sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Realismo – Comunismo – Antiburguesia (Por Julius Evola)

Uma das razões que nós vemos hoje intelectuais simpatizando com o comunismo (o que é paradoxal, pois é bem sabido o desprezo que o comunismo tem para com os intelectuais) está relacionado com a postura antiburguesa que o comunismo assumiu. Entre outras coisas, o comunismo afirma representar a superação da "era burguesa" e que conduzirá a humanidade para um novo realismo, além do subjetivismo, individualismo, o culto do ego, e todas as outras retóricas idealistas. Se não é reconhecido o plano exclusivamente econômico e materialista no qual o comunismo contextualiza essas questões, é provável que este possa exercer certo poder de sugestão sobre os intelectuais.
Não há dúvida que atualmente vários processos estão agindo nesta direção. Após a Primeira Guerra Mundial, esta direção exibiu traços específicos: podemos lembrar na Alemanha o movimento chamado Neue Sachlichkeit, ou Nova Objetividade; na França, a corrente inspirada pelo Espirit Nouveau (de inclinações comunistas) estava destinada a exercer uma influência considerável, especialmente no campo da arquitetura. Hoje, o comunismo encontra solidariedade com questões semelhantes que são formuladas em determinados ambientes; assim, não é nenhuma surpresa que alguns intelectuais sem princípios, que não conseguem entender o último e contaminante significado do comunismo (conhecido apenas de longe e em teoria), fique do lado dele, se iludindo, pensando estar em uma posição de vanguarda.
Este é um erro grave. No entanto, devemos reconhecer que, por si só, uma postura anti-burguesa possui uma razão de ser. Eu não quero dizer burguesa no sentido de uma classe econômica, mas sim aquilo que carrega: há um mundo intelectual, uma arte, costumes e visão geral da vida que, depois de ter sido moldada no último século em paralelo com a revolução do Terceiro Estado, aparecem como vazia, decadente e corrupta. A superação resoluta de tudo isso é uma das condições necessárias para resolver a atual crise da nossa civilização.

