao intelecto espiritual, a turbulência das afeições desaparecem, até que a substância emocional torna-se como um lago imóvel em um dia sem vento, capaz de refletir o sol, não como uma grande quantidade de pontos de luz separados e efêmeros, mas de uma forma unificada.
William Blake - Satan Watching the Caresses of Adam and Eve

A mente racional, a vontade e os afetos são as três faculdades principais da psique humana. A psique, no entanto, é também sede de várias faculdades de composição. A principal delas é a memória e a imaginação, ambas assumem três formas diferentes: passiva, ativa e transcendentais, que estão relacionados com as três gunas ou modos de Prakriti (Substância universal) no Hinduísmo: tamas, rajas e sattwa. A imaginação ativa pode ser dividida em modos introvertidos e extrovertidos.

Na memória passiva, a ação é hierarquizada Afeições / Vontade / Racionalidade, diretamente linha da condição da alma decaída. As afeições sugerem uma impressão, a vontade segue imediatamente, e então o pensamento elabora. A memória passiva - devaneio nostálgico - é, em última análise, baseada na atração das afeições a forma sutil da natureza material, mediante ao anseio de voltar à nossa "mãe", nossas origens maternas no mundo natural, para além do conhecimento da mente racional e a resolução da vontade. (As pessoas viciadas na memória passiva verão toda a vida, mesmo sendo uma experiência humana, como um processo de "fazer memória"). Essa memória se torna quase necessária como uma "atividade recreativa" para a alma devorada pela obstinação racional da vida moderna, baseada na escravidão da mente racional à vontade, segundo a qual a alma está sempre tentando colocar as afeições em trabalho para abastecer esta ou aquela obsessão. A poesia crepuscular e putrescente de Georg Trakl é a expressão quintessencial desse estado. De certa forma pode ser vista uma vingança sutil dos afetos reprimidos sobre a obstinação que os reprime. A nossa natureza emocional, cansada de ser explorada e drenada por nossas ambições e obsessões, enfraquece-os periodicamente "desligando" a nossa racionalidade e vontade - mas como René Guénon apontou, o "sentimentalismo burguês" nada mais é que a face oposta do voluntarismo burguês racionalista. E na medida em que a memória passiva é apenas um recuar para "Este Mundo" como uma matriz projetiva (por mais que nós possamos inconscientemente temer este Mundo), ela destrói progressivamente a virtude da vigilância que faz a contemplação das realidades eternas possível. Essa busca inconsciente por segurança, ou por inconsciência como segurança, juntamente com os vícios de curiosidade e ambição cruel, é o que define a conquista da alma pelo poder de "deste mundo", o sistema coletivo de egoísmo e ilusão. É melhor se relacionar com o mundo natural através do trabalho, ou mesmo através de perigo, do que tomá-lo como uma espécie de resort de férias; se entendermos o mundo natural como rigoroso, assim como belo, então ele não se tornará para nós "as trevas deste mundo" (a escuridão imposta pelo complexo Ego / Mundo, porque não querem que nós observe ou acredite em nada além de seu horizonte ou fora do seu controle) mas sim o conjunto de Nomes e Sinais de Allah - um suporte para a contemplação, e não seu substituto.

Quando William Blake disse "A Memória é a Morte Eterna", ele estava se referindo a memória passiva. A existência governada pelo tempo e devir sempre está falecendo em Hades, no reino dos fantasmas; a condescendência com tal fantasmagoria nos faz moribundos, quase transformando nossas almas nos próprios fantasmas, mesmo antes da morte física, garantindo que nós deixaremos grande parte da nossa realidade humana para trás, na forma fantasmagórica. Tampouco a memória passiva realmente é livre da racionalidade intencional só porque tem o poder de separar-se temporariamente dela; ela permanece ligada à racionalidade voluntarista, assim como a sombra está vinculado ao objeto sólido. Como tal, ela permanece sob a hierarquia invertida de Afeições / Vontade / Racionalidade que caracteriza a alma caída em si. O estado da memória passiva é bem analisada por William Blake em seu poema Tiriel.

Dependendo se nossas lembranças são agradáveis ​​ou desagradáveis​​, a memória passiva irá chamar sentimentos nostálgicos por um lado, ou de arrependimento e / ou repulsa por outro. E a memória passiva, seja agradável ou desagradável, é a expressão emocional do estado da alma caracterizado por Kierkegaard, em O Desespero Humano, como "desespero da necessidade", não aquele desespero em que a necessidade é ausente, mas aquela necessidade, não em termos eternos como o Ser Necessário, mas no temporal como o destino irrevogável, é a base do nosso desespero. Ambas as lembranças agradáveis ​​e desagradáveis​​, quando estão sob o poder da memória passiva, geram desespero; a expressão poética clássica do reconhecimento consciente de tal desespero (que, embora muito doloroso, também pode representar uma chance real para acordar, para começar nossa luta pela liberdade) está no poema de Francis Thompson A Cidade da Noite Terrível.

A memória ativa é algo mais elevado que a memória passiva. É o uso intencional da mente racional para acessar este ou aquele item de informação factual (informação verdadeira, não de fantasia), empregando as afeições, colocando em uso seu poder de simpatia. A memória ativa é hierarquizada Vontade / Afeições / Racionalidade: a intenção de lembrar algo emprega as afeições como seu "motor de busca", depois da qual a mente racional corrige os resultados com o saber consciente. A memória ativa representa, portanto, uma reparação parcial da condição caída da alma, que é hierarquizada Afeições / Vontade / Racionalidade; é um passo em direção a edificação.

Em busca do passado, a memória ativa não procura por potenciais, mas por fatos, por coisas que já foram realizadas; consequentemente, ela está operando, de modo imperfeito, mas válido, no reino do Ser Necessário. Na medida em que os fatos habitam no passado, eles estão separados da ordem metafísica, que subsiste no eterno presente; mas na medida em que são realidades, e não meras possibilidades ou potenciais, eles participam desse reino - uma vez que, de acordo com os filósofos escolásticos, Deus é tanto Ser Necessário e Ato Puro. De forma que quando a história acabada, ela está concluída; na medida em que está concluída, ela está perfeita. Já não está sujeita ao devir. Assim, a compreensão de eventos passados ​​é uma abordagem real da intuição da eternidade, no sentido metafísico. E isso é ainda mais verdadeiro no estudo das leis físicas e axiomas matemáticos, que são os mesmos em todos os lugares e tempos; é por isso que Platão considerava o estudo da matemática como o melhor caminho preparatório para o entendimento da metafísica.

A memória transcendental se baseia em realidades situadas além da hierarquia das faculdades psíquicas; ela pode ser vista como a oitava superior da memória ativa. Em termos do caminho espiritual, a memória transcendental possui uma função mais elevada do que a busca de fatos objetivos - que é, no entanto, um bom treinamento preparatório para ela, uma vez que a essência do caminho é superar subjetividade egóica e alcançar a Verdade Objetiva. Na terminologia tradicional aplicável ao caminho espiritual, a memória transcendental é a recordação, cuja forma mais elevada é a lembrança de Deus (dhikr; japam; Mnimi Theou). Lembrar a Deus é reconhecê-Lo como o Único Absoluto e Fato Todo-abrangente, do qual todos os outros fatos são meros reflexos - é por isso que os verdadeiros fatos de qualquer situação, passado ou presente, são um modo da presença real de Deus ali. A lembrança de Deus é "memória" no sentido de que ela lembra, ou chama de volta, uma realidade esquecida; esquecida, no entanto, não no passado, mas (ou debaixo) no presente. A memória que estamos buscando terá como conteúdo algum evento passado, mas a verdadeira forma dela já se situa abaixo da superfície da consciência, neste exato momento.

A lembrança de Deus invoca a pré-eternidade, que é muitas vezes sentida como uma nostalgia de um paraíso perdido - não o paraíso natural da memória passiva, mas o paraíso celestial da forma humana Eterna. Lembrar que estávamos uma vez unidos a Deus na pré-eternidade é começar a lembrar que a pré-eternidade não é se situa fundamentalmente no passado, mas no presente. Deus está aqui; A eternidade é agora. (Os cabalistas dizem: "o que está aqui está em outro lugar, o que não está aqui, está em lugar algum" Isso pode ser parafraseado, em termos temporais, ao invés de espaciais, como: "O que é real agora sempre foi e sempre será real; o que não é real agora nunca vai ser, e nunca foi ". À luz disto, a procura "alquímica" de William Blake "o que pode ser destruído, deve ser destruído!", faz todo o sentido).

Na medida em que reconhecemos Deus como presente neste momento, começamos o processo de "retirada de projeções". Projeção é a tendência de falsamente ver a si mesmo como ser em alguma coisa, pessoa ou situação no mundo exterior, ou no mundo como todo. Mas uma vez que Deus é infinito e absoluto, e uma vez que "o reino dos céus está dentro de ti", a realização de Sua presença corta todos os laços com a memória e a expectativa; o que tem sido, é agora, e assim o passado é apagado - como passado, isto é - não esquecendo, mas lembrando, dado que todas as coisas estão presentes em Deus. Além disso, o que será já está aqui, de modo que o futuro também é obliterado: tudo o que poderia ser desejado (pelo coração) ou temido (pelo ego) está aqui na Presença Única.

A lembrança de Deus, portanto, afeta a lembrança da forma humana. O ser humano imerso no devir, ligado à roda do nascimento e morte, é desmembrado, não espacialmente, mas temporalmente; o desmembramento de Osíris e sua reconstituição por Ísis é um símbolo desta condição.  Ele deixa o passado coberto de sua experiência, o futuro cheio de sua intenção. Mas, quando a presença de Deus é recordada no momento presente, e essa lembrança é estabilizada, então os membros dispersos do memorial, magicamente remontam-se, como os ossos secos da visão de Ezequiel; nas palavras de Rumi (dirigida a Deus) de uma das suas quadras, "Quando Você voltar, tudo retorna." O desapego do passado e do futuro, quando este é o lugar onde a maior parte da nossa identidade é posta, é experimentada como a aniquilação, a Fana Sufi. E o retorno das nossas auto-projeções psíquicas do passado e futuro, quando completo, é experimentada como o Baqa Sufi, a subsistência em Deus -  subsistência como a forma humana integral residente no eterno presente, a essa realidade os sufis chamam de al-insan al-Kamil, o Homem Perfeito. O retorno dessas projeções é legitimamente simbolizado pela ressurreição dos mortos - nesse ponto, nas palavras de Blake, "Filhas de Memória [Musas] tornam-se as Filhas da inspiração".  Este é o reino do Tantra, a dimensão em que as nossas paixões e obscuridades (os nossos medos e desejos, nossos afastamentos e anseios, nossas projeções), em vez de serem suprimidos ou cortados, passam por uma metanoia, até que eles se revelam como a própria substância da manifestação universal de Deus, que é igualmente o Shakti ou Poder de Atenção pelo qual nós contemplamos.

Quando a memória ativa culmina na lembrança de Deus e a memória passiva é superada, o desejo nostálgico e / ou a repulsa da memória passiva são transformados em gratidão - gratidão pela misericórdia de Deus. E esta transformação ocorre, precisamente, por intermédio do desgosto. Desgosto é uma das sensações mais desagradáveis ​​que podemos experimentar, mas também é um dos sinais mais esperançosos da catarse, da purificação espiritual.

Imaginação passiva, como a memória passiva, é hierarquizada Afeições / Vontade / Racionalidade; seu outro nome é "fantasia". (Aqui, podemos ver como as paixões da alma decaída estão diretamente relacionadas com a passividade e, portanto, quão deliberada, uma ação de princípios, embora possa ter certas consequências negativas, ainda é um verdadeiro passo para a redenção.) Nossas afeições são atraídos por este ou aquele conjunto de impressões dentro do reino sutil; nossa vontade é apropriado por eles e se envolve com eles; nossa mente pensante (em grande parte mediada pelo discurso inconsciente) desenvolve-os, forma-os em imagens articuladas; é isto que é fantasiar. Imaginação passiva é como a memória passiva exceto que essa lida com as coisas que nunca existiram no mundo material, e pode nunca vir a este mundo - como possibilidades, isto é, não como necessidades.

