quarta-feira, 6 de maio de 2015

Transcendência ascendente, descendente e horizontal (por Aldous Huxley)

Sem uma compreensão da profunda e arraigada necessidade do homem pela autotranscendência, de sua natural relutância a empreender o difícil caminho ascendente, de sua busca de uma liberação espúria por debaixo ou à margem de sua personalidade, não podemos esperar dar sentido a nosso próprio período particular da história ou à história em geral, à vida como foi vivida no passado e como é vivida hoje. Por tal razão, proponho discutir alguns dos substitutos mais comuns da graça, nos quais e por meio dos quais, homens e mulheres trataram de escapar à entristecedora consciência de ser, meramente, eles mesmos. 

Na França há atualmente um varejista de álcool por cada cem habitantes. Nos Estados Unidos há, provavelmente mais de um milhão de alcoólicos desesperados, além de um número muito maior de grandes bebedores cujo mal não chegou ainda a ser mortal. Com respeito ao consumo de bebidas alcoólicas no passado, não temos conhecimentos precisos ou estatísticos. Na Europa ocidental, entre os celtas e os teutônicos, durante a Idade Média e os primeiros tempos da Moderna, o consumo de álcool por indivíduo provavelmente superava ao atual. Nas diversas ocasiões em que nós bebemos chá, café ou refrigerantes, nossos antepassados se refrescavam com vinho, cerveja, hidromel e, nos últimos séculos, com gim, conhaque ou aguardente. A ingestão regular de água era uma penalidade imposta aos malfeitores, ou aceita pelos religiosos, junto com um vegetarianismo ocasional, como severa mortificação. Não beber bebidas alcoólicas era uma excentricidade, suficientemente, notável para provocar comentários e a aplicação de um mote mais ou menos desonroso. Assim nasceram sobrenomes tais como o italiano Bevilacqua, o francês Boileau e o inglês Drinkwater. 

O álcool é só uma das múltiplas drogas empregadas pelo ser humano como válvulas de escape do eu isolado. Dos narcóticos naturais, estimulantes e alucinógenos que nos oferece a natureza, não há um só, acredito, cujas propriedades não tenham sido conhecidas desde tempo imemorial. A investigação moderna nos há provido de diversos produtos sintéticos; mas no que corresponde aos venenos naturais desenvolveu, simplesmente, melhores métodos para extrair, concentrar e recombinar os já conhecidos. Da adormidera ao curare, da coca andina ao haxixe da Índia e o agárico da Sibéria, todas as plantas, arbustos ou cogumelos cujos extratos, uma vez ingeridos produzem estupefação ou excitação, ou provocam visões, são conhecidos desde tempos muito remotos e suas propriedades se aproveitam de modo sistemático. O fato é estranhamente significativo, já que parece provar que, em todo momento e lugar, o ser humano sentiu a radical inadequação de sua existência pessoal, a penúria de ser só seu eu isolado e não um pouco mais amplo, algo «muito mais profundamente consubstanciado», empregando as palavras de Wordsworth. Explorando o mundo do homem primitivo não há dúvida que «fez experiência com todas as coisas a seu alcance e procurou aproveitar aquilo que lhe resultava bom». A efeitos da própria conservação, é bom todo fruto e é boa toda folha comestível, toda semente, toda raiz, toda semente aproveitável. Mas, de outro ponto de vista o do descontentamento de si mesmo e do desejo de autotranscendência, o bom se acha assim que existe na natureza, pois por meio do que for pode ser mudada a condição da consciência própria. Tais mudanças podem obedecer, sem dúvida alguma ao pior; podem alcançar-se ao preço de um mal-estar presente, de um apego ao futuro, uma degradação ou uma morte prematura. 

Tudo isto não pertence ao momento. O que importa é ter consciência, embora não seja mais que uma hora ou duas, embora não seja mais que uns minutos, de ser alguém ou melhor ainda, de ser outro distinto, e não o isolado eu que é a gente mesmo. «Eu vivo, mas não vivo propriamente o eu, a não ser o vinho, o ópio, o haxixe que vivem em mim.» Transcender além dos limites do eu isolado é como uma liberação de tal índole que, até quando se alcança a autotranscendência através da náusea, ou em meio ao frenesi, ou como sujeitos pacientes de cãibras e intumescimentos, ou nas alucinações, as experiências que se realizaram valendo-se de medicamentos ou de drogas foram olhadas sempre, tanto pelos homens primitivos como pelas civilizações mais adiantadas, como intrinsecamente divinas. O êxtase ocasionado por meio da intoxicação é considerado ainda como parte essencial dos fatos religiosos em muitos povos da África, da América do Sul e da Polinésia. Em tempos pretéritos, segundo nos testemunham isso documentos irrefutáveis, também foi considerado o êxtase como coisa fundamental nas religiões dos celtas, dos teutônicos, dos gregos, dos povos do Oriente Médio e dos conquistadores arianos da Índia. Não é simplesmente que «a cerveja tenha maior poder que Milton para justificar os caminhos que levam a Deus». É que a cerveja é o deus. Entre os celtas, Sabazios era o nome divino dado ao espírito de alienação produzido pela bebedeira de cerveja. Muito mais ao sul, Dionisos era, entre outras coisas, a objetivação sobrenatural dos efeitos psicofísicos do excesso de vinho. Na Mitologia Védica, Indra era o deus daquela droga não identificada que leva o nome de Soma. Semideus, destruidor de dragões, foi ele a magnífica projeção ao céu da estranha e gloriosa diversidade experimentada pelo intoxicado. Formando como uma só coisa com a droga, constitui-se, assim que Soma-Indra, na fonte da imortalidade, no mediador entre o humano e o divino. 

Nos tempos modernos a cerveja e os outros tóxicos que predispõem a autotranscendência já não são adorados oficialmente como coisa divina. A teoria sofreu uma mudança. Mas não assim a prática, toda vez que milhões e milhões de homens e mulheres civilizados continuam dando fé de sua devoção, certamente que não ao espírito liberador e transfigurador, mas, mais certamente sim ao álcool, ao haxixe, ao ópio e a todos seus derivados, aos barbitúricos e a quantos aditamentos traz o catálogo de tóxicos da antigüidade, capazes de servir como mediadores para obter a autotranscendência. Em todo caso, o que podia parecer um deus é atualmente um demônio. O que tinha que ser liberação é, com efeito, uma escravidão. A autotranscendência se produz para baixo, em direção ao infra-humano, essa zona que se acha a um nível inferior ao da personalidade. O mesmo que a intoxicação, a sexualidade em si, a sexualidade elementar, divorciada do amor, satisfazia por si mesmo e estava considerada como se se tratasse de um deus; adorada não só como o princípio da fecundidade, mas sim como uma manifestação da radical Diversidade, imanente em cada ser humano. Em teoria, a sexualidade elementar deixou, faz já muito tempo, de ser considerada como um deus; mas na prática ainda pode alardear de contar com umas hostes de inumeráveis sectários que assim a consideram. 


Há uma sexualidade elementar que é inocente e há uma sexualidade elementar que moral e esteticamente é sórdida. D. H. Lawrence tem escrito muito belas páginas a respeito da primeira. Jean Genét falou com tons patéticos e horripilantes da segunda. A sexualidade do paraíso e a sexualidade da rede de esgoto têm tanto uma como outra o poder de arrastar ao indivíduo além dos limites de seu isolado eu. Mas a segunda variedade, a mais corrente, toma àqueles que se deixam apanhar até afundá-los na zona do infra-humano e lhes dá o sentido de uma completa alienação, muito mais intensa que a alienação da primeira. Daí uma permanente atração por parte da luxúria e de seus estranhos equivalentes, tal como foram descritos no curso de nosso relato, para todos os que sentem o apresso de escapar à pressão de sua própria e escravizadora identidade. 

Na maioria das comunidades civilizadas a opinião pública condena a luxúria e o vício das drogas por as considerar como um extravio da moral. E à condenação moral terá que adicionar as sanções econômicas e a proibição por parte das leis. O álcool está loteado, a venda de narcóticos está proibida em todos os países, e certas práticas sexuais se acham qualificadas como delitos. Mas quando passamos dos tomadores de drogas e da sexualidade elementar à terceira das vias principais da autotranscendência descendente, encontramo-nos, por parte dos moralistas e dos legisladores, com uma atitude muito diferente e muito mais benévola, o qual parece surpreendente desde que o delírio da massa, mais imediatamente perigoso para a ordem social que a bebida e a luxúria, mais dramaticamente ameaça essa tênue crosta denominada decoro, moderação e mútua tolerância que constitui a cobertura de uma civilização. É verdade que um hábito de indulgência exagerada para com a sexualidade, generalizado e mantido com o passar do tempo, pode determinar como afirma J. D. Unwin [J. D. Unwin: Sex and Culture, Londres, 1934] uma diminuição da energia vital de toda uma sociedade, incapacitando-a, portanto, para alcançar ou manter um elevado nível de civilidade. De modo semelhante, o vício das drogas, se se vai estendendo e generalizando, pode rebaixar a eficiência militar, econômica e política da sociedade que o padeça. Nos séculos XVII e XVIII foi o álcool em bruto a arma secreta do tráfico de escravos na Europa; no XX a heroína foi para os militaristas japoneses. Bêbado, o negro era uma presa fácil e assim, quão mesmo com respeito aos chineses e o uso das drogas, podia-se confiar, graças ao álcool, em que a gente negra não ocasionasse perturbações a seus exploradores. Mas tudo isso tinha uma importância restringida. Na realidade, teria que pensar que toda sociedade permissiva se entrega, geralmente, à influência de seu veneno favorito. A droga é um parasita que atua no corpo político e social, mas um parasita cujo hóspede - falando metaforicamente - conta com suficiente força e bastante sentido para poder mantê-lo sob seu controle. Estas considerações também se aplicam à sexualidade. Nenhuma sociedade que assente a prática da sexualidade nas teorias do Marquês de Sade chegará a sobreviver; de fato, nenhuma sociedade chegou a pôr em prática teorias semelhantes. Até os mais prazenteiros dos paraísos da Polinésia possuem suas regras e suas ordenações, seus imperativos categóricos e seus mandatos. Contra o abuso da sexualidade, como contra o abuso das drogas, a sociedade se acha em condições de poder proteger-se com probabilidades de êxito. Em troca, sua defesa contra o delírio das massas e as desastrosas consequências que conduz é, na maioria dos casos, muito menos eficaz. Os moralistas profissionais que vozeiam invectivas contra a embriaguez guardam um silêncio muito estranho contra a intoxicação gregária, contra essa forma de autotranscendência para baixo que precipita até o nível do infra-humano, pondo em efervescência à massa. 

«Onde dois ou três se reúnam em meu nome, ali estou Eu em meio deles.» Em meio de duzentos ou trezentos, a presença divina se faz mais problemática. E quando o número alcança o nível dos milhares e de milhões, as probabilidades de achar-se Deus presente entre eles e na consciência de cada um, diminuem a tal ponto que se reduzem a zero. Porque é tal a natureza de uma multidão excitada (e toda multidão tem como condição iniludível a de estar sempre aberta à excitação automática), que ali onde se reúnem dois mil ou três mil indivíduos em massa, ali brilha necessariamente por sua ausência, não só a deidade, mas também a mesma humanidade comum a todos. O fato de pertencer a uma massa humana rouba ao homem a consciência de ser ele seu próprio eu e arrasta a estágios inferiores, às onduras de um reino onde o pessoal não conta, nem sequer existe, onde não existem responsabilidades, onde não existem nem o direito nem a ofensa, onde não há necessidade de um pensamento de discriminação e de julgamento, a não ser somente um intenso e confuso sentido de descomunal gravitação, um maciço interesse de instigar à alienação de rebanho. E essa alienação é, ao mesmo tempo, mais permanente e menos exaustiva que o que produz a luxúria; à manhã seguinte a vítima se acha menos deprimida que se se tivesse entregue ao álcool ou à morfina. Além disso, o frenesi da massa pode ficar satisfeito à margem de toda intenção perversa e até com a lucidez de uma intenção honorável. Porque longe de condenar o afundamento a que se leva às massas por meio de sua alienação, os dirigentes de uma Igreja ou de um Estado aspiraram com vivacidade sua prática sempre e quando pudesse ser aproveitada em benefício de seus próprios fins. Individualmente ou constituídos e disciplinados em agrupamentos, os homens e as mulheres que formam parte de uma sociedade sã, mostram uma grande capacidade de intelectualidade, de julgamento e de discernimento e sabem deixar-se iluminar pela luz dos princípios éticos. Agrupados - pelo contrário - como uma plebe, esses mesmos homens e mulheres se conduzem necessariamente como se não possuíssem faculdade racional nem gozassem de livre-arbítrio. A alienação maciça os reduz a uma condição muito abaixo do nível da pessoa e os afunda na irresponsabilidade anti-social. 

Drogados pela misteriosa peçonha que toda multidão transbordada segrega, caem em um estado de exacerbada sugestibilidade, muito parecido ao que produz uma injeção de sódio amytal ou um confinamento de tipo hipnótico. Em tal estado, não só darão crédito a qualquer disparate que seja propagado mas também estarão dispostos a atuar a partir de uma exortação ou uma ordem, tenham ou não tenham sentido, e por mais perversas e criminosas que sejam. Para os homens e as mulheres que se deixam influir pelo frenesi da massa, «tudo o que eu afirme três vezes é verdadeiro» e todo o eu afirme trezentas é revelação, quer dizer: a palavra diretamente inspirada por Deus. E isto é assim porque os homens que gozam de autoridade - os sacerdotes e os legisladores -, nunca proclamaram que modo inequívoco a imoralidade da marcha descendente no caminho da autotranscendência. Pois o delírio da massa, quando foi suscitado pelos membros da oposição e em nome de uns princípios por outros considerados como heréticos, sempre teve que ser condenado pelos que usufruíam o poder. Em troca, esse mesmo delírio ou frenesi promovido pelas pessoas que governam, em nome do que se afirma como ortodoxia, é missa de outro cantar. Em todo caso, onde os interesses dos homens ficam submetidos ao controle da Igreja e do Estado, a alienação das massas é considerada como recurso legítimo e desejável. Peregrinações e concentrações políticas, restaurações coribânticas e patrióticas paradas, tudo isso é apropriado e moralmente defensável quando se trata de nossas peregrinações, de nossas paradas. O fato real de que a maioria dos que tomam parte nestes atos se desumanizam temporalmente ao afundar-se nessa via, não significa nada, ao que parece, em comparação com o fato de que sua desumanização possa ser dirigida facilmente, com o fim de consolidar o poder religioso ou político que seja. 

Quando a alienação das massas é explorada em benefício dos governos e das igrejas ortodoxas, os exploradores sempre se cuidam de não dar excessivo fôlego a esse delírio coletivo. As minorias moderadas se valem dos desejos de seus submetidos dentro dessa via da autotranscendência descendente para duas coisas: primeiro, para distrai-los e transtorná-los e, segundo, para levá-los a um estado infra-pessoal de excitada sugestibilidade. Os cerimoniais religiosos e políticos são aceitos pelas massas com grande complacência, posto que são propícia oportunidade de afundar-se e embriagar-se em sua alienação, e são, ao mesmo tempo, confeccionados agradando pelos que manipulam às massas, porque lhes oferecem oportunidade, por sua vez, de dirigir a seu desejo o subconsciente de todos aqueles que não são capazes de exercitar sua razão nem são donos de sua vontade. 

O sintoma definitivo da alienação das massas é a violência maníaca. Exemplos da culminação desse delírio, exemplos nos quais pulsa um monstruoso espírito de destruição sem fundamento e que se oferecem em brutais auto-mutilações, em fratricida selvageria sem finalidade alguma e contra todo interesse nacional, são centenas de fatos que podem ilustrar e que ilustram muitas páginas dos manuais de antropologia e, com menos freqüência, mas com lamentável regularidade, as histórias dos povos e até das nações mais civilizadas. A não ser quando se trata de liquidar uma minoria impopular, as representações oficiais da Igreja e do Estado sempre procedem com cautela, pois nunca se sentem seguras de controlar o frenesi que provocam. Um escrúpulo que não se dá nos dirigentes revolucionários que odeiam o statu quo e alimentam só um desejo: criar um caos sobre o qual, quando chegarem ao poder, possam impor uma ordem nova. Quando o revolucionário explora a apetência dos homens a lançar-se a transcendência de seu afundamento, explora-a até os limites do frenético e do demoníaco. Aos homens e às mulheres enfermos do mal de sentirem-se isolados em seu eu e afligidos com as responsabilidades inerentes aos membros de uma sociedade, o revolucionário lhes oferece candentes oportunidades para lançar pela amurada todas essas preocupações com o recurso das paradas, das manifestações e das assembléias. Todos os órgãos do corpo político atuam segundo seus próprios fins. Uma multidão é o equivalente social do câncer. O veneno que segrega despersonaliza aos indivíduos que a compõem até tal ponto que os instiga a conduzirem-se com violência selvagem, que não se promoveria neles se estivessem em estado normal. O revolucionário excita seus seguidores a manifestarem seus extremos e piores sintomas de maciça intoxicação, e procede a dirigir seu frenesi projetando-o contra seus inimigos, os detentores do poder político, econômico e religioso. 


Ao longo dos últimos quarenta anos, as técnicas para explorar a ansiedade dos homens pela forma mais perigosa de autotranscendência descendente alcançaram um grau de perfeição único na história. Em primeiro lugar, há mais habitantes por quilômetro quadrado que antes e os meios para transportar grandes rebanhos de homens a considerável distância e de concentrá-los em um edifício ou em um estudo são muito mais eficientes que no passado. Além disso, realizaram-se novos inventos, que antes nem sequer se imaginavam, para excitar às multidões. Um é o rádio, que alargou enormemente o âmbito de percepção das roucas vociferações dos demagogos. Outro é o alto-falante, que amplifica e reduplica indefinidamente a música impetuosa da luta de classes e do nacionalismo militante. Outro é a câmara escura da qual se disse ingenuamente que «não pode mentir» e seus brotos o cinema e a televisão. Estes três deram facilidades de maneira absurda à objetivação de fantasias tendenciosas. Outro é, finalmente, a maior de todas nossas invenções sociais: a educação obrigatória e livre. 

Agora o mundo sabe ler e, em conseqüência, acha-se a mercê dos propagandistas (ou governamentais, ou comerciais), que são os donos das fábricas de papel, dos linotipos e das imprensas dos periódicos. Concentrem multidões de homens e mulheres previamente condicionadas e influídas pela leitura diária dos periódicos; adulem com altissonantes bandas de música; deslumbrem com brilhantes e espetaculares iluminações e confusões com a oratória de um demagogo - e em qualquer parte encontrarão um demagogo que é ao mesmo tempo explorador e vítima da alienação maciça -  e já verão como rapidamente podem reduzi-los a um estado de quase infra-humana necessidade. Jamais antes de agora tiveram oportunidade tão poucos homens para converter em loucos, maníacos ou criminosos a tanta gente. 

Na Rússia comunista, na Itália fascista, na Alemanha nazista, os exploradores da fatal inclinação dos homens ao delírio coletivo seguiram uma mesma direção. Quando se encontravam no campo da oposição revolucionária aspiravam às multidões que tinham sob seu domínio à destruição pela violência. Logo, quando chegaram ao poder, não permitiram que o delírio coletivo alcançasse sua plenitude e expansão total a não ser em relação aos estrangeiros e às vítimas propiciatórias. Tendo que defender os interesses criados em seu próprio statu quo, continham o deslizamento ao infra-humano em um nível prudente. Para estes neo-conservadores a intoxicação das massas era principalmente útil como meio de melhorar a sugestibilidade de seus indivíduos e fazê-los assim mais dóceis aos mandatos da nova autoridade. O pensamento independente e próprio é o melhor antídoto contra os que se acham inundados na massa. Daí a radical objeção dos ditadores às explicações psicológicas: «Intelectuais do mundo, unidos, nada têm a perder, que não seja seus cérebros». 

Drogas, sexualidade elementar, intoxicação coletiva: estes são os três caminhos mais conhecidos de autotranscendência descendente. Há muitos outros, não tão debulhados como estas grandes avenidas, mas sim encaminhados também à mesma meta da negação da pessoa. Considerem, por exemplo, a via do movimento rítmico. Nas religiões primitivas o movimento rítmico prolongado é um recurso ao que se vai para promover por indução um estado de êxtase infra-pessoal e infra-humano. A mesma técnica, para chegar ao mesmo fim, foi usada por muitos povos civilizados; por exemplo: pelos gregos, pelos hindus, por muitos dos dervixes do mundo muçulmano, pelas seitas cristãs dos Shakers e os pios roller. Em todos esses casos o movimento rítmico, lento e reiterativo é uma forma ritual deliberadamente praticada, a fim de suscitar uma ansiedade de transcendência obnubilante. A história recorda muitos casos esporádicos de involuntários incontroláveis dançarinos de giga. Esses zarândeos, que em uns países se chamam tarantismo e em outros baile de São Vito, produziram-se geralmente nos períodos de turbulência que revistam seguir a uma guerra, a uma epidemia ou a uma situação de fome coletiva e que são correntes nas regiões de malária endêmica. A inconsciente finalidade dos homens e mulheres que sucumbem a estas manias coletivas é da mesma espécie que a perseguida pelos sectários que se valem da dança como de um rito religioso, especialmente para escapar da concreta delimitação em que se acha sua pessoa e entrar em um estado no que não existem responsabilidades nem cargos de culpas passadas, nem futuros obsediante, a não ser só o presente, e a venturosa consciência de ser outro.

Intimamente associado com esse rito de produção do êxtase que é o movimento rítmico, temos esse outro rito de produção de êxtase que é o som rítmico. A música tem uma amplitude tão grande como a natureza humana, e pode dizer algo aos homens e às mulheres em cada um dos níveis e aspectos de seu ser, do estrito e sentimental do eu até o abstrato e intelectual, do meramente visceral até o do espírito. Em uma de suas inumeráveis formas, a música é uma droga de grande poder, já seja estimulante, já narcótica, e em alternância um e outro. Nenhum homem, por muito civilizado que seja, pode escutar durante longo momento o rufo do tambor ou do timbal dos africanos, ou as cantarolas da Índia, ou os hinos dos gauleses, e manter intactas suas faculdades de discernimento e sua personalidade autoconsciente. Seria interessante reunir um grupo dos mais eminentes filósofos das universidades mais famosas do mundo, encerrá-los em uma habitação de elevada temperatura, em companhia de alguns dervixes marroquinos e uns quantos bruxos haitianos, e medir, com aparelho de relojoaria ad hoc, o grau de sua resistência fisiológica aos estímulos do ritmo sonoro. Seriam capazes de maior resistência os positivistas, com sua lógica, que são mais fortes que os tomistas ou que os que seguem a doutrina do Vedanta? Que fascinante seria isto! Que frutífero campo o que se oferece a uma experiência semelhante! Enquanto isto não se leve a cabo, tudo o que podemos predizer com absoluta segurança é que, expostos aos tamtam e às cantarolas durante um tempo suficientemente longo, todos e cada um de nossos filósofos terminariam uivando e fazendo cambalhotas quão mesmo os selvagens. 

Os procedimentos do movimento e do som sujeitos a ritmo são, em geral, super-impostos - por assim dizer - quando se pretende a intoxicação coletiva. Mas há além outros procedimentos privados, procedimentos que podem ser experimentados pelo viajante solitário que não tem inclinação às expansões de tipo coletivo ou não conta com suficiente fé nos princípios, instituições e pessoas em cujo nome se leva a cabo a concentração das massas. Um desses procedimentos é o do mantram, [Prática da religião brahamânica] do qual Cristo dizia que era «vã reiteração». Nas cerimônias de adoração que se celebram publicamente, a «vã reiteração» quase sempre vai associada com o movimento de caráter rítmico; cantam-se ou pelo menos se entoam letanias e rezas. Por meio das rezas, quão mesmo com a música, produzem-se efeitos quase hipnóticos. A «vã reiteração», quando se exercita em privado, atua sobre a mente, não por sua associação com os sons compassados - já que surte efeito mesmo que as palavras são simples produto da imaginação-, a não ser em virtude de uma concentração da atenção e da memória. A constante reiteração da mesma palavra ou da mesma frase, origina com freqüência, um estado de iluminação ou um profundo arroubo. Uma vez promovido, esse arroubo pode ser gozado como o é, como uma deliciosa impressão de diversidade infra-pessoal, ou, deliberadamente com o intento de retificar a conduta pessoal por meio da auto-sugestão e de preparar o caminho da autotranscendência para o alto, para a culminação. A respeito da segunda possibilidade diremos algo mais adiante. Aqui estamos nos ocupando da «vã reiteração» como caminho descendente na espera da alienação intra-pessoal. 

Agora temos que considerar uma questão estritamente fisiológica: é o método de salvação da personalidade isolada em si mesmo: a via corporal da penitência. A violência destrutiva, que é o sintoma do frenesi coletivo, não é invariavelmente dirigida para fora. 

A história das religiões abunda em relatos horrendos de autoflagelações, de navalhadas e rasgo em carne própria, de autocastrações e até de suicídios. Esses atos são conseqüência de um delírio coletivo e são executados em estado de frenesi. Coisa muito diferente é a penitência corpórea entendida individualmente e a sangue frio. Neste caso, a tortura que alguém se inflige a si mesmo tem sua origem em um ato de vontade pessoal; mas seu resultado - ao menos em alguns casos - é uma transformação temporária da personalidade, que se achava sozinha, em outra coisa distinta. Em rigor esta outra coisa distinta é a consciência - que por sua intensidade se faz exclusiva - da dor física. A pessoa que se tortura a si mesmo se identifica com sua dor e, ao fazer-se mera consciência do corpo que padece, sente-se livre da presente frustração, daquela obsessiva ansiedade sobre o futuro que constitui, em grande parte, a realidade do eu neurótico. Foi uma liberação da personalidade, um trânsito para baixo, dentro de um estado de pura tortura fisiológica. Quem se atormenta não se vê obrigado por necessidade iniludível a permanecer nessa região da consciência infra-pessoal. À maneira do homem que faz uso da «vã reiteração» para chegar além de si mesmo, que se atormenta a si mesmo pode ser capaz de valer-se de sua alienação temporária da personalidade como de uma ponte - por assim dizer - para partir acima no fluir da vida do espírito.


Isto nos situa ante uma questão muito importante e verdadeiramente difícil: Até onde e em que circunstâncias é possível ao homem empreender a marcha pelo caminho descendente, a fim de obter uma transcendência espiritual? A primeira vista parece óbvio que o caminho para baixo não pode ser jamais caminho que vá para cima. Mas na realidade da existência há questões que não são tão simples como aparecem neste mundo maravilhoso de nossos pulcros e ordenados vocábulos. Na vida atual um movimento descendente pode ser, às vezes, o princípio de uma marcha para o alto. 

Quando sai do ego se quebra e começa a ter consciência de diversificações subliminares e fisiológicas latentes abaixo da personalidade, costuma acontecer que advertimos um vislumbre momentâneo, mas apocalíptico, dessa outra Diversidade que é o Fundamento de todo ser. Entretanto, alguém se encontra confinado em seu interior, isolada personalidade permanece inconsciente dos vários não um mesmo com os quais está associado: o orgânico não um mesmo, o subconsciente não um mesmo, o coletivo não um mesmo do meio psíquico em que todos nossos sentimentos têm sua existência, e o imanente e transcendente não um mesmo do espírito. Qualquer liberação, embora seja por um caminho descendente, fora da personalidade isolada, faz possível, pelo menos, um momentâneo conhecimento do não um mesmo em seus distintos níveis, inclusive o mais elevado. William James, em suas Variedades da experiência religiosa, dá-nos exemplos de «revelações anestésicas» logo depois da inalação de gás hilariante. Os alcoólicos experimentam às vezes teofanias desse tipo e no curso de intoxicação produzida por uma droga qualquer se dão, provavelmente, momentos nos quais a consciência de um não um mesmo, superior ao eu que se desagrega, faz-se, sem mais, possível. Mas esses ocasionais brilhos de revelação terão que obtê-los a um preço muito elevado. Para o viciado em drogas, o momento em que ressurge a consciência de seu espírito (se chegar a produzir-se) dá lugar imediatamente a um estupor infra-humano - ou frenesi, ou alucinação - seguido de um acusado e tremendo mal-estar e, depois, de uma permanente e fatal piora de saúde do corpo e das faculdades mentais. Só de vez em quando pode uma simples «revelação anestésica» obrar como qualquer outra teofania para levar um sujeito receptor a um esforço de autotransformação e autotranscendência para o alto. Mas o fato de que uma coisa assim chegue a acontecer algumas vezes, jamais justificará o emprego dos métodos químicos de autotranscendência. Este é um caminho descendente e, a maioria dos que o seguiram chegarão a um estado de degradação no que os períodos do êxtase infra-humano alternarão com os períodos de personalidade consciente, tão desprezível que, qualquer evasão, embora seja por meio do lento suicídio da entrega às drogas, parecerá preferível ser uma pessoa. 

O que é verdade das drogas é verdade, mutatis mutandis, da sexualidade elementar. O caminho se desliza costa abaixo, mas ao longo desta rota podem dar-se ocasionalmente teofanias. Os deuses opacos - como os denominou Lawrence - podem trocar seu sinal e fazer-se luminosos. Na Índia há uma ioga, a Trantric, apoiada em uma técnica fisiopsicológica, cuja finalidade aponta à transformação da autotranscendência ascendente. No mundo ocidental, o equivalente mais próximo às práticas dessa ioga foi a disciplina sexual ideada pelo John Humphrey Noyes e praticada pelos membros da Oneida Community. Na Oneida Community a sexualidade elementar, não tão somente foi disciplinada com êxito, mas sim também, foi feita compatível com, e subordinada a, uma forma de cristandade protestante que pregava sinceramente e atuava com seriedade. 

A intoxicação maciça desintegra o eu mais a fundo e de raiz que a sexualidade elementar. Seu frenesi, suas loucuras, suas exageradas sugestibilidades, podem ser equiparadas somente com as intoxicações promovidas por drogas como o álcool, o haxixe e a heroína. Mas até aquele que forma parte de um povo excitado pode alcançar - em uma das primeiras etapas de sua autotranscendência em descida - uma genuína revelação da Diversidade que se oferece acima da pessoa. Esta é uma das razões pelas quais um indivíduo pode desprender-se de sua influência e ficar à margem do ambiente opressivo de uma exaltação coribântica, seja religiosa ou política. Em virtude do fato de que os homens ou as mulheres que formam parte de uma multidão se sintam inclinados e inclinem a ser brinquedo de uma sugestibilidade superior a normal, os resultados que se produzam tanto podem ser favoráveis como realmente desastrosos: enquanto se acham neste estado de sugestibilidade, como sujeitos submetidos às exortações dominantes, voltam para a posse de suas faculdades, tal como acontece depois de um período de hipnose. Tanto o demagogo como o pregador ou o ritualista desintegram o eu de seus ouvintes agrupando-os em rebanho e alucinando-os com abundantes dose de vãs reiterações e monótona cantarola. Então = a diferença do demagogo -, os outros apelam a suas particulares sugestões, algumas das quais podem ser efetivamente cristãs. Essas sugestões, se são «assimiladas», resolvem em uma reintegração da personalidade de cada um  - até esse momento afundada e desfeita - a um nível um pouco mais elevado. Podem dar-se também reiterações da personalidade sob a influência de mandatos pós-hipnóticos no processo de excitação de um povo movido por paixão política. Mas esses mandatos são, por uma parte, incitações ao ódio e, por outra, à obediência cega e à ilusão compensatória. Iniciados com uma dose enorme de veneno coletivo, confirmados e estipulados pela retórica de um maníaco que é ao mesmo tempo um maquiavélico explorador das debilidades de outros mortais, a «conversão» política resolve na criação de uma personalidade nova, pior que a anterior e muito mais perigosa, já que está entregue de coração a um partido cuja primeira finalidade consiste na liquidação de seus oponentes. 

Distingui entre demagogos e religiosos, sobre a base de que estes últimos podem fazer algo bom, enquanto que os primeiros apenas se fizerem algo mais dada a natureza das coisas que suscitar a ofensa. O qual não quer dizer que os religiosos que se valem da intoxicação da multidão estejam totalmente isentos de culpabilidade. Pelo contrário, no passado, foram responsáveis por maldades quase tão descomunais como as ocasionadas pelos revolucionários demagogos de nossos tempos, aniquilando vítimas sem conta em um rosário sem fim. No curso das seis ou sete últimas gerações, o poder das organizações religiosas para exercitar o mal declinou, ostensivamente, em nosso mundo do ocidente. Isto é devido, em primeiro lugar, ao assombroso progresso da técnica e a conseqüente demanda, por parte das massas, de ilusões compensatórias, as quais se manifestam melhor como algo positivo que como lucubração metafísica. Os demagogos oferecem essas ilusões pseudo-positivas e os religiosos não. Segundo a força atrativa das igrejas vai declinando, assim vai declinando conseqüentemente sua influência. E assim declinam também sua riqueza, seu poder político e, ao mesmo tempo que estes, sua capacidade para exercitar o mal em grande escala. As circunstâncias liberaram aos eclesiásticos de algumas das tentações às quais nos séculos passados sucumbiam quase invariavelmente seus predecessores. Deveriam ser estimulados a liberar-se voluntariamente e por si mesmos de tais tentações, que ainda subsistem. Entre tais tentações uma muito principal é a de alcançar o poder, a fim de aspirar o desejo dos homens por uma transcendência de inibição. E à verdade, não se pode justificar moralmente o fato de induzir, a consciência à intoxicação alucinante das multidões, nem que seja em nome da religião, nem que se dê como bom que tudo é pelo bem do intoxicado. 

A propósito da autotranscendência horizontal não é necessário dizer muitas coisas e não porque o fenômeno deste tipo de transcendência careça de importância, mas sim porque se trata de coisa muito freqüente e que pode ser facilmente submetida a análise. 


Quanto ao fato de escapar ao espanto de sentir-se pessoa isolada e sozinha, a maioria das pessoas escolhem quase sempre um caminho que não é o que vai para cima nem o que vai para baixo, a não ser um caminho plano. Todos se identificam com alguma causa que supera em amplitude o âmbito de seus interesses imediatos, mas que não é degradantemente inferior e, se resultar que é mais elevada, só o é na classe dos valores sociais correntes. Nesse caminho horizontal  - ou quase horizontal - a transcendência pode dar-se em virtude de um pouco tão corriqueiro como uma mania ou tão estimável como o amor matrimonial. Pode dar-se também pela identificação que alguém faz de si mesmo com qualquer atividade humana, da direção de um negócio até a investigação nuclear, da composição de uma sinfonia até a busca e coleção de selos, das campanhas de tipo político até a educação dos meninos ou o estudo dos costumes matutinos dos pássaros. A autotranscendência horizontal é da maior importância. Sem ela não haveria nem arte, nem ciência, nem lei, nem filosofia e nem sequer civilização. E, certamente, tampouco haveria guerra nem odium theologicum ou ideologicum, nem intolerância sistemática, nem perseguição. Esses grandes bens e esses enormes males são os frutos da capacidade do homem para a total e contínua auto-identificação com uma idéia, um sentimento, uma causa. Como podemos ter o bem sem o mal, como gozar de uma elevada civilização, sem saturação de bombardeios e exterminação de hereges religiosos ou políticos? A resposta é que não podemos manter o bem tão longo tempo como nossa autotranscendência permanece em atitude horizontal. Quando nos identificamos com uma idéia ou com uma causa é que nos achamos de fato em transe de adoração algo de tipo doméstico, algo parcial e paroquial, algo que, não obstante sua nobreza, tem características excessivamente humanas. «O patriotismo», segundo a conclusão a que chega um grande patriota a véspera de sua execução, decretada pelos inimigos de sua pátria, «não é suficiente». Nem é socialismo, nem comunismo, nem capitalismo; nem tampouco é arte, nem ciência, nem ordem pública, nem religião positiva, nem Igreja. Tudo isto é indispensável, mas nenhuma dessas coisas é suficiente. A civilização exige do indivíduo uma decidida auto-identificação com a mais eminente das causas da natureza humana. Mas se esta auto-identificação com o que é humano não vai acompanhada de um consciente e consistente esforço para levar a sua culminação a autotranscendência para o alto na vida universal do Espírito, os bens conseguidos aparecerão sempre mesclados com males que os contrapesem. «Da verdade mesma fazem um ídolo - escreveu Pascal-, posto que verdade sem caridade não é Deus, a não ser sua imagem e ídolo, que nunca devemos amar nem adorar.» E não deixa de ter sua razão o adorar a um ídolo; coisas na verdade inconveniente. A adoração da verdade à margem da caridade - auto-identificação com a ciência que não vai acompanhada de uma auto-identificação com o Fundamento de todo ser - resolve nessa particular situação em que agora nos encontramos. Todo ídolo, exaltado como é, deriva, ao longo de seu curso, fazendo um Moloch faminto de sacrifícios humanos.


Texto tirado do Apêndice do livro "Os demônios de Loudun", de Aldous Huxley.


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