Assim, essas tentativas de reagir contra os aspectos mais extremos da subversão mundial são muito perigosas, quando elas visam apenas idéias, hábitos e instituições da era burguesa. Isso equivale a fornecer munição para o inimigo. A mentalidade e o espírito burguês, com seu conformismo, seu apêndice psicológico e romantico, seu moralismo e sua preocupação em uma existência mesquinha e segura em seu materialismo fundamental, encontra sua compensação em um sentimentalismo e na retórica de palavras de grande humanitarismo e democracia - tudo isso apenas em uma vida artificiual, periférica e precária, não importando o quão decididamente sobrevive devido a uma inércia nos estratos sociais de muitos países do "mundo livre". Portanto, afirmo que reagir em nome de ídolos, estilo de vidas e valores medíocres do mundo burguês, como é o caso da grande maioria dos adeptos modernos da "lei e ordem", significa que a batalha esta perdida desde o início.
No entanto, assim como a burguesia nas civilizações anteriores situava-se numa classe socialmente intermediária, entre os guerreiros e a aristocracia política por um lado e o mero "povo" do outro lado - da mesma forma, existe uma possibilidade dupla (uma positiva e uma negativa) de superação da burguesia em geral - a de tomar uma posição firme contra o tipo burguês, a civilização burguesa, seu espírito e seus valores.
A primeira possibilidade corresponde a uma direção que conduz para ainda mais baixo, para uma sub-humanidade coletivizada e materialista, sob a bandeira do realismo marxista - aos valores sociais e proletários contra a "decadência burguesa". De fato, é possível conceber uma liquidação de tudo que diz respeito ao mundo convencional, subjetivista e "irreal" burguês, levando não para cima, mas para baixo daquilo que é próprio da ideia normal da personalidade.  Isso acontece quando o resultado final é o indivíduo em massa, o "coletivo" da ideologia soviética, no clima mecanizado e sem alma que o acompanha. Neste caso, o resultado da liquidação do mundo burguês pode atingir apenas a mais uma regressão: vamos para o que está mais abaixo ao invés daquilo que está acima da pessoa. É o oposto daquilo que aconteceu nas grandes civilizações "objetivas" (para usar a expressão de Goethe), que impulsionava o anonimato e o desdém para o indivíduo, embora num contexto de valores superiores, heróicos e transcendentes.
Da mesma forma, se o esforço em direção a um novo realismo é correto, podemos ver claramente o erro daqueles que consideram apenas os graus inferiores da realidade como real. Isto acontece quando o realismo é formulado essencialmente em termos economicos (como acontece no comunismo). O mesmo se aplica a algumas tendências que surgiram nas artes ou nas margens da filosofia, e que estão ao lado dos movimentos de esquerda, assumindo uma postura anticonformista para a sociedade atual. Uma dessas tendencias se autodenomina "neo-realismo", enquantro a outra é um existencialismo radical inspirado por Sartre e seu círculo. Nessa filosofia, "existência" é identificada com as formas de vida mais rasas; este tipo de existência é separado de qualquer princípio superior, estimando sua imediação angustiada e sem luz. Este tipo de existencialismo tem sua contrapartida na psicanálise, uma doutrina que despe e marca como irreal o princípio consciente e soberano da pessoa, considerando como "real" a dimensão irreacional, inconsciente, coletiva e noturna do ser humano: nesta base, cada faculdade superior é vista como derivada e dependenteIsso também ocorre no plano social e cultural, onde o Marxismo se esforça para retratar como uma mera "superestrutura" tudo aquilo que não pode ser contado como processos sociais e econômicos. Estamos, obviamente, na mesma linha de pensamento quando o existencialismo proclama a primazia da "existência" sobre o "ser", em vez de reconhecer que a existência adquire um significado apenas quando ela é inspirada por algo além de si mesma. Assim, há um paralelo exato e visível entre essas correntes intelectuais revolucionárias e movimentos socio-políticos, pois o que estamos tratando é a manifestação, no domínio individual, daquilo que no domínio social e histórico manifesta-se como uma mudança subversiva do poder para as massas, a substituição do superior pelo inferior e a remoação de qualquer princípio de soberania que não se orgine "de baixo". O "realismo" existencialista e psicoanalítico, juntamente com tendências semelhantes, aponta para uma imagem humana que reflete tais relações no individual; tal imagem aparece como multilada, distorcida e subversiva. Assim, podemos considerá-la como resultado de uma cogenialiadde quando muitos intelectuais de tendências semelhantes simpatizam com essas correntes sociais de esquerda, mesmo quando os líderes políticos dessas correntes não possuem os mesmos sentimentos por eles.
No entanto, há uma segunda possibilidade: pode-se conceber uma visão realística e uma luta contra o espírito burguês, o individualismo e o falso idealismo que é mais radical do que a luta travada contra eles pela esquerda, e ainda orientada para cima, não para baixo. Como já disse no capítulo anterior, essa possibilidade diferente depende de uma retomada dos valores heróicos e aristocráticos quando são assumidos com naturalidade e clareza, sem retórica ou pomposidade: em retrospecto, aspectos típicos exemplificados pelo mundo romano e germânico-romano. É possível manter uma distância de tudo o que tem apenas um caráter especialmente subjetivista humano; sentir desprezo pelo conformismo burguês e seu moralismo e egoísmo mesquinho; para encarnar o estilo de uma atividade impessoal; preferir o que é essencial e real em um sentido mais elevado, livre das armadilhas do sentimentalismo e da superestrutura pseudo-intelectual - e ainda, tudo isso deve ser sentido permanecendo de pé, sentindo a presença na vida daquilo que o leva além da vida, tirando daí as normas precisas da ação e do comportamento.
Tudo o que é antiburguês, nesse sentido, não converge para o mundo comunista; pelo contrário, é a premissa para o surgimento de novos homens e líderes, capazes de erguer verdadeiras barreiras contra a subversão global, em correspondência com o estabelecimento de um novo clima, que disporá de suas próprias expressões únicas, mesmo em termos de cultura e civilização.
Por isso, é imprescindível reconhecer claramente a oposição entre as duas possibilidades ou as direções da postura antiburguesa mencionadas acima. Isto é especialmente verdadeiro na Itália. No passado, o fascismo adotou uma postura antiburguesa e, como parte da renovação a qual pressupunha inaugurar, desejou o advento de um novo homem, que deveria romper com o estilo burguês de pensar, sentir e agir. Infelizmente, foi um dos casos em que o fascismo nunca passou de seus próprios slogans; esses elementos no fascismo que, apesar de tudo, permaneceram burgueses ou se tornaram burgueses por contágio constituiu um dos seus pontos fracos. Na medida em que o presente está em causa, com raras exceções, o Italiano comunista médio é nada além de um burguês que vai as ruas (o próprio Lenin disse que um proletário, deixado a si mesmo, tende a torna-se um burguês), assim como um falso cristão e um membro do Partido Democrata Cristão representam nada mais do que a burguesia do templo. Mesmo aqueles que se dizem monarquistas só pode conceber um rei burguês. O pior mal para a Itália é a burguesia: o burguês-sacerdote, o burguês de trabalho, o burguês "nobre", o intelectual burguês. Este tipo é inconsistente, uma substância sem forma, na qual não existe qualquer "acima" e "abaixo". A palavra de ordem ou grito de guerra deveria ser: "limpar a lousa!" Somente seguindo esta máxima uma mudança para a direção errada pode ser evitada.
Depois de mencionar os intelectuais e realismo, ainda é necessário introduzir um ponto. Sugeri que o flerte de alguns intelectuais com o comunismo é paradoxal, uma vez que o comunismo despreza a figura do intelectual, a quem considera como um membro da odiada burguesia. Aliás, uma atitude semelhante pode ser compartilhada mesmo por aqueles que estão na frente oposta ao comunismo. Na verdade, é possível se opor a qualquer valorização exagerada da cultura e da intelectualidade, considerando o que constituem no mundo contemporâneo. Cultuar eles, definir seus representantes como um estrato social mais elevado, quase uma aristocracia - "aristocracia do pensamento", que acredita ser a verdadeira, legitimamente substituindo as formas anteriores da elite e da nobreza, é um preconceito característico da era burguesa em sua esfera humanista ou liberal. A verdade é que esta cultura e o intelectualismo são nada mais que os produtos da dissociação e neutralização dentro de uma ordem mais ampla das coisas. Como isso não passou despercebido, o anti-intelectualismo tem sido quase uma reação biológica, desempenhando um papel relevante nos últimos tempos: infelizmente, tem prosseguido em direções falsas ou problemáticas.
Não vou, no entanto, me debruçar sobre este último ponto, como já discutimos isso em outro contexto, ao lidar com o erro do anti-racionalismo. Aqui só quero salientar que, se desejamos superar a "cultura" burguesa, há um terceiro ponto de referência possível além de ambos intelectualismo e anti-intelectualismo: uma visão de mundo (em alemão - Weltanschauung). A visão de mundo é baseada não em livros, mas em uma forma interna e uma sensibilidade dotada de um caráter inato, ao invés de adquirido. É essencialmente uma disposição e uma atitude, em vez de uma cultura ou de uma teoria - uma disposição e uma atitude que não apenas dizem respeito ao domínio mental, mas também afetam o domínio dos sentimentos e da vontade, forjam o caráter da pessoa, e se manifestam em reações com a mesma certeza instintiva, dando provas de um sentido certo da vida. Normalmente, uma visão de mundo, ao invés de ser uma questão individual, procede de uma tradição e é o efeito biológico das forças que moldaram um certo tipo de civilização; ao mesmo tempo, uma placa para o sujeito [do ponto de vista do sujeito], a visão de mundo se manifesta como uma espécie de "pista interna" e uma estrutura existencial. Em todas as civilizações, era uma "visão de mundo" e não uma "cultura" que permeava os vários estratos da sociedade; onde a cultura e o pensamento conceitual estavam presentes, eles nunca tiveram a primazia, pois sua função era simples meios expressivos e órgãos em serviço da visão de mundo. Ninguém acreditava que o "pensamento puro" revelaria a verdade e forneceria um sentido para a vida: o papel do pensamento consistia em esclarecer o que já se possuía e que já pre-existia como evidências e sentimento direto, antes de qualquer especulação fosse formulada. Os produtos do pensamento tinham apenas valor simbólico, atuando como indicadores. Assim, a expressão conceitual não tinha um caráter privilegiado em relação as outras formas de expressão. Nas civilizações precedentes o último consistia em imagens evocativas, símbolos e mitos. Hoje as coisas funcionam de outra forma, considerando-se o crescimento e a hipertrofia cerebral do homem ocidental. No entanto, é importante não confundir o essencial pelo acessório, e que as relações acima referidas são reconhecidas e retidas; em outras palavras, sempre que a "cultura" e "intelectualismo" estão presentes, eles podem ter um papel apenas instrumental, expressando alguma coisa de mais profundo e mais orgânica, ou seja, uma visão de mundo. A visão de mundo pode encontrar expressão mais clara em um homem sem educação formal do que em um escritor, assim como pode ser mais fortemente representada em um soldado, um aristocrata, ou um agricultor que é fiel à terra do que no intelectual burguês, o típico "o professor", ou o jornalista.
Em relação a tudo isso, a Itália está em desvantagem, pois todos aqueles com o poder na mídia, na cultura acadêmica, em revistas críticas, e que assim, organizam, monopolizando, sociedades reais quasi-maçonicas, são os piores tipos de intelectuais, que nada sabem do significado da espiritualidade, da totalidade humana, ou do pensamento que reflete princípios fortes.
"Cultura" no sentido moderno deixa de ser um perigo apenas quando aqueles que lidam com ela já possuiem uma visão de mundo. Só então será possível uma relação ativa em direção a ela, pois, já terá uma forma interior que lhe permita discernir com segurança o que pode ser assimilado e o que deve ser rejeitado, mais ou menos como acontece em todos os processos diferenciados de assimilação orgânica.
Tudo isso é bastante evidente, ainda que tenha sido mal interpretado sistematicamente pelo pensamento liberal e individualista: uma das calamidades da "cultura livre" disponibilizada a todos e exposta por esta ideologia é o fato de que, desta forma, muitos que são incapazes de discriminação de acordo com o julgamento apropriado, e que ainda não têm sua própria forma e visão de mundo, encontra-se à mercê de influências similares. Esta situação deletéria, que é ostentada como um triunfo e como progresso, procede de uma premissa de que é exatamente o oposto da verdade: presume-se que, ao contrário dos homens que viviam nas épocas "obscurantistas" do passado, o homem moderno é espiritualmente maduro, e, portanto, capaz de julgar por si mesmo e de estar por si só (esta é a mesma premissa da "democracia" moderna em suas polêmicas contra qualquer princípio de autoridade). Mas isso é pura ilusão: nunca antes, como nos tempos modernos, houve tal número de homens que são espiritualmente sem forma, e, portanto, aberto a qualquer sugestão e intoxicação ideológica, de modo a tornar-se dominado por correntes psíquicas (sem estar ciente disso) e de manipulações pertencentes ao clima intelectual, político e social em que vivem. Mas estas considerações nos levariam muito longe.
Minhas observações sobre a "visão de mundo" complementam os aspectos do problema que tenho lidado quando mencionei o novo realismo; elas especificam onde este problema deve ser situado e resolvido, em um modo antiburguês - pois não há nada pior do que uma reação meramente intelectual contra o intelectualismo. Se o nevoeiro levantará, ficará claro que a "visão de mundo" deve ser o fator de unificação ou divisão, demarcando barreiras intransponíveis espiritualmente. Mesmo em um movimento político ela constitui o elemento principal, porque só uma visão de mundo tem o poder de produzir um determinado tipo humano e, portanto, transmitir um tom específico de uma determinada comunidade.


