domingo, 23 de agosto de 2015

A Justiça Original é a Verdade (Por Jean Borella)


O homem moderno espontaneamente pensa no pecado de forma subjetiva e perde completamente de vista o lado objetivo. Esse erro prejudica toda a sua vida espiritual e moral, e todas suas formas de pensar sobre o pecado original e a redenção. Mas, na realidade, a justiça é definida como ordem e o pecado original como desordem. Essa doutrina é objetiva porque se encontra dentro da natureza das coisas. A justiça original é ordem, e ordem é a harmonia hierárquica refletindo e atualizando a unidade na multiplicidade. Justiça é, de fato, a qualidade do que é justo. A justiça marca a relação entre as coisas, pois o que é justo se apresenta como uma coisa em relação com outra em conformidade com suas respectivas naturezas e, portanto, em conformidade com o direito que elas têm de atualizar estas naturezas. Um relacionamento justo torna possível uma realidade ser o que ela é. Esta possibilidade não está realizada ipso facto no mundo das coisas criadas, e isto, por duas razões: em primeiro lugar, nenhuma realidade é, no seu próprio ser, idêntico a sua natureza, mas, ao contrário, encontra-se sujeita ao devir; segundo, o mundo estando completo, a atualização de uma natureza particular colidirá com as atualizações de todas outras naturezas. Se a primeira razão estabelece o direito de um ser criado ser o que deveria ser por sua natureza, o segundo estabelece a ideia de hierarquia. Considerado em si mesmo, um direito é sempre absoluto e, portanto, exclui todos os outros. Mas é impossível traduzir esse absolutismo em igualdade e dizer que, uma vez que todos os direitos são absolutos, todos eles são iguais, pois igualdades destrói os direitos. Este direito é, em verdade, o direito de uma natureza ser o que ela é. A igualdade é realiza somente no plano puramente quantitativo de unidades numéricas (1=1); assim, sob essa tendência, tudo tende a uma justaposição numérica, que só é possível através da destruição de todas as diferenças qualitativas que especificamente compõem essas naturezas, de modo que, com a igualdade, o direito se torna o direito para o nada. Assim, para preservar este direito (esse ser absoluto incapaz de expressar-se através de uma justaposição igualitária), resta apenas um posicionamento hierárquico, no qual, aquele direito, renunciando ser absoluto, consente com sua própria relatividade, em outras palavras: um posicionamento onde um direito pode ter mais direito a alguma coisa que outro. Mas, para essa renúncia não ser apenas resignação e compromisso, ela tem que ser baseada em algo além de restrição. Por outro lado, para que haja uma subordinação hierárquica, é necessário um princípio de hierarquização que regulamenta a subordinação das naturezas por seu grau de proximidade com o Princípio. Estas duas exigências são satisfeitas em uma operação única e singular: a submissão da criatura ao Criador, do relativo ao Absoluto. Todos os direitos são estabelecidos com a renúncia de seu caráter absoluto em face dos direitos do Absoluto, e é através desta obediência por si só que esses direitos são estabelecidos. Por este ato de submissão, todas as naturezas têm acesso a uma igualdade formal e qualitativa, não horizontalmente entre si, mas verticalmente com respeito a Deus. Referindo-se a esse critério absoluto, cada um é visto - simultaneamente - em sua própria verdade, que define sua posição hierárquica. A justiça consiste, então, na submissão do menor ao maior, porque essa submissão está em conformidade com a verdade ontológica. Mas, sendo uma submissão, trata-se de um ato de vontade; pois, mesmo se por definição o intelecto é sujeito à verdade, ele ainda é impotente para levar-se à submissão, que é uma operação própria da vontade. O intelecto não obedece; é em si mesmo obediência. Mas a vontade obedece, no sentido ativo do verbo, porque pode sempre recusar-se a ser submisso à verdade percebida pelo intelecto. Portanto, se a vontade obedece, e uma vez que isso não ocorre apenas por estar simplesmente ciente da natureza das coisas, isso deve ser um efeito da Graça Divina. A harmonia hierárquica, que dá definição à justiça, é de fato, baseada na natureza das coisas, mas para que possa ser atualizada pela vontade, é necessário o poder da graça. Assim, a justiça é o efeito da verdade, mas também é o efeito da graça sobrenatural.


Ordem e Ordenação

A matéria também pode ser expressada da seguinte maneira: através do Verbo, o ser criado recebe uma forma (ou uma essência ou logos). Esta forma determina a existência do ser criado e sua situação hierárquica na ordem cósmica. Para determinar a natureza de uma coisa, sua "coisidade", o que ela é, é também determinar tudo que ela não é e, portanto, é também atribuir a coisa sua posição entre todas as criaturas, pois sua natureza não é a única natureza - a possibilidade (natureza) não é esgotada por si só. Também não é completamente separada de todas as outras possibilidades (naturezas), se assim fosse seria como não-existente para o resto da criação e vice-versa. Por ser o que é (determinação cardinal) a criatura também é um elemento da ordem universal (determinação ordinal). Assim, uma nota musical, por ser ela mesma, isto é, tal ou qual nota específica, define simultaneamente seu lugar dentro da oitava. Por sua própria natureza a criatura é um nexo de relações implicando o universo inteiro. E é por isso que é correto apropriar essa função de relação ontológica ao Logos. Sem dúvida, essa doutrina de uma determinação dual - cardinal e ordinal - pede para que vemos a criatura em uma totalidade harmoniosa, uma hierarquia cósmica em que cada coisa tem sua razão de ser e ocupa uma posição adequada à sua natureza. Indubitavelmente, há também como consequência da doutrina da correspondência universal, a doutrina da criação corpórea, anímica e angélica, que define, para o homem, os três graus básicos da realidade cósmica, que são como as diversas reverberações do Único Logos. Assim, a doutrina da correspondência universal é só outra maneira de expressar a unidade da criação na multiplicidade dos seus aspectos e, portanto, a própria noção de hierarquia cósmica. Mas é claro que essas noções são, na verdade, inseparáveis da noção de criação, e que, na Bíblia, a beleza e a bondade do universo não representa temas poéticos, mas axiomas metafísicos. Aqui, de forma brevemente resumida, está aquilo que São Tomás chama de o "trabalho de distinção do Verbo".

No entanto, um ser criado não possui sua natureza em acto abinitio (desde o começo); ele realiza por passar (relativamente) de potência ao ato. Neste sentido, dessa forma é fornecido o fim para o qual foi criado, um fim que não pode ser alcançado por nenhuma outra criatura. Mas a organização deste fim está vinculada ao trabalho ordenador do Espírito Santo. É ele, o viniculum perfectionis, o "vínculo da perfeição", que atualiza e aperfeiçoa as criaturas enquanto ordena elas para seu fim. Tal é a condição de toda criatura que pode cumprir seu fim próprio, e portanto, para realizar sua própria natureza, somente entregando-se para outra criatura. Somente através da alteridade é que ela pode descobrir sua própria identidade. E da mesma forma, todas as criaturas realizam-se entregando-se para a criação, enquanto toda criação realiza-se entregando-se a Deus. Pois o fim tudo é verdadeiramente interminável, infinito; caso contrário, uma criatura realizar seu fim significaria simplesmente sua destruição e sua aniquilação. Assim vemos que os dois significados do "fim", fim/aniquilação e fim/perfeição, são dois aspectos de uma mesma realização: "Se o grão de trigo não morrer, não terá frutos." O fim como morte é o mesmo que o fim como cumprimento. Assim, as raízes da árvore chegam ao tronco que contém seiva, encontrando o seu cumprimento nele; o tronco faz o mesmo para os ramos e os ramos para as folhas, flores e frutos. A fruta somente tem seu fim na continuidade da espécie, mas a espécie não é um fim em si mesmo - ela manifesta um aspecto da Beleza Divina, e, através dela, encarna um arquétipo da Verdade Eterna que nos instrui. Então, através do ministério do espírito contemplativo, a própria espécie se torna consciente, pois a consciência, a chaminé cósmica que arde no coração da árvore da criação e que carrega as chamas até ao céu, é a raison-d’être dos estados considerados. 

Certamente o Amor ordena tudo para todo o resto. Se o Verbo é a ordem, o Espírito Santo é a ordenação, Aquele que anima e revela a interseção universal das determinações cardinais e ordinais. Desta forma, vislumbramos a metafísica da caridade em toda sua unidade. De acordo com a ordem da caridade fraterna, o Espírito Santo é o animador e revelador da proximidade ontológica, que deve estar relacionado com o Verbo; de acordo com a ordem da Caridade Divina, podemos vê-lo através de sua função de maternidade hipostática, revelador do Logos; agora podemos vê-lo como animador e revelador do "verbo" das criaturas em sua função como caridade cósmica - a obra da criação exige a concordância das "duas mãos de Deus", o Verbo e o Espírito Santo. Se uma realidade papável pode simbolizar uma realidade inteligível, é em virtude de uma correspondência ontológica, o trabalho do Verbo Divino. Mas é o trabalho da Terceira Pessoa definir realidades palpáveis e inteligíveis em correspondência, trazer o símbolo ao simbolizado (isto é, o próprio símbolo em sua função ordenadora de relacionar um com o outro). A criação prossegue, assim, como uma partitura musical: as notas são compostas pelo Logos, mas é o Espírito Santo quem canta.


Jean Borella em The Secret of the Christian Way: A Contemplative Ascent Through the Writings of Jean Borella

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

A Criação e a Sexualidade. A Espécie e a Personalidade (Por Nikolai Berdiaev)

A vida sexual neste mundo está viciada e corrompida nas suas raízes mais profundas. A sede de reunificação, de ser UM, que atormenta o homem preso ao desejo, é uma sede que não pode ser satisfeita. O ato sexual em particular, diferenciado, aparece como resultado de uma fragmentação original, é sinal do homem que perdeu sua unidade: isso é suficiente para tornar o ato irremediavelmente trágico e ineficaz. O ato sexual representa a tentativa extrema de duas correntes saídas de polos contrários se unificarem e absorverem uma na outra  sem sair delas mesmas. Chegam a se confundir? Certamente, não. Há algo que testemunha contra o ato sexual, e que carrega em si mesmo sua própria profanação, o germe da desintegração, esse transtorno licencioso que é exatamente o oposto do princípio da unidade. A união pelo ato sexual não é mais que ilusória, e esta ilusão tem que ser paga. Pelo fato dessa união ser temporária, estando na ordem natural das coisas, onde tudo é instantâneo e perecível, o sexo carrega o germe da morte. A ilusão fugaz do ato sexual é sempre acompanhada por uma reação, uma volta atrás, uma desunião. A desunião depois do ato sexual é mais completa que antes. Um tipo de isolamento doentio contamina o êxtase do abraço. O ato sexual, segundo seu significado místico, teria que ser eterno, e a união que ele encarna deveria aprofundar indefinidamente, as duas carnes deveriam se fundir em uma só, penetrar uma a outra até o extremo. Em vez disso, se cumpre o ato de uma união passageira, muito temporal e muito superficial. A reunião passageira se paga com uma divisão mais profunda. Dessa forma, a união no ato sexual se manifesta sempre  limitada. A união dos sexos em um sentido místico deveria significar a penetração de cada célula de uma criatura na célula de outra, a fusão total de uma carne na outra carne, de todo espírito no outro espírito. Em vez disso, se cumpre um ajuste superficial, incompleto, fragmentário, a carne permanece separada da outra carne, e o ato sexual diferenciado, isolado, guarda em si algo de defeituoso e mórbido. A união dos sexos teria que ser eterna, não deveria ser abreviada e nem ser acompanhada por uma volta atrás; deveria comunicar-se e expandir-se em toda a prisão onde a criatura está encerrada, teria que ser profunda e infinita. Em vez disso, o ato sexual na ordem da natureza, coloca o homem sob o infinito absurdo da corrente sexual que não conhece mitigação e prazos. Assim, a fonte de vida neste mundo está corrompida em sua base, e aparece como a fonte da escravidão humana. O ato sexual é interiormente contrário e oposto ao espírito do mundo: a vida natural do sexo é sempre trágica e inimiga da personalidade. Esta personalidade é apenas um brinquedo para o gênio da espécie, e a ironia do gênio da espécie acompanha o ato sexual. Sobre isso, tanto Schopenhauer como Darwin podem dar testemunho. O ato sexual é profundamente impessoal, é geral e idêntico, não só nos humanos como também para outros seres vivos. O ato sexual não somente não possui algo de pessoal ou individual, mas também não tem nada especificamente humano. A personalidade está sempre ali sob o poder de uma corrente geradora obscura, que relaciona o mundo humano com o mundo animal. A edificação mística de uma união pessoal em uma carne não pode ser alcançada e realizada em um elemento impessoal. E a tragédia sem solução do sexo é que a sede de uma união pessoal arrasta o homem para a corrente genética da natureza, levando-a, através do ato sexual, não a uma união pessoal, mas a uma concepção, a uma destruição da personalidade na geração, a um infinito maligno e não a uma eternidade.  Nesta vida sexual em busca do prazer e satisfação do desejo, o que prevalece não é uma edificação pessoal, mas sim o interesse da espécie, a continuação da espécie. O pessoal não pode realizar-se através do impessoal. O ato sexual corresponde sempre ao desmoronamento da personalidade e sua dissolução.



Não é, portanto, a imortalidade e a eternidade o que se espera a pessoa no ato sexual, mas sua dispersão em uma pluralidade de novas vidas por vir. O ato sexual afirma um infinito maligno, uma alternância infinita do nascimento e da morte. O que nasceu morre e engendra o que morrerá. O engendrar é sempre um sinal de fracasso da perfeição pessoal, da não adesão a eternidade. O que concebe e o que tem que nascer são princípios igualmente fugitivos. A concepção é de uma só vez o castigo do ato sexual e a redenção de seu pecado: e assim, o nascimento e a morte estão misteriosamente ligados na sexualidade. Pois a sexualidade não é somente a fonte de vida, mas também a fonte da morte. Se nasce e morre por ela. A corrupção e a decadência mortal entraram no mundo pelo caminho da sexualidade. Foi com ela que a personalidade começou a decrescer, a se desprender da eternidade. A sexualidade afunda o homem nessa categoria perecível da natureza na qual reina a alternância infinita de nascimento e morte. O que é mortal engendra e o que é mortal morre. A lei do karma e da evolução infinita da reincarnação que ensina a concepção religiosa da Índia é, na verdade, essa necessidade da morte e o nascimento, ligados ao pecado da sexualidade. A liberdade benfeitora do cristianismo substituiu as consequências obrigatórias da lei do karma. Há um antagonismo profundo entre a vida eterna e perfeita da personalidade e o nascimento de vidas mortais no tempo, entre a perspectiva da personalidade e a perspectiva da espécie. A espécie é a fonte da morte da personalidade, a fonte de vida geradora. Os gregos já sabiam que Hades e Dionísio eram apenas um só deus, sentiam a ligação mística entre a morte e a geração.  A isso se deve que no próprio ato sexual, na união sexual, se oculta uma tristeza mortal. Na vida geradora do sexo se dissimula o pressentimento da morte. O que dá a vida leva consigo a morte. A alegria da união sexual é sempre uma alegria envenenada. E este veneno mortal encerrado na vida sexual sempre foi percebido como um pecado. O ato sexual sempre envolve a tristeza das esperanças dissipadas da personalidade, a passagem do eterno ao temporal. Na união pessoal aqui embaixo sempre há algo que morre. O ato sexual se cumpre na corrente da espécie, fora da personalidade. O instinto sexual, apoderando-se do homem, submete a personalidade eterna à forças passageiras. A sua queda, sua dispersão em uma pluraridade maligna está inscrita antecipadamente na vida das espécies. Nada específico poderia levar a exaltação da pessoa, da eternidade perfeita. A corrente da espécie nasceu da queda e da desintegração do homem. A dissociação eterna do mundo caído e culpável tem como face oposta a reunião artificial dentro da espécie. A espécie humana é uma pseudo-humanidade, que testemunha a dissociação humana. Nela, a própria natureza do homem se encontra escravizada e sufocada. O gênio da espécie é o principal obstáculo para a revelação da humanidade, para a revelação da natureza criadora do homem.  A espécie é uma necessidade maligna, a fonte de escravização do homem e sua desintegração. O vínculo entre o homem e o espírito se transforma em um vínculo específico com a carne e o sangue. Os seres não estão mais unidos pela filiação da Virgem, do eterno feminino no Espírito, mas somente pela engendração, pelo ato sexual. O vínculo da espécie humana, o vínculo sexual, supõe este ato, que os homens se envergonham por ser impuro. As pessoa costumam esconder a fonte de seu vínculo e união com a espécie. A religião da espécie humana terminaria, então, por glorificar e deificar aquilo que os homem escondem e se envergonham. O vínculo da carne e do sangue é o vínculo pelo ato sexual, o vínculo forjado por ele. A grande e a imensa significação de Rosanov reside na sua imposição ao conhecimento religioso esta verdade e tudo que deriva dela.


A liberação da personalidade sobre o ato sexual é a liberação em respeito a espécie, a ruptura do vínculo da espécie em nome do vínculo pelo espírito, a saída do universo maligno do nascimento e morte. A espécie e a personalidade são profundamente antinomicas, seus princípios são mutuamente excludentes.  Tudo que é pessoal no homem é inimigo da sexualidade específica. Só na personalidade, a energia da sexualidade, pode chegar ao seu grau mais elevado; não existe uma personalidade forte sem essa energia, mas sua tendência não deve estar direcionada para a espécie, tem que se opor a queda em uma pluralidade maligna. A personalidade se conhece e se realiza fora do elemento da espécie. Não poderia vencer a morte e adquirir a eternidade no terreno do vínculo da espécie. É preciso nascer uma humanidade nova. A relação entre os pais e os filhos é biológica-zoológica. No que lhe diz respeito, o homem é aceitavelmente semelhante a uma galinha ou cão. Mas a relação dos pais com os filhos pode ser mística. É possível contrariar a ordem da natureza, trocar a espécie pelo espírito. Falo aqui de uma relação ativa entre as gerações e não uma obediência servil ao passado, que nada mais é que uma escravidão genética. O homem se sente culpado pela morte de seus pais e seus antepassados, deve reviver-los. Mas essa reavivação não pode ser feita a não ser mediante ao espírito, fora da espécie. A continuidade místico-ativa entre o homem e seus ancestrais transforma a relação de vínculo de espécie em vínculo espiritual, de vínculo mortal em vínculo imortal. No centro de sua concepção religiosa, Fedorov havia situado esta ideia de reavivamento de seus antepassados mortos. Neste reavivamento (não uma ressurreição) viu a essência do cristianismo. Mas as concepções de Fedorov são afetadas por uma divisão inexplicável. Por uma parte, torna-se corajosamente para frente, exorta o homem a atividade criadora e acredita que tem o pode em suas mãos de reviver os mortos mediante suas forças ativas. Mas, por outro lado, Fedorov segue sendo um conservador, e esta mesma atividade criadora, em vez de direciona-la para o futuro, para uma edificação nova, quer fazê-la servir para restaurar forças antigas. Fedorov é um revolucionário dentro da corrente da espécie, mas caí ainda mais dentro da corrente. No fundo, sua religião é uma religião da espécie. Reforça o vínculo que liga o ser com a espécie, da carne com o sangue, e não com o espírito. Portanto, para ele, os mortos tem que reviver pela espécie e não pelo espírito. E suas visões geniais sobre a espécie tem um sabor específico. Previu genialmente na Santíssima Trindade a forma de toda geração, mas em vez de ver ali somente uma geração essencialmente espiritual, parece não ter entendido vendo apenas a geração da espécie. Na vida da espéice, a morte é inevitável. Somente pelo espírito se pode vencer a morte, ressuscitar os mortos. O primeiro nascimento, na espécie, não é o nascimento autêntico do homem. Apenas o segundo nascimento, o nascimento no espírito, que falavam os místicos, que constituem para o homem o nascimento definitivo. Mas o caminho transitório da espécie teria que ser percorrido pela humanidade.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Mortificação, Depressão e Noite Escura da Alma (Por Charles Upton)

A ciência e a arte da alquimia ensinam que a alma propriamente humana não pode ser forjada sem o colapso da alma subumana do "homem natural" - em termos Sufis a nafs al-ammara - sem o afrouxamento de sua aderência sobre as faculdades humanas para que elas possam ser conformadas, não às paixões subconscientes, mas ao Espírito consciente; isto é equivalente, embora num nível mais circunscrito e essencialmente psicofísico, a doutrina Sufi de fan (aniquilação do ego) e baqa (subsistência em Deus). Se colheita da humanidade integral deve ser semeada, cultivada e colhida, o solo da alma deve ser primeiramente limpo, lavrado e arado; sua resistência à fertilidade espiritual deve ser quebrada.

As três fases fundamentais da Grande Obra alquímica são a melanose ("enegrecimento", mortificação espiritual, simbolizada pelo metal chumbo), a leucose ("branqueamento", receptividade espiritual, simbolizada pela preta) e a iosis ("avermelhamento", realização espiritual, simbolizada pelo ouro); em termos clássicos do caminho místico, estes correspondem a Purgação, a Iluminação e a União. Nada pode ser realizado no Caminho Espiritual sem a mortificação do ego; aquelas "espiritualidades" que dão acesso a estados psíquicos aparentemente exaltados sem requerer, ou mesmo pedir, pela morte do velho eu são enganadoras, possivelmente até mesmo Satânicas: o duas vezes nascido precisa antes morrer.

Às vezes, essa mortificação, essa melanose, pode ser deliberadamente produzida através de um asceticismo e auto mortificação (embora, na ausência da Graça, tal asceticismo geralmente não é nada mais que um egoísmo espiritual, um exercício da própria vontade); em outros momentos ele está diretamente infundido pela Providência. As dificuldades e as tragédias da vida - em presença de uma verdadeira doutrina espiritual, com a Graça de Deus, e com as habilidades necessárias - podem ser transformadas para fins de uma purificação espiritual; este é o método mais profundo e mais radical de transmutar tragédia pessoal em uma grande felicidade. Mas, em outros momentos, as travas virão sobre a alma, sem motivo aparente. Deus simplesmente decide retirar Seu apoio, para que a alma afunde no mundo de natureza material, governado pelas paixões, para assim chamá-la para algo mais elevado. O Profeta Elias foge para o deserto para escapar o tirânico e idólatra Rei Ahab (o ego), onde ele é alimentado pelos corvos (a sabedoria escura de Deus); Jó, devido a aposta de Satã com Yavé, perde tudo que ele tinha - riqueza, saúde e a família - e sofre uma verdadeira metanóia, encontra Deus face-a-face, e é finalmente presenteado com uma nova vida muito maior que sua antiga, pois agora está enriquecido pela Sabedoria. E também há alguma verdade na noção de que a vulgaridade, o caos e o terror da vida moderna podem, por si só, agir como uma espécie de mortificação - se, claro, nós evitarmos a tentação de fugir dela adotando paixões muito tóxicas e distrações que nos oferecem, e assim poderemos enxergá-los como realmente são.

A pisque humana não foi projetada para ser autossuficiente; ela foi projetada para refletir, e conformar-se, à luz do Espírito. Se ela não conscientemente conformar-se ao chamado do Espírito, ela será tomada pela matéria, por um materialismo frio e por um peso de chumbo que destrói todas as esperanças. E nós geralmente não estamos dispostos a sacrificar nosso apego ao nível psíquico até que tal peso de chumbo ameace transformar nossa alma em um sepulcro preenchido por morte e corrupção.

A psique não "quer" que sejamos conscientes desse peso e paralisia, mesmo se já estivermos imersos nele; é por isso que a psique segrega vários glamoures ilusórios, de modo a esconder de nós a nossa condição real, e é por isso a psique coletiva (com ajuda dos engenheiros sociais) cria sua fantástica "cultura de entretenimento" preenchido com "armas de distração em massa". O glamour psíquico nem sempre é totalmente ilusório, no entanto; às vezes participa de vidya-maya ("sabedoria-aparência"), bem como avidya-maya ("ignorância-aparência") -  quero dizer que as realidades físicas e sociais, bem como as espirituais, às vezes, inicialmente, aparecem para nós em uma forma simbólica dramatizada no palco da psique; se não fosse assim, não poderíamos obter qualquer insight psicológico ou metafísico de sonhos. Mas, assim como o alcoólatra só aumenta sua secura por beber, da mesma maneira aquele que sobre o glamour da psique permanece por mais tempo que o designado encontrará só chumbo e cinzas de chumbo.

De acordo com um provérbio dos alquimistas, citado aqui na versão de William Blake, "tudo o que pode ser destruído deve ser destruído!". O glamour psíquico é um tipo de hemorragia, como aquela produzida por álcool ou cocaína ou drogas psicodélicas. Achamos que estamos no meio de toda a riqueza da vida, então despertamos e encontrar-nos deitado em uma poça de nosso próprio sangue. Este tipo de hemorragia, se sobrevivermos, pode (se Deus quiser) agir para queimar e esgotar nosso apego ao glamour psíquico. Se assim for, será sucedido por uma verdadeira mortificação, uma verdadeira melanose, em que, sem dúvida, perdemos nossa vida, mas perdemos por amor a Ele. (A representação estritamente precisa e cinematográfica do estágio da melanose - bem como a leucose e talvez o início de iosis - pode ser encontrada no filme de Robert Duvall, Tender Mercies.)

Uma das primeiras etapas do processo alquímico, então, é queimar tudo que é combustível, reduzir tudo que pudermos - tudo aquilo que não está ligado aos Princípios eternos, aquilo que está envolvido com o ego, e, portanto, intrinsecamente mortal - a cinzas, nas famosas palavras do poeta e padre John Donne: "Morte, morrerás!". O fogo é o fogo do Espírito, e as cinzas - a substancia que foi despojada de tudo que é limitada no tempo, contingente e perecível - são a matéria prima, que em um nível não é nada menos do que o polo passivo da Natureza Divina, a Substancia imperecível de Deus que está eternamente formada e impressa pelo eterno Ato de Deus. (A descoberta da substancia divina é a leucose; a formação e a imprimação dessa Substancia pelo Ato Divino, iosis). Nascemos com milhões de tendências psíquicas herdadas, apenas algumas podem ser trazidas para o campo magnético do Espírito por um esforço consciente. O resto, aquelas que são centrífugas em vez de centrípetas, aquelas que querem se dissipar em fuga de Deus em vez de retornar a sua Origem, deve ser queimado no fogo de suas próprias paixões (que é a face escura e secreta do Espírito) até que tudo seja reduzido a cinzas.

O tempo de cinzas é o tempo de mortificação da própria vontade, o estágio que São João da Cruz chamou de "a noite escura da alma". Pode parecer, de certa forma, como uma depressão clínica, ou até mesmo acompanhado por uma depressão, mas os dois não são a mesma coisa. Em uma depressão nos odiamos nós mesmos, lutamos contra nós mesmos; não podemos evitar que nossos conflitos psíquicos não resolvidos sobrecarreguem e nos deixe amargurado. A noite escura da alma, por outro lado, acontece somente com aqueles que estão em um Caminho espiritual sério. O consolo espiritual, a doçura e a luz dos estágios anteriores do Caminho simplesmente desaparecem. Nenhuma de nossas orações ou práticas meditativas "funcionam" mais, e nós ficamos cara-a-cara com um grande vazio. De forma secundária, nós podemos ficar deprimidos após encontrar este vazio, mas isso não é bem a mesma coisa. A depressão clínica ocorre inteiramente dentro do corpo e da psique. De certa forma, pode ser ainda mais física que psíquica, já que a depressão vegetativa (quando não surge principalmente de alguma doença orgânica), embora possa ser acompanhada por sentimento de tristeza (ou raiva ou medo) não é em si mesmo uma emoção, mas sim - como pânico - uma estratégia psicofísica para evitar a emoção. (A medicina tradicional chinesa vê tanto a depressão como a raiva como relacionadas com o fígado, o que parece confirmar a intuição de Freud de que a depressão é raiva introvertida, uma raiva que voltou-se contra si, isso também explica por que ervas como a de São João, e possivelmente o cardo de leite, são eficazes contra a depressão, uma vez que eles desintoxicam o fígado. E um particular exercício ikons, onde a mão direita "varre" sobre o coração e o fígado, prescrito para depressão). A noite escura da alma, por outro lado, é o momento em que a luz do Espírito é retirada da psique, a fim de que nos leve da psique ao Espírito.

E, no entanto, os dois estão relacionados. Na noite escura da alma nós perdemos completamente o poder de dirigir nossa vida espiritual. Em uma depressão somos ameaçados com a perda da capacidade de liderar nossas próprias vidas na direção que queremos, mas ainda se luta (muitas vezes em um nível profundamente inconsciente) para obter essa capacidade de volta, caso contrário, não estaríamos deprimidos; a raiva que geralmente subjacente a depressão é uma expressão desse esforço frustrado, que é baseado na falta de uma verdadeira submissão a Deus. Se nós estivermos sinceramente tentando levar nossas vidas diárias como um caminho espiritual, uma depressão pode apresentar-nos como uma oportunidade de entrar naquela noite escura: se Deus toma nosso casaco, podemos decidir deixar de lutar para obtê-lo de volta, e dar-Lhe nossa camisa também.

De acordo com a antropologia pneumática tradicional, a alma é composta principalmente de intelecto e vontade ("intelecto" aqui se referindo a razão ou dianoia, a faculdade racional, e não para o Nous ou Intelectus - a capacidade de perceber a Verdade diretamente assim como os olhos percebem a luz - uma faculdade do Espírito), e a raiz da vida espiritual é a mortificação da vontade. (De acordo com essa perspectiva particular, os afetos são considerados um aspecto ou uma "disposição" da vontade). Antes que o processo de mortificação ocorra, antes de aprendermos a dizer "não a minha vontade, mas a Tua seja feita", nosso intelecto será natural, puramente psíquico, baseado somente nas habilidades que nasceram conosco e aquelas adquiridas, impressões e conhecimentos