Imaginação passiva tem a ver não com fatos, mas com potenciais. Talvez nunca tenhamos a intenção de trazer esses potenciais para o mundo real, optando desfruta-los como se fossem um mundo em si, ainda assim estão sempre pressionando por uma encarnação, e são fantasias de luxúria ou raiva que nos conduzem frequentemente a ações luxuriosas ou violentas. E se nós desfrutarmos dos potenciais que nunca pretendemos realizar, nossas vidas se tornam irreais; assim, a imaginação passiva, pode ser comparada, com precisão, a sexualidade quando divorciada tanto da reprodução como da contemplação, os quais representam a realização das potencialidades inerentes a ela. (A resistência da imaginação passiva à realização concreta de potenciais é analisada por William Blake em O Livro de Thel.)

 Imaginação passiva, uma vez que tem a ver com o Ser Possível em vez do Ser Necessário, existe em um nível ontológico inferior a memória passiva. Ela evita a realidade, tanto prática como metafísica, e, portanto, tende a substituí-la. É um parasita da realidade. Ela pode dar uma sensação de que muito é possível, que a nossa vida e alma são tão ricas em potencial que se pode usar seu precioso tempo na concretização deste potencial, uma vez que é praticamente imortal. As desvantagens desta ilusão são analisados ​​na peça japonesa Nō Kantan e na canção de Simon e Garfunkel "Hazy Shade of Winter".

Imaginação passiva, claro, também está sujeita a pesadelos, à apreensão dos potenciais negativos; sendo rica, convida-nos para contemplar aquilo que gostaríamos de ver acontecer, ou apenas ver, assim ela se encontra inseparável da temorosa contemplação daquilo que temos medo que possa acontecer, ou o aquilo que estávamos com medo de nunca testemunhar, mesmo no nível imaginário. A irresponsabilidade que alimenta a imaginação passiva positiva é sempre eventualmente compensada pela insegurança rastejante que convida a imaginação passiva negativa; se não estamos cumprindo nossos deveres, podemos legitimamente temer que a vida vai nos dar um sério golpe. A imaginação passiva (especialmente em sua forma positiva) é analisada por Kierkegaard em O Desespero Humano como "desespero da possibilidade" - e não o desespero do impossível (o que seria o "desespero da necessidade"), mas o desespero que se esconde na fantasia da própria possibilidade.  No entanto, o desespero da necessidade, muitas vezes subjaz desespero da possibilidade. A falsa esperança que costuma dizer "tudo é possível!", enquanto não toma sequer o primeiro passo para realizar tal possibilidade à mão, geralmente não passa de uma negação de um sentimento subjacente de que "nada é possível", que se  alguém tomasse as medidas concretas necessárias para realizar determinado potencial, esse inevitavelmente daria de cara com a porta da realidade.
Imaginação ativa é um passo acima do mundo de fantasia "infra-psíquico" da imaginação passiva. É hierarquizado (como uma tentação conscientemente resistida) como Afeições / Racionalidade / Vontade; consequentemente, ela também é um passo parcial em direção a edificação. Ela assume duas formas. Na imaginação ativa introvertida, nós conscientemente interagirmos com as imagens simbólicas que a nossa psique nos apresenta, assim interrogando-as, desafiando-as, para alcançar maior insight psicológico (e por vezes mesmo espiritual). A substância afetiva da alma recebe a impressão de uma imagem simbólica interior; a faculdade racional questiona esta imagem e, assim, transforma sua aura evocativa de significado oculto em conhecimento consciente; a vontade, em seguida, tem a intenção de realizar existencialmente as conseqüências psicoespirituais do conhecimento, assim ganhadas. Esta é uma das principais ferramentas do método psicanalítico de Carl Jung e sua escola. Na sua forma extrovertida, a imaginação ativa representa o processo de trazer potenciais para fora do reino imaginário e para a manifestação física concreta neste mundo. As afeições "atraem" e "entretém" o potencial em questão, a mente racional transforma esse potencial em um plano eficaz; e a vontade leva-o para fora. 

A imaginação transcendental, assim como a memória transcendental, baseia-se em realidades que existem além da hierarquia psíquica. É a imaginação Eterna de William Blake, em linha caracterizava o Espírito Santo como "uma fonte intelectual". Ibn al-'Arabi fala de dois níveis discretos do mundo da imaginação, o alam al-mithal. Enquanto o inferior surge a partir das impressões armazenadas de experiência sensorial; o mais elevado (al-Malakut) recebe impressões diretas do Plano Inteligível dos Arquétipos eternos ou das idéias platônicas (al-Jabarut), e os veste de forma imaginária. A forma inferior da imaginação recorre as impressões de experiência sensoriais do passado mostra a identidade oculta ou afinidade entre a memória passiva e a imaginação passiva. A forma mais elevada de imaginação emana diretamente do Plano inteligível, e, portanto, constitui o mais próximo, a relação mais plenamente encarnada (no sentido sutil) entre a psique humana e o mundo dos princípios metafísicos, não mediada pelo discurso racional abstrato, mas pela reverberação imaginal concreta da intelecção direta, estabelece a identidade entre o plano elevado imaginário de Ibn al-'Arabi e da Imaginação Divina de Blake ou a inspiração poética. Estes dois níveis de imaginação, no entanto, não são completamente independentes, tendo em conta que uma inspiração que emana a partir do nível mais elevado deve revestir-se com a substância do inferior; nós não poderíamos imaginar a Sabedoria como uma linda mulher se nós nunca tivessemos visto mulheres bonitas. É verdade que o arquétipo da beleza feminina existe em um plano mais elevado do que o material, e que toda a beleza feminina neste mundo é derivada dela. No entanto, se esse arquétipo tentasse se manifestar diretamente neste mundo, na ausência de quaisquer memórias da beleza feminina, ou de presente contemplação desta beleza em forma humana, seria irreconhecível e, assim, ininteligível. Beatrice de Dante era um raio da beleza divina, cujo lar adequado era o Paraíso - ainda que ele nunca a vira, mesmo que brevemente, neste mundo, ele nunca poderia tê-la reconhecido em seu ambiente celestial. (Aqui, aliás, pode residir uma verdade por trás afirmação problemática de Tomás de Aquino, que parece negar a realidade da intelecção direta, que o conhecimento pode alcançar a alma somente através dos sentidos.) Não obstante, enquanto o ta'wil (exegese no sentido de "retorno à fonte") da imaginação mais elevada conduz ao plano dos princípios metafísicos eternos, o ta'wil da parte inferior, a menos se transportar em si parte do mais elevado, leva apenas a escuridão do mundo material, cortado dos níveis mais elevados da hierarquia ontológica e, portanto, praticamente inexistente. (Para a melhor introdução à doutrina da imaginação de Ibn al-' Arabi, consulte Imaginal Worlds por William Chittick. Devemos também observar que Ibn al-' Arabi postula um terceiro nível de imaginação, o universal, que é simplesmente afirmar que o todos os mundos, celestial, psíquico e materiais, brotam e constituem a Imaginação Universal de Deus.)

Imaginação transcendental é extremamente ativa; no entanto, não em relação a nossa ação, mas a de Deus, que imprime diretamente sobre a substância afetiva de nossas almas em seu estado quintessencial as verdades que Ele nos quer, não apenas para fantasiar sobre ou pensar, mas para realizar. Quando a camada afetiva da psique está polarizada e diferenciada em várias emoções específicas, não é possível receber as impressões da imaginação transcendental. Quando, no entanto, ela retorna ao seu estado indiferenciado através da virtude da apatia ou da impassibilidade espiritual, que pode ser representado como a resolução dos quatro elementos ou quatro qualidades emocionais primitivas [ver Capítulo II] em sua origem comum no Aether, que é sua Quintessência ("emoções" sendo determinações específicas da substância afetiva que estão em seu caminho para se tornarem "impulsos", "motivos" ou "motivações", em sua interação com a vontade), esta torna-se receptiva às impressões que emanam não a partir do ambiente circundante psíquico mas diretamente do espiritual ou Plano inteligível. Imaginação passiva é passiva, não receptiva; não é propriamente intencional. A imaginação ativa é realmente ativa e intencional, mas apenas no plano individual, embora os símbolos que ela interaja individualmente possam ter um aspecto transcendental. Imaginação transcendental é uma atividade em si, a união de uma determinada verdade eternamente atualizada na Mente de Deus com a boa vontade ativa para que o sujeito humano receba e conceba (e não simplesmente permanecer passivos a ela) esta verdade. Quando a Virgem Maria disse, em Lucas 1:38, "Faça-se em Mim Segundo a Palavra Tua", ela estava abrindo não apenas sua psique, mas seu próprio corpo para a imaginação transcendental de Deus.

Como vimos, a imaginação passiva é ontologicamente inferior memória passiva porque lida com potenciais não realizados. Da mesma forma a imaginação ativa é ontologicamente inferior memória ativa, mas é espiritualmente superior, no sentido de que a contemplação da Necessidade através da memória, embora mais elevada do que o entretenimento da Possibilidade através da imaginação, nem sempre é fértil para nós em termos espirituais, pois é um atributo de Deus, e não da psique humana, e, conseqüentemente, pode, por vezes, ter um efeito paralisante sobre nossa vida espiritual. A contemplação da Verdade eterna como Ser Necessário apenas, completo em um Passado eterno governado pelo Ancião dos Dias, irá - a não ser que nosso próprio futuro torne-se espiritualmente grávido, a menos que possibilidade seja ativada - tornar o progresso espiritual impossível. Em certo sentido, Ser Necessário é o próprio Deus, o único que não pode deixar de ser. Em relação ao ego humano, no entanto, o Ser Necessário é transformado no desespero da necessidade, os laços de fatalidade e karma. Da mesma forma, embora o Ser Possível não seja o que deve ser, mas apenas o que pode ser - meramente contingente, não absoluto - em relação ao ego humano ele pode, se Deus quiser, ser transformado em virtude de esperança. Podemos certamente esperar que uma das coisas que podem ser, seja a nossa própria realização de Deus. Na medida em que estamos imersos na possibilidade do devir, e não na Necessidade da Verdade Eterna, apenas a manifestação dessa Necessidade como uma possibilidade concreta em nossas próprias vidas nos pode oferecer alguma esperança de libertar-nos. Assim, poderíamos dizer, parafraseando os Padres Orientais, que "O Ser Necessário se torna ser possível para que essa possibilidade possa se tornar Necessidade". O que só "pode ​​ser" é perpetuamente incerto e pouco confiável - e ainda outro significado da palavra "pode" é precisamente poder. O poderoso é aquele que tem o poder de atualizar possibilidades, de transformar o ser possível em Ser Necessário; portanto, "Com Deus, todas as coisas são possíveis."

Memória ativa e a memória transcendental são, respectivamente, uma abordagem e uma chegada na Eternidade através do passado; a imaginação ativa e imaginação transcendental são uma abordagem e uma chegada na Eternidade através do futuro - ou melhor, elas são o futuro no ato de se aproximar de nós, e se tornando presente para nós como Eternidade, para além do medo e desejo. Quando a pré-eternidade da memória e a pós-eternidade da imaginação estão unidos no eterno presente, esta é a Eternidade em si, na qual a lembrança de Deus como Eterna Realidade e a auto-revelação de Deus como a Misericórdia de Possibilidade são um e o mesmo.

Quando a memória transcendental e a imaginação transcendental se unem, o intelecto divino é revelado; quando o intelecto divino nos é revelado, a alma decaída é edificada, sua hierarquia invertida das faculdades se configuram corretamente - ou melhor, na posição vertical. As faculdades estão corretamente hierarquizadas ao longo do axis mundi e, conseqüentemente, orientada para o que os sufis chamam de Qutb, o Pólo do intelecto espiritual, tanto cosmológico e pessoal - a realidade que TS Eliot chamou de "o ponto imóvel do mundo que gira", e que aparece na pessoa do Mestre espiritual. Tornamo-nos edificados, eretos, seres humanos justos - Tzaddikim. (A letra hebraica tsade simboliza, entre outras coisas, "o norte", o quarto do Pólo.) A racionalidade serve a Intelecção diretamente; a vontade serve a Intelecção indiretamente, obedecendo os ditames da razão; as afeições capacitam a vontade para servir e assim purificando a mente racional, bem como abrindo-a mais plenamente para Intelecção; também estará presente o poder de refletir diretamente a Intelecção espiritual no plano da psique, assim como um espelho reflete a luz. Esta é a cumprimento dos "mistérios menores" que, no contexto do caminho espiritual, é o próprio objeto da Psicologia principial. Além disso, além da psicologia, além da própria psique, encontram-se os "maiores mistérios" que constituem a união final da alma com Deus.

Charles Upton - Principal Psychology