Com o comunismo já houve situações em que algo começou a chegar a tais profundidades. Muito corretamente, um político contemporâneo falou de uma mudança interior e profunda que, por manifestar-se sob a forma de uma obsessão, é produzido naqueles que realmente aderem ao comunismo; seu pensamento e conduta são alterados por ele. Na minha opinião, é uma alteração ou contaminação fundamental do ser humano: em tais casos, afeta o plano da realidade existencial, o que não é o que acontece com aqueles que reagem de posições burguesas ou intelectualistas. A possibilidade de uma ação revolucionária-conservadora depende essencialmente da medida em que a idéia contrária, ou seja, a tradicional, a aristocrática, a ideia anti-proletária, é capaz de atingir tais níveis existenciais - assim dando a um novo realismo e permitindo a Tradição, como uma visão de mundo, para dar forma a um tipo específico de homem antiburguês como o núcleo de novas elites, que ultrapassa a crise de todos os valores individualistas e irrealistas.

Julius Evola - Cavalcare la Tigre

domingo, 16 de novembro de 2014

As Dificuldades do Historicismo (Por Mircea Eliade)

O reaparecimento das teorias cíclicas no pensamento contemporâneo está repleto de significado. Incompetentes que somos para passar julgamento sobre sua validade, devemos nos limitar a observar que a formulação de um mito arcaico, em termos modernos, representa, quando menos, uma traição ao desejo de encontrar um significado e uma justificação trans-histórica para os acontecimentos históricos. Assim, encontramo-nos uma vez mais na posição pré hegeliana, com a validade das soluções "historicistas", de Hegel a Marx, sendo implicitamente questionada. A partir de Hegel em diante, todo esforço é concentrado no sentido de conservar e atribuir um valor ao acontecimento histórico como tal, o acontecimento em si mesmo e para si mesmo. Em seu estudo da Constituição alemã, Hegel escreveu que, se reconhecermos que as coisas são necessariamente como elas são, isto é, que elas não são arbitrárias e nem resultam da casualidade, teremos ao mesmo tempo de reconhecer que elas devem ser como são. Um século mais tarde, o conceito da necessidade histórica vai desfrutar de uma aplicação prática cada vez mais triunfante: na verdade, todas as crueldades, aberrações e tragédias da história têm sido, e ainda são, justificadas pelas necessidades do "momento histórico". Hegel provavelmente não pretendia ir tão longe. Mas, como tinha decidido reconciliar-se com seu próprio momento histórico, considerou-se obrigado a ver em cada acontecimento a vontade do Espírito Universal. Por isso é que ele considerava "a leitura dos jornais matinais como uma espécie de bênção realista da manhã". Para ele, só o contato diário com os acontecimentos podia orientar a conduta do homem em suas relações com o mundo e com Deus.

Como podia Hegel saber o que era necessário na história, o que, conseqüentemente, tinha de ocorrer, do jeito que havia ocorrido? Hegel acreditava saber qual era o desejo do Espírito Universal. Não pretendemos insistir sobre a audácia de suas teses, que, afinal de contas, servem para abolir precisamente aquilo que Hegel pretendia salvar na história — a liberdade humana. Mas existe um aspecto na filosofia da história defendida por Hegel que nos interessa muito, porque ainda preserva algo da concepção judeu-cristã: para Hegel, o acontecimento histórico era a manifestação do Espírito Universal. Agora, é possível encontrar um paralelo entre a filosofia da história, de Hegel, e a teologia da história defendida pelos profetas hebreus: para estes últimos, assim como para Hegel, um acontecimento é irreversível e válido em si mesmo enquanto é uma nova manifestação da vontade de Deus — uma proposta que, verdadeiramente, consideramos revolucionária, do ponto de vista das sociedades tradicionais, dominadas pela eterna repetição dos arquétipos. Portanto, na visão de Hegel, o destino de um povo ainda preservava um significado trans-histórico, porque toda a história revelava uma nova e mais completa manifestação do Espirito Universal. Mas, com Marx, a história lançou fora todo o seu significado transcendental; já não era coisa alguma, além da epifania da luta de classes. Até que ponto uma tal teoria justifica o sofrimento histórico? Para obter uma resposta, precisamos apenas nos voltar, por exemplo, para a patética resistência de um Belinsky ou um Dostoyevski, que perguntavam a si mesmos como, a partir do ponto de vista das dialéticas hegeliana e marxista, seria possível redimir todos os dramas da opressão, dos sofrimentos coletivos, das deportações, humilhações e massacres que enchem a história universal.

No entanto, o marxismo preserva um significado da história. Para o marxismo, os acontecimentos não são uma sucessão de acidentes arbitrários; eles demonstram ter uma estrutura coerente, e, acima de tudo, levam a um propósito definido — à eliminação final do terror da história, à "salvação". Desta maneira, no ponto final da filosofia marxista da história, encontramos a era de ouro das escatologias arcaicas. Neste sentido, é correto afirmar não apenas que Marx "trouxe a filosofia de Hegel de volta à terra", mas também que ele reconfirmou, em um nível exclusivamente humano, o valor do mito primitivo da era de ouro, com a diferença de que coloca a era de ouro no final da história, ao invés de colocá-la também no seu ponto inicial. Para o militante marxista, é aqui que está o segredo do remédio para o terror da história: da mesma forma que os contemporâneos de uma "era obscura" consolavam-se, diante dos seus sofrimentos cada vez maiores, com o pensamento de que o agravamento do mal acelera a libertação final, os militantes marxistas dos nossos dias interpretam o drama provocado pelas pressões da história como um mal necessário, um sintoma premonitório da aproximação da vitória, que colocará um fim permanente a todos os "males" históricos.

O terror da história torna-se cada vez mais intolerável a partir dos pontos de vista proporcionados pelas várias filosofias historicistas. Porque nelas, naturalmente, cada acontecimento histórico encontra seu único e total significado apenas em sua realização. Não precisamos aqui entrar nas dificuldades teóricas do historicismo, que já serviram para perturbar Rickert, Troeltsch, Dilthey e Simmel, e que os recentes esforços de Croce, de Karl Mannheim, ou de Ortega y Gasset conseguiram apenas parcialmente ultrapassar. Este ensaio não exige que discutamos o valor filosófico do historicismo como tal, nem a possibilidade de estabelecimento de uma "filosofia da história" que definitivamente transcendesse ao relativismo. O próprio Dilthey, aos setenta anos de idade, reconheceu que "a relatividade de todos os conceitos humanos é a última palavra da visão histórica do mundo". Em vão ele proclamou uma allgemeine Lebenserfahrung como meio final de transcender a esta relatividade. E foi também em vão que Meinecke invocou o "exame de consciência" como uma experiência transubjetiva, capaz de transcender à relatividade da vida histórica. Heidegger tinha se dado ao trabalho de mostrar que a historicidade da existência humana proíbe toda esperança de transcendermos ao tempo e à história.

