quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

As Ideologias de Esperança (por Christos Yannaras)

Parte da "fisionomia" característica da idade moderna é a transposição de perspectivas sociais em projetos ideológicos e teleologias.

O termo "ideologia" tem a sua origem nas primeiras esquematizações teóricas da era moderna: Destutt de Tracy usou pela primeira vez em 1796, marcando o início da fé no Iluminismo ao afirmar que a reforma social resulta da reorganização de idéias: Apenas quando as ideias das pessoas mudam-- suas percepções individuais, convicções e interpretação da realidade, sua compreensão da natureza e da história, das metas e obrigações, do sentido da existência e de vida-- é que formas sociais desejadas e novas surgem.

A demanda por novas "ideias" implica que a mudança deva ser expressa em um sistema e colocado em prática. Se as "ideias" precisam ser mudadas, as existentes devem ser prejudiciais e enganosas. A confirmação de um erro ou de nocividade justifica a apresentação de uma contra-proposta, legitimando o esforço de imposição.

Assim, a ideologia é engendrada pela lógica de romper e lutar contra o passado. Torna-se específica, propondo novas ideias que as pessoas devem adotar se quiserem libertar-se como indivíduos e como sociedades "sombrias" do passado medieval: ideias que bloqueam o progresso em direção às formas de sociedade desejadas devem ser postas de lado e a fé nos objetivos desejados deve ser imposta a todos.

Tais demandas ignoram as áreas marginais onde novas ideias podem ser geradas naturalmente pelas necessidades do corpo social. A ideologia domina porque seus seguidores estão convencidos de que as ideias predominantes são erradas e prejudiciais. As ideias corretas e mais rentáveis são moldadas com antecedência sem referência ao corpo social. A ideologia interpreta necessidades sociais e individuais, as necessidades que as pessoas devem ter, por si só e a priori. E impõem sistematicamente ideias previamente moldadas.

A ideologia é, por definição, uma construção racionalista. Ela emerge da crítica racional de ideias existentes, e sua própria contra-proposta não pode ser mais do que argumentos racionais em modelos "objetivamente" válidos do ponto de vista social pretendido. A sistematização racionalista antecipa as necessidades sociais e não teria nenhuma chance de sucesso se não tivessem como objetivo, dentre outros, o de despertar desejos coletivos. Desejos coletivos e gerais brotam de impulsos inatos, como o desejo de auto-preservação ou a busca egocêntrica pelo poder.

Assim, a ideologia representa algo mais que suas propostas de novas percepções, convicções e interpretações. Ela pode transformar o desejo em uma convicção-intepretação-meta, que não precisam corresponder às circunstâncias reais da vida, uma vez que estas estão a ser transformadas. Partindo de motivos racionais para mudar a realidade, a ideologia, muitas vezes transforma o seu próprio racionalismo em um misticismo, atingindo uma completa negação da realidade por causa da ilusão desejada. Freud demonstrou como esse "poder da ilusão" funciona e estudos posteriores, baseados em Freud, constituíram uma crítica impressionante das ideologias modernas.

Certamente, a função de ideologias na idade moderna é complicada, contribuindo para a "fisionomia" das sociedades modernas; ideologias têm substituído a ontologia que foi rejeitada ou conscientemente marcada como falsas. O caráter "soteriológico" das ideologias, significa que elas prometem cumprir esperanças coletivas.

As ideologias não respondem diretamente a questões ontológicas - nem pretendem responder. Elas são sempre claramente antropocêntricas e sociocêntricas: prometem mudanças institucionais e organizacionais na sociedade como um todo, nas relações de trabalho e no funcionamento da economia, que levará a "felicidade geral". A ideologia entrelaça programas esquemáticos com promessas eudamonísticas assim casando o racionalismo com ilusões estimadas incompatíveis.

Este casamento perfeito sempre tem seus pressupostos ontológicos invisíveis ou não reconhecidos, que ajudam a ideologia estabelecer sua aceitação, se não auto-evidente, obrigatória. Ideologias sociais modernas tipicamente ignoram as questões relativas ao princípio da existência, a auto-consciência subjetiva, o caráter absoluto existencial da alteridade, a relatividade definitiva do sujeito, ou qualquer outra questão em sua maior parte sem resposta. Ideologias sociais funcionam no nível dos desejos coletivos e nas promessas eudamonicas com critérios antropocêntricos concomitantes pressupondo o princípio "aleatório" da existência, e um agnosticismo correlativo. Concebem a existência, a natureza e a história em uma suposição axiomática da auto-suficiência existencial, a autonomia humana livre de todas as ideias sobre casualidade ou providência.

Esta autonomia existencial explica o poder das ideologias na meta de "progresso". Dentro deste quadro ideológico, os seres humanos aspiram a ser gestores de suas esperanças, criadores de seu próprio futuro. A natureza com seus ricos recursos e fontes de energia está à espera da mente humana para domá-la, intervindo em seu funcionamento mais íntimo para satisfazer a necessidade de conforto e facilidade. Ideologias irão propor formas e meios para uma gestão mais produtiva da autonomia existencial da humanidade, que pode ser imposta constituindo uma esperança de "progresso" e "felicidade geral". O elemento de esperança, a promessa eudamonística material ou spiritual constitui a dinâmica ideológica. As ideologias de esperança, de esquemas racionalistas realistas para as mais loucas ilusões utópicas, em grande parte formada a idade moderna.

Do livro - Metafísica Pós-Moderna por Christos Yannaras (Meta-neoterike meta physike, Athens, 1993)



sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Nome, Forma e a Satisfação de Desejos (Comentários do Mandukya Upanixade por Swami Krishnananda)

O nome e forma, distinções estruturais que observamos nas coisas do mundo, são acidentais no sentindo em que somente persistem enquanto há espaço e tempo. Como foi dito no primeiro mantra - yaccānyat trikālātitam tadapyomkāra eva - Brahman transcende os três períodos de tempo e, portanto, todo o espaço. Por este motivo, não pode ser dito que possua as características do espaço e tempo.

Quais são as características essenciais do tempo e espaço? Distinção e formação, diferenciação de uma coisa de outra por um atributo, definição, etc. Por causa da percepção de caracteres chamados de viseshas, nós começamos a distinguir um conjunto de viseshas de outro, chamando cada centro ou conjunto de indivíduo ou entidade. Sem esses viseshas, essas entidades desapareceriam. Nós conhecemos a água como gotas. Uma gota é diferente de outra. Quando todas as gotas são uma e não há caractere de diferenciação entre uma e outra, nós chamamos de oceano. Nós, então, damos um nome completamente diferente. Há uma fusão de propriedades devido a superação tanto das diferenças de espaço como da barreira do tempo e, em algum sentido, nessa fusão de caracteres, não há percepção de variedade.

São considerados cinco caracteres em toda a existência: Nama, Rupa, Asti, bhati e Priya. Nama e rūpa são nome e forma. Asti, bhati e priya significa existência, iluminação e o caráter de satisfação. Existência, iluminação e satisfação parecem estar permeando nama e rūpa, qualquer que seja o local ou a hora do nama e rūpa. Nós todos somos constituídos de nama e rūpa, nome e forma. Cada um de nós temos um nome e uma forma. Todo mundo tem um nome e uma forma. Existe um complexo nome-forma e, portanto, o mundo é chamado de nāmā-rūpa-prapanca, uma rede de nome e formas.

Mas, mesmo estando de fato numa posição de perceber apenas os nomes e as formas, e nada além, somos impelidos pelo desejo de outra coisa além do nome e forma, fato este que surge nas nossas atividades agitadas do dia-a-dia, em que expressamos o desejo não apenas pelo nome e forma mas por algo além do nome e forma. Por que você age, por que você pensa, por que você se envolve em qualquer tipo de trabalho? Parece haver um propósito por trás de todos estes esforços, e que o objetivo não é apenas um contato com um nome ou forma, mas a utilização do nome e forma para um objetivo completamente diferente. Todas as nossas atividades se articulam em vista de um único objetivo, ou seja, na relação com aquilo exterior, no contato com objetos; entretanto sempre temos um propósito maior do que os próprios objetos, colocamos em serviço ou aproveitamos, incluindo pessoas, para que traga um efeito que consideramos benéfico para nós mesmos. Este efeito é o objetivo final, e não nāmā and rūpa. Você procura neste mundo não por pessoas ou coisas, mas por certos efeitos, consequências que daí você quer continuar seu contato com pessoas e coisas. Se essas consequências não aparecem, você rejeita as pessoas e as coisas. Não é que você queira pessoas ou coisas; você quer certas consequências que surgem no contato com pessoas e coisas. Se elas não surgem, você não as quer. Seus amigos se tornam inimigos ou pelo menos coisas indiferentes quando as consequências desejadas não surgem deles, e seus desejos se tornam aversões quando as consequências requeridas não se concretizam. Assim, não é nome e forma ou objetos como tal que procuramos, mas uma consequência desejada. E o que é esta consequência?

O desejo último de todos os centros que aspiram é provocar uma liberação de alguma tensão. A liberação de qualquer tipo de tensão é igual a prazer. Você está infeliz quando está em um estado de tensão, e você está feliz quando as tensões são liberadas. Existem vários tipos de tensões na vida e cada tensão é um centro de sofrimento. Existe a tensão familiar, tensão comunal, nacional, internacional, geralmente chamada de guerra fria, todas essas levam a um estado de ansiedade e agonia. A libertação da tensão traz satisfação e se luta por essa satisfação. Você quer que as tensões sejam libertadas. Mas todas essas são tensões de fora ou externas. Existem as tensões interiores que são de maior consequência do que as externas - as tensões psicológicas causadas por uma variedade de circunstancias: essas circunstâncias instaladas na psique de nossa personalidade formam uma rede chamada de hridaya-granthi, nas palavras dos Upanixades. Os tantra-śāstras e Hatha-Yoga śāstras chamam este granthi por um nome triplo: brahma-granthi, Vishnu-granthi e Rudra-granthi, que você tem que atravessar pela liberação da kundalini-śakti. Tudo isso você já deve ter ouvido e aprendido anteriormente. Este é o granthi de avidyā, kāma e karma, a ignorância, desejo e ação; esta é a tensão da vasanas ou samskaras; esta é a tensão da mente subconsciente ou inconsciente; esta é a tensão de desejos não realizados e sentimentos frustrados. Esta é a "personalidade" em sua natureza essencial. Somos uma rede dessas tensões. Este é jīvatva. Do que jīva (indivíduo) é feito? Ele é constituído por um grupo de tensões. É por isso que o jiva não pode ser feliz. Nós sempre estamos num estado de ansiedade e vontade de encontrar a primeira oportunidade de liberar as tensões. O jiva tenta descobrir um método de libertar-se das tensões pelo que é chamado de realização de desejos, pois, em última análise, estas tensões podem ser resumidas a desejos não realizados. Na superfície parece que pela realização dos desejos essas tensões podem ser liberadas e nós podemos entrar em asti-bhāti-priya ao contatar com nāmā e rūpa. Mas esse método que adotamos é um erro. É verdade que os desejos têm que ser satisfeitos e, ao menos que sejam satisfeitos, não haverá liberação da tensão. Mas como devemos satisfazer os desejos? Adotamos um método muito errado; portanto, nós nunca satisfazemos nossos desejos completamente, a qualquer tempo, em todos os nascimentos que tomamos. Os desejos não podem ser satisfeitos por contato com objetos, por que os contatos excitam mais um desejo por uma repetição de contato que, por sua vez, estimula um desejo adicional, e esse ciclo continua indefinidamente - desejo por coisas e coisas excitando desejos, desejo por coisas e coisas excitando desejos. Este ciclo é a roda da Samsara. Por contato com coisas, desejos não são satisfeitos. Por outro lado, os desejos são inflamados, por assim dizer, a um estado de deflagração por tal contato. Os desejos surgem por conta de um desconhecimento da estrutura das coisas. A menos que esta ignorância seja removida, a tensão nunca será liberada. E, o que é essa ignorância? A ignorância sob a forma da noção de que a multiplicidade é a realidade; e por esse agregado de todas as coisas finitas constituindo a multiplicidade, podemos ter a satisfação infinita que nós almejamos. O total de finitos não é o infinito e, portanto, entrar em contato com as coisas finitas não pode trazer a satisfação infinita. Nāmā-rūpa-prapanca não é, portanto, o caminho da realização de asti-bhāti-priya, que é o que nos move todos os dias em nossas atividades.


Nós queremos a existência perpétua. Não queremos morrer. Este é o sentido de astiva, em nós. Queremos ser chamados de inteligente, pelo menos. Nós não queremos ser considerados estúpidos. Este é o impulso de bhātitva ou chit, consciência, em nós. Nós queremos felicidade e não dor. Este é o impulso de priya, felicidade, em nós. O impulso por uma existência perpétua, se possível imortal, é asti ou sat - existência. O impulso por conhecimento, sabedoria, iluminação, entendimento, informação, é bhāti ouchit - consciência. O impulso por prazer, satisfação, é o desejo pelo prazer infinito da existência-consciência, priya ou ananda, bem-aventurança. É essa mistura tripla de Existência-Consciência-Bem-Aventurança que se revela até mesmo através de nama e rupa, e não é nama e rupa ou o nome e a forma que nós realmente queremos em nossa vida. Em nosso contato com as coisas, nomes ou formas, buscamos asti, bhati e priya. Buscamos satchidānanda através de nāmā-rūpa; buscamos a Realidade na aparência; buscamos o Absoluto no relativo; buscamos Brahman em toda a criação; buscamos Isvara no mundo. É isto que buscamos. Em todas nossas atividades, seja indo ao escritório ou a fábrica, qualquer que seja o trabalho que fazamos, o propósito por trás é a busca pela liberação final de todas tensões internas e a aquisição de uma satisfação ilimitada.

Comentários do Mandukya Upanixade por Swami Krishnananda