terça-feira, 16 de junho de 2015

O Simbolismo do Teatro (Por René Guénon)

Acabamos de comparar a confusão de um ser com sua manifestação exterior e profana [1] com a identificação de um ator com o personagem que ele está atuando; a fim de demonstrar em que medida esta comparação está correta, algumas considerações sobre o simbolismo do teatro não estarão fora do escopo, embora tal simbolismo não pertença exclusivamente ao domínio iniciático. É desnecessário dizer que este simbolismo pode estar ligado ao caráter original das artes e ofícios, os quais costumavam possuir um significado iniciático pelo fato de que estavam ligados a um princípio superior a partir do qual eles eram derivados como aplicações contingentes; ele só se tornou profano, como já explicamos, muitas vezes, com o resultado da degeneração espiritual da humanidade durante o curso descendente de seu ciclo histórico.

Pode-se dizer, de modo geral, que o teatro é o simbolo da manifestação, do caráter ilusório que expressa tão perfeitamente quanto é possível [2]. Este simbolismo pode ser visto ou do ponto de vista do ator ou daquele do teatro em si. O ator é um simbolo do Si ou do "homem interior" manifestando-se em uma série indefinida de estados e modalidades que podem ser consideradas como os muitos diferentes papéis; e deve-se notar a importância do antigo uso da máscara como uma exata expressão desse simbolismo [3]. Da mesma forma, o "homem interior" continua "não afetado" por suas manifestações; o desaparecimento da máscara, pelo contrário, força o autor mudar sua própria fisionomia. No entanto, em qualquer caso, o agente permanece fundamentalmente diferente daquilo que parece ser, da mesma forma como a "pessoa interior" é diferente da multiplicidade dos seus estados manifestados. São nada mais que as aparências e mudanças exteriores que ele coloca afim de realizar, ao longo dos vários modos que convêm a sua natureza, as indefinidas possibilidades que ele contem dentro de si mesmo no eterno momento de não-manifestação. 


Movendo-se para um outro ponto de vista, podemos dizer que o teatro é uma imagem do mundo: tanto o teatro como o mundo são propriamente "representações". O próprio mundo, por existir somente como uma consequência e uma expressão do Princípio do qual é essencialmente dependente em todos aspectos, pode ser considerado simbolização da ordem principial em sua própria maneira. É este caráter simbólico que confere ao mundo um valor superior aquele que possui em si mesmo, sendo o modo em que participa em um grau mais elevado de realidade. [4] Em árabe, o teatro tem sido designado pela palavra tamthīl que, como todas outras palavras que derivam da mesma raiz, mthl, denota os significados de semelhança, comparação, imagem ou figura; e alguns teólogos muçulmanos usam a expresão “ālam tamthīl", que pode ser traduzida por "mundo figurativo" ou "mundo de representação", para se referir a tudo aquilo que é descrito simbolicamente nas Sagradas Escrituras e, portanto, não podem ser tomadas literalmente. É notável que alguns aplicam esta expressão especificamente para o reino dos anjos e demônios, que na verdade representam os níveis mais elevados e inferiores do ser, que só podem ser descritos por termos simbólicos emprestados do mundo sensível. Além disso, por uma coincidência que é digno de nota, deve-se mencionar o papel considerável que estes anjos e demônios tinham no teatro religioso no Ocidente medieval. 

Do que foi dito, pode-se dizer que o teatro não está necessariamente limitado a função de representar o mundo humano, ou seja, de um único estado de manifestação; também pode representar ao mesmo tempo mundos superiores ou inferiores. Por esta razão, nas peças de mistérios da Idade Média, o palco era dividido em vários níveis correspondendo com os diferentes mundos; esses níveis geralmente correspondiam a sequencia da divisão ternária: céu, terra e inferno. Além disso, uma vez que a peça era realizada simultaneamente dentro dessas várias divisões, se tornava uma representação precisa da essencial simultaneidade dos estados do ser. Por falta de compreensão deste simbolismo, os modernos tem considerado como "ingenuidade", para não dizer desajustado, o que na verdade é algo de mais profundo significado. O que é mais surpreendente é a rapidez com que esta incompreensão apareceu, como é demonstrado pela sua manifestação impressionante entre os escritores do século XVII; este cisma radical entre a mentalidade da Idade Média e da mentalidade dos tempos modernos não é um enigma de mínima importância na história.