Para nossos propósitos, só uma questão deve nos preocupar: como pode o "terror da história" ser tolerado a partir do ponto de vista do historicismo? A justificação de um acontecimento histórico, pelo simples fato de ele ser um acontecimento histórico, em outras palavras, pelo simples fato de ter "acontecido dessa maneira", não caminha no sentido de libertar a humanidade do terror que o acontecimento inspira. Deve-se compreender que não estamos aqui preocupados com o problema do mal, que, independente do ângulo a partir do qual possa ser visto, permanece como um problema filosófico e religioso; estamos preocupados, isto sim, com o problema da história como história, do "mal" que está limitado não pela condição do homem, mas pelo seu comportamento em relação aos outros. Deveríamos querer saber, por exemplo, como seria possível tolerar e justificar os sofrimentos e a aniquilação de tantas pessoas que sofrem e que são aniquiladas pela simples razão de que sua situação geográfica as coloca no caminho da história; por serem vizinhos de impérios que se encontram em estado de permanente expansão. Como justificar, por exemplo, o fato de o sudeste da Europa ter sofrido durante séculos — sendo portanto obrigado a renunciar a qualquer impulso no sentido de uma existência histórica mais elevada, na direção da criação espiritual no plano universal — pela única razão de que estava no caminho dos invasores asiáticos e, mais tarde, vizinho do Império Otomano? E, em nossos dias, quando as pressões históricas já não permitem mais qualquer fuga, como pode o homem tolerar as catástrofes e horrores da história — desde as deportações e massacres coletivos até os bombardeios atômicos — se, além deles, não consegue ver qualquer sinal nem significado trans-histórico; se esses acontecimentos são apenas as jogadas cegas de forças econômicas, sociais ou políticas, ou, pior ainda, unicamente o resultado das "liberdades" que uma minoria toma e exercita de modo direto sobre o cenário da história universal? 

Sabemos como, no passado, a humanidade conseguia suportar os sofrimentos que já tivemos oportunidade de enumerar: eles eram considerados como uma punição aplicada por Deus, a síndrome do declínio da "era", e assim por diante. E era possível aceitar os acontecimentos precisamente porque tinham um significado meta-histórico, porque, para a maior parte da humanidade, ainda apegada ao ponto de vista tradicional, a história não tinha, e nem poderia ter, valor em si mesma. Todos os heróis repetiam o gesto arquetípico, todas as guerras ensaiavam a luta entre o bem e o mal, cada nova injustiça social era identificada com os sofrimentos do Salvador (ou, por exemplo, no mundo pré-cristão, com a paixão de um mensageiro divino ou deus da vegetação), cada novo massacre repetia o glorioso fim dos mártires. Não nos compete aqui decidir se tais motivos eram pueris ou não, nem se uma tal rejeição da história mostrava-se sempre eficaz. Em nossa opinião, só um fato importa: em virtude deste ponto de vista, dezenas de milhões de homens, século após século, foram capazes de suportar enormes pressões históricas sem se desesperar, sem cometer o suicídio nem cair naquela aridez espiritual que sempre traz consigo uma visão relativista ou niilista da história. Além do mais, como já tivemos oportunidade de observar, uma parte considerável da população da Europa, sem falar naquela de outros continentes, ainda vive, hoje em dia, à luz do ponto de vista tradicional, anti-"historicista". Portanto, são as "elites", acima de tudo, que se vêm confrontadas pelo problema, uma vez que apenas elas são forçadas, e cada vez com maior rigor, a tomar conhecimento de sua situação histórica. É verdade que o cristianismo e a filosofia escatológica da história não pararam de satisfazer a uma considerável proporção dessas elites. Até certo ponto, e em relação a determinados indivíduos, pode-se dizer que o marxismo — especialmente em suas formas populares — representa uma defesa contra o terror da história. Somente a posição historicista, em todas as suas variedades e matizes — desde o "destino" de Nietzsche até à "temporalidade" de Heidegger — permanece desarmada. De modo algum se pode considerar apenas como coincidência fortuita que, no caso desta filosofia, o desespero, o amor fati e o pessimismo sejam elevados ao grau de virtudes heróicas e instrumentos de conhecimento.

No entanto, esta posição, embora seja a mais moderna, e, num certo sentido, quase inevitável para todos os pensadores que definem o homem como um "ser histórico", ainda não conseguiu realizar uma conquista definitiva do pensamento contemporâneo. Algumas páginas atrás, tivemos oportunidade de observar diversas orientações recentes que demonstram uma tendência no sentido de reconferir valor ao mito da periodicidade cíclica, e mesmo ao mito do eterno retorno. Essas orientações desprezam não só o historicismo, mas até mesmo a história como tal. Acreditamos dispor de justificativa que nos permite ver nelas, ao invés de uma resistência à história, uma revolta contra o tempo histórico, uma tentativa que visa restaurar esse tempo histórico, carregado que está de experiência humana, a um tempo que é cósmico, cíclico e infinito. De qualquer modo, vale a pena observar que o trabalho de dois dos mais significativos autores de nosso tempo — T. S. Eliot e James Joyce — acha-se saturado de nostalgia pelo mito da eterna repetição e, em última análise, pela abolição do tempo. Também encontramos razão para prever que, do mesmo modo como o terror da história vai piorando, ao mesmo tempo em que a existência se torna mais e mais precária por causa da história, as posições do historicismo irão perdendo cada vez mais o seu prestígio. E, num momento em que a história poderia fazer aquilo que nem o Cosmo, nem o homem, nem a casualidade conseguiram ainda fazer — isto é, aniquilar a raça humana por completo —, talvez estejamos testemunhando uma tentativa desesperada no sentido de proibir os "acontecimentos da história", por intermédio de uma reintegração das sociedades humanas dentro do horizonte (artificial, por ter sido decretado) dos arquétipos e de sua repetição. Em outras palavras, não é de modo algum inadmissível pensar numa época, e uma época não muito distante, na qual a humanidade, para garantir sua própria sobrevivência, ver- se-á reduzida a desistir de qualquer nova tentativa de "fazer" a história, no sentido em que a começou a fazer a partir da criação dos primeiros impérios, limitar-se-á a repetir gestos arquetípicos prescritos, esforçando-se no sentido de esquecer, por serem insignificativos e até perigosos, determinados gestos espontâneos que poderiam trazer consigo algumas conseqüências "históricas" Seria até interessante comparar a solução a-histórica das sociedades futuras com os mitos paradisíacos  ou escatológicos da era dourada do princípio ou do fim do mundo. Mas, como nossa intenção é perseguir essas especulações em outra obra, devemos agora voltar ao nosso problema, ou seja, à posição do homem histórico em relação ao homem arcaico, e procurar compreender as objeções levantadas contra este último, com base na visão historicista.

Mircea Eliade - Le Mythe de l'eternel retour: archétypes et répetition, 1949.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Relações do Ponto e da Extensão (Por René Guénon)

A questão que a última observação levanta merece que nos detenhamos aí um pouco, sem no entanto tratarmos aqui das considerações relativas à extensão com todos os desenvolvimentos que o assunto merece, que caberiam melhor num estudo sobre as condições da existência corporal. O que queremos assinalar, sobretudo, é que a distância de dois pontos imediatamente vizinhos, de que tratamos em razão da introdução da continuidade na representação geométrica do ser, pode ser vista como o limite da extensão no sentido das quantidades indefinidamente decrescentes; em outros termos, ela é a menor extensão possível, aquela após quem não há mais extensão, vale dizer não há mais condição espacial, e que não se pode suprimir sem sair do domínio de existência que está submetido a esta condição. Portanto, a partir do momento em que se divide a extensão indefinidamente, e que se leva essa divisão tão longe quanto possível, ou seja, até os limites da possibilidade espacial pela qual a divisibilidade está condicionada (e que aliás é indefinida tanto no sentido crescente como no decrescente), não é ao ponto que se chega como resultado último, mas sim à distância elementar entre dois pontos. Resulta daí que, para que haja extensão ou condição espacial, é preciso que haja dois pontos, e a extensão (em uma dimensão), que é realizada por sua presença simultânea e que é precisamente a distância entre eles, constitui um terceiro elemento que exprime a relação existente entre estes dois pontos. De resto, esta distância, na medida em que a consideramos como uma relação, não é evidentemente composta de partes, pois as partes nas quais ela poderia ser dividida, se ela o pudesse, constituiriam outras relações de distância, das quais ela é logicamente independente, assim como, do ponto de vista numérico, a unidade é independente das frações. Isto é válido para uma distância qualquer, desde que a encaremos em relação aos dois pontos que são suas extremidades, e o é a fortiori para uma distância infinitesimal, que não é absolutamente uma quantidade definida, mas que exprime apenas uniu relação espacial entre dois pontos imediatamente vizinhos, tais como os dois pontos consecutivos de uma linha qualquer. Por outro lado, os próprios pontos, considerados como extremidades de urna distancia, não são partes do continuum espacial, embora a relação de distância suponha que eles são vistos como situados no espaço; portanto, em realidade, é a distância que é o verdadeiro elemento espacial.

Consequentemente, não podemos dizer, com todo o rigor, que a linha seja formada de pontos, e isto se compreende facilmente, pois, sendo cada um dos pontos sem extensão, sua simples adição, mesmo sendo eles em multitude indefinida, não poderá jamais formar uma extensão; na verdade, a linha é constituída pelas distâncias elementares entre seus pontos consecutivos. Do mesmo modo, e por uma razão semelhante, se considerarmos em um plano uma indefinidade de linhas paralelas, não podemos dizer que o plano seja formado pela reunião de todas essas retas, ou que elas sejam verdadeiros elementos constitutivos do plano; os verdadeiros elementos são as distâncias entre as retas, distâncias pelas quais elãs são retas distintas e não confundidas, e, se as retas formam um plano em um certo sentido, não é por si mesmas, assim como ocorre com os pontos em relação a cada reta. Do mesmo modo ainda, a extensão de três dimensões não é composta por uma indefinidade de planos paralelos, mas das distâncias entre todos esses planos.

Entretanto, o elemento primordial, aquele que existe por si mesmo, é o ponto, pois ele é pressuposto pela distância, sendo esta uma relação; a própria extensão, portanto, pressupõe o ponto. Podemos dizer que este contém em si uma virtualidade de extensão, que ele só pode desenvolver primeiramente desdobrando-se, para colocar-se de certo modo em face de si mesmo, e depois multiplicando-se (ou melhor submultiplicando-se) indefinidamente, de tal sorte que a extensão procede inteiramente desta diferenciação, ou, para falar mais exatamente, dele mesmo na medida em que ele se diferencia. Esta diferenciação, aliás, só tem realidade do ponto de vista da manifestação espacial; ela é ilusória em relação ao ponto principal, que não cessa por isso de continuar sendo o que era, e cuja unidade essencial não poderia nunca ser afetada. O ponto, considerado em si não está absolutamente submetido à condição espacial, porque, bem ao contrário, ele é o seu princípio: é ele que realiza o espaço, que produz a extensão pelo seu ato, o qual, na condição temporal (mas somente nela), traduz-se pelo movimento; mas, para realizar assim o espaço, é preciso que, através de alguma de suas modalidades, ele próprio se situe dentro desse espaço, que de resto não é nada sem ele, e que ele preencherá inteiramente através do desdobramento de suas próprias virtualidades. Ele pode - sucessivamente, na condição temporal, ou simultaneamente, fora dessa condição (o que, diga-se de passagem, nos faria sair do espaço comum tridimensional) - identificar-se, para realizá-los, a todos os pontos dessa extensão, sendo esta então vista apenas como uma pura potência de ser, que não é outra coisa senão a virtualidade total do ponto concebida sob seu aspecto passivo, ou como potencialidade, o lugar ou o continente de todas as manifestações de sua atividade, continente que atualmente não é nada, a não ser pela efetivação de seu conteúdo possível.

O ponto primordial, sendo sem dimensões, é também sem forma; ele não está, portanto, na ordem das existências individuais; ele só se individualiza a partir do momento em que ele se situa no espaço, e isto não em si mesmo, mas apenas através de alguma de suas modalidades, de modo que, a bem dizer, são estas que são propriamente individualizadas, e não o ponto principiai. De resto, para que haja forma, é preciso que haja previamente diferenciação, portanto multiplicidade realizada numa certa medida, o que só é possível quando o ponto se opõe a si mesmo, se podemos dizer assim, por duas ou mais de suas modalidades de manifestação espacial; e esta oposição é aquilo que, no fundo, constitui a distância, cuja realização é a primeira efetivação do espaço, que, sem ela, é apenas pura potência de receptividade. Lembremos ainda que a distância existe, em primeiro lugar, virtualmente ou implicitamente na forma esférica de que falamos acima, e que é esta que corresponde ao mínimo de diferenciação, sendo “isotrópica” em relação ao ponto central, sem nada que distinga uma direção particular em relação a todas as outras; o raio, que é aqui à expressão da distância (tomada do centro à periferia), não é traçado efetivamente e não faz parte integrante da figura esférica. A realização efetiva da distância só é explicitada na linha reta, e enquanto elemento inicial e fundamental desta, como resultado da especificação de uma certa direção determinada; daí por diante, o espaço não pode mais ser visto como "isotrópico", e, deste ponto de vista, ele deve ser reportado a dois pólos simétricos (os dois pontos entre os quais existe a distância), em lugar de sê-lo a um centro único.


O ponto que realiza toda a extensão, como indicamos, torna-se seu centro, medindo-a segundo todas as suas dimensões, pela extensão indefinida dos braços da cruz nas seis direções, ou em direção aos seis pontos cardeais desta extensão. É o “Homem Universal”, simbolizado por esta cruz, mas não o homem individual (pois este, enquanto tal, não pode atingir nada que esteja fora de seu próprio estado de ser), que é verdadeiramente a “medida de todas as coisas”, para empregarmos a expressão de Protágoras que já citamos, mas, bem entendido, sem atribuir ao sofista grego a menor compreensão desta interpretação metafísica.

René Guénon, Les principes du calcul infinitésimal