quarta-feira, 15 de abril de 2015

Sendo você mesmo (por Lord Northbourne)

Se as observações deste capítulo são endereçadas ao leitor em pessoa é porque a questão tratada diz respeito apenas ao indivíduo como tal, como uma relação consigo mesmo. Não é abstrato, teórico e remoto, mas imediato e pessoal. Surge de um conselho, concedido generosamente para nós nesses dias: é necessário acima de tudo “ser você mesmo”. Esse conselho parece simples o bastante até que se comece a perguntar como exatamente aplicar isso em seu próprio caso. Para você, o leitor, “seu próprio caso” é o seu caso e de ninguém mais.

O que exatamente é você, essencialmente e não acidentalmente? O que é você “em você mesmo” e não como um açougueiro, padeiro ou vendedor? Você não pode tirar proveito em ser você mesmo até que você tenha certeza que sabe responder essa questão.

É você um ser criado por Deus a Sua própria imagem, nomeado por ele como seu representante na terra e, portanto, dado o domínio sobre ela, equipado para o cumprimento dessa função com uma relativa liberdade de escolha tanto em pensamento e ação? Você possui liberdade, que reflete a ausência total de restrição atribuível somente a Deus, mas ao que ao mesmo tempo te faz susceptível ao erro? Você é essencialmente isso e somente acidentalmente algo diferente?

Ou, alternativamente, você é essencialmente uma espécie do produto mais avançado até então conhecido de uma evolução contínua e progressiva, começando desde o ajuntamento fortuito de uma molécula proteica em alguma lama primitiva, sendo a própria lama um raro e mais ou menos produto da evolução das galáxias desde um ponto inicial que os físicos ainda não chegaram em consentimento?

Se você escolhe a primeira, a alternativa mística ou religiosa, você não necessariamente exclui a priori qualquer descrição plausível de sua situação física no Universo. Você, entretanto, exclui absolutamente tanto a primazia e a finalidade de tal descrição. Ela nunca pode ser mais que uma descrição, e como tal, não é uma explicação, mesmo se ela for a mais correta e completa que o homem possa fazer. Então, se você aceita a alternativa mística, você deve recusar aceitar qualquer descrição como uma explicação adequada do que você é.

Se você escolhe a segunda, a alternativa física (a palavra ‘física’ aqui está sendo usada no sentido mais ou menos da palavra ‘natural’, então isso inclui tanto a mente como o corpo) você desse modo exclui a primeira. Assim você considera seu corpo, seus pensamentos e seus sentimentos comprometendo tudo que você é, de tal forma que qualquer coisa chamada de ‘mística’ ou ‘religiosa’ só pode ser explicada como um produto desses três. Se você escolhe a alternativa física, “ser você mesmo” significa simplesmente soltar as rédeas de seus desejos corporais, seus pensamentos e seus sentimentos. Isso, de fato, parece o que você e eu, e especialmente nossas crianças, somos aconselhados a fazer. A desordem que daí surge frequentemente provoca nossa surpresa e reprovação.  Incidentalmente, se você solta as rédeas a essas três coisas, você está se jogando diretamente nas mãos de quem sabe como manipula-los para seus próprios fins. Com a ajuda da psicologia moderna, essa manipulação tornou-se uma ciência.

E mesmo assim, quão correto foi o conselho nos deram! Se nós somos ‘feitos à imagem de Deus’, tudo que precisamos fazer é ‘ser nós mesmos’.

Se, com esse fim, você tentar encontrar o que você é através de uma observação de você mesmo, o que você parece ser para você mesmo será o que você quer ser acidentalmente e não o que você é essencialmente. Quando você olha pra si mesmo, ou pensa que você está fazendo algo, há um que olha e há algo que ele vê. Eles não podem ser o mesmo. Se eles fossem o mesmo, eles seriam um só e não dois, portanto nenhuma relação de “olhando para” ou outra de qualquer tipo poderia surgir. Por isso, quando você olha pra si mesmo, o seu “eu” essencial está realmente olhando para o seu “eu” acidental. Em outras palavras, você está olhando para aquilo que nos dias de hoje é chamado de sua “personalidade”.

Ainda assim você é uma pessoa e não duas. Não importa o que aconteça, você é sempre a mesma pessoa; você continua você mesmo sob todas as vicissitudes que possam afetar seu corpo ou sua mente, pelo menos enquanto você é são. Seu corpo e sua mente juntos constitui o que as vezes é chamado de ‘complexo psicofísico’. Esse complexo nunca é o mesmo, nem por dois minutos, seja materialmente ou fisicamente; mas sua identidade se mantem constante seja você jovem ou velho, gordo ou magro, feliz ou triste, estando acordado ou dormindo. Se não fosse assim, não haveria continuidade em sua existência, nenhuma individualidade e nenhuma percepção de mudança. Existe um “você” que é o ponto de referência invariável, ou centro, e existe coisas mutáveis que você é consciente. O primeiro não é identificado com o último. Essas coisas mutáveis incluem tudo que você pode perceber e conhece distintivamente, e elas são do ambiente, periféricas e externas em relação ao centro consciente que é seu verdadeiro “eu”. Seu complexo psicofísico por inteiro, na medida que você pode perceber e conhecê-lo distintamente, evidentemente está entre essas coisas externas e mutáveis. Ele pertence a você, mas não é ao “você” que ele pertence. É a “personalidade” que você pode procurar desenvolver, mas não é o “você” que busca por desenvolvimento.

Assim, se você quer saber quem você realmente é, para que você saiba o que significa “ser você mesmo”, você deve dirigir sua atenção para o interior e não para o exterior; isso é, para longe de todos os objetos dos sentidos, incluindo seu próprio corpo, mente e sentimentos, em direção ao ponto central indistinguível do seu ser. Essa atenção para o interior deve, evidentemente, se voltar para o oposto daquela atenção exterior. Hoje em dia nós somos ensinados que o único caminho para chegar a verdade é pela intensificação e refinamento da observação. Dessa forma, para a maioria de nós, a atenção interior envolve algo que nunca tentamos conscientemente, ou mesmo nem sequer consideramos.

É verdade que não podemos viver sem observação, nossos sentidos não possuem outra função. Entretanto, se aquilo que foi dito é verdade, qualquer aproximação da verdade que se dá pela observação e nada mais, exclui a mais importante de todas as verdades, a verdade onde todas as outras verdades se fixam, isto é, a verdade sobre o que nós verdadeiramente somos. Se nós estamos enganamos sobre o que somos, e por tanto em relação com tudo mais, e sobre o propósito da nossa vida, e sobre qual é nosso destino, não é de muita utilidade saber qualquer coisa a mais, por que as chances são que usemos nosso conhecimento de forma errada, provavelmente para nosso próprio mal. Isso não é óbvio? E isso não sugere, de forma bastante alarmante, exatamente o que parece estar acontecendo?

Sem dúvidas você já deve ter percebido que essa outra aproximação à verdade, essa atenção interior ou ‘concentração’ como se fosse contrária ou complementar a aproximação via observação, não pode ser nada mais que o caminho contemplativo, o caminho seguido pelos homens sábios e santos de todas as épocas e povos. Uma vez que o objetivo não pode ser percebido distintivamente, esse caminho não pode ser mapeado. Apenas aqueles que seguiram esse caminho, e somente eles, podem ensinar.

Se você é um daqueles que somente aceita a validade da aproximação científica, tudo isso parecerá para você como um mero sofismo vazio. Por isso pode valer a pena levar a questão um pouco mais longe.

Você deve ter notado que dizer ‘meu’ ser essencial pode sugerir que ele pertence a você; e que está, até certa medida, ao seu dispor ou sujeito a sua influência, como se fosse sua propriedade.  Mas claro que não é assim. Nada que você pode fazer afeta de alguma maneira o fato de que você é o que você é. Como vimos, seu ser essencial continua o que é enquanto a correnteza de formas mutáveis e perecíveis passam. Mas seu ser essencial não deve ser confundido com os acréscimos que estão tão fortemente associados nele durante sua estadia temporária na terra, incluindo, claro, suas observações do próprio complexo psicofísico. Aqui é onde muito dos religiosos se atrapalham quando estão considerando os estados pós-morte do ser essencial, que são as vezes chamados de ‘paraíso’, ‘purgatório’ e ‘inferno’.

Só mais uma observação. Se somente sua ‘acidentalidade’ é distinguível, enquanto que sua essencialidade não, o mesmo se aplica ao seu vizinho. Isso sugere que você e ele são essencialmente um e apenas acidentalmente dois. Se você ver a situação dessa forma, você naturalmente amá-lo-ia ‘como se fosse você mesmo’; mas você só pode ver a situação dessa forma na medida em que você tiver realizado quem você é. Essa realização envolve o a travessia da multiplicidade em constante mudança da sua acidentalidade terrestre e a busca com todo seu coração, mente e força a Unidade imutável que é a realidade central e essencial de si mesmo, de seu vizinho e de todos os seres. E você só pode esperar encontra-la onde pode ser encontrada, e que é "dentro de si".


 Agora você entende que a frase 'ser você mesmo' pode ser interpretada em duas maneiras criticamente diferentes, não é mesmo?

Lord Northbourne em Looking Back on Progress

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