Já que falamos das peças de mistério, não acreditamos que seja inútil apontar para a singularidade dessa denominação que tem um duplo sentido: deve-se escrever, em todo rigor etimológico, "mistérios", pois essa palavra deriva da palavra ministerium, que significa "trabalho" ou "função", que claramente indica até que ponto que as representações teatrais deste tipo eram originalmente consideradas partes integrantes de uma celebração de feriados religiosos. [5] O estranho é que esse nome tenha sido usado e resumido de forma a tornar-se exatamente homônima dos "mistérios", e, finalmente, sendo confundida com esta outra palavra, que é de origem grega e tem uma derivação totalmente diferente; é somente através de uma alusão aos "mistérios" da religião, que eram encenados nas peças que assim foram designadas, que essa assimilação foi feita. Isso, sem dúvida, pode ser uma razão plausível; mas, por outro lado, se se considerar que representações simbólicas aconteciam nos "mistérios" da Antiguidade, como na Grécia e provavelmente também no Egito [6], pode-se ser tentado a ver nisto algo que remonta muito mais longe no tempo e se interpretar como uma indicação da continuidade de uma tradição esotérica e iniciática que se afirmava exteriormente, em intervalos mais ou menos distantes no tempo, por manifestações similares, com a adaptação exigida pela diversidade de circunstancias do tempo e lugar. [7] Nós tivemos oportunidades bastantes frequentes para apontar para importância de assimilações fonéticas entre palavras que são filologicamente distintas, como uma modalidade de linguagem simbólica; não há nada de arbitrário nisso, o que quer que a maioria de nossos contemporâneos possam pensar sobre isso,  e este método não é completamente sem conexões com os modos de interpretações pertencentes ao nirukta Hindu; mas os segredos da constituição intima das linguagens são tão completamente perdidas hoje que é difícil fazer alusões sem ser suspeito de ceder a "falsas etimologias" ou até mesmo a um mero "jogo de palavras". O próprio Platão, que ocasionalmente usa esse tipo de interpretação - como nós já indicamos em referência aos "mitos" - não é mais favoravelmente recebido pelo "criticismo" pseudo-científico das mentes que estão limitadas por preconceitos modernos.

A fim de concluir estas poucas observações, mencionaremos ainda um outro ponto de vista sobre o simbolismo do teatro: a do dramaturgo. A partir deste ponto de vista, os vários personagens, assim como as produções mentais, podem ser consideradas como modificações secundárias e como se fossem extensões do autor, aproximadamente da mesma maneira como as formas sutis que são produzidas no estado de sonho [8]. Além disso, a mesma consideração, obviamente, pode ser relevante em respeito a produção de qualquer obras de imaginação de qualquer gênero; no entanto, no caso particular do teatro, esta produção é especificamente realizada em um modo sensível que processa a própria imagem da vida, como também acontece nos sonhos. Por isso, o autor preenche uma função verdadeiramente "demiúrgica" uma vez que ele produz um mundo que é inteiramente elaborado de si mesmo. Ele pode ser considerado, por essa razão, como o próprio símbolo do Ser como produtor da manifestação universal. Neste caso, como no caso dos sonhos, a unidade essencial do produtor de "formas ilusórias" não é afetado por esta multiplicidade de manifestações acidentais, como a unidade do Ser permanece inalterado pela multiplicidade da manifestação. Portanto, a partir de qualquer ponto de vista que se observe, sempre se encontra no teatro este profundo raison d'être - mesmo que seja desconhecido por aqueles que fizeram desta forma de arte algo puramente profano; o de ser, por sua própria natureza, um dos mais perfeitos símbolos da manifestação universal. 

1 No capítulo "Noms profana et noms initiatiques" ("Nomes profanos e iniciáticos").
2 Nós não dizemos irreal; pois é bastante óbvio que a ilusão só pode ser considerada como uma realidade inferior.
3 É relevante notar aqui que essa máscara é chamada no latim persona; o "homem interior" é, literalmente, aquele que se esconde sob a máscara do indivíduo.
4 Esta é também uma consideração ao mundo, quer como ligado ao Princípio ou no seu próprio ser somente, que distingue fundamentalmente o ponto de vista das ciencias tradicionais das ciencias profanas. 
5 É a partir da mesma palavra, ministerium, no sentido de "função", que a palavra francesa métier é derivada. 
6 Pode-se, além disso, conectar diretamente a essas representações simbólicas do ritual de "encenação" de "lendas" iniciáticas que mencionamos anteriormente.
7 A "exteriorização" no modo religioso que ocorreu na Idade Média podem ter sido a conseqüência de tal adaptação. Não constitui, portanto, uma objeção contra o o caráter esotérico desta tradição em si.
8 Cf. Estados Múltiplos do Ser, Capítulo 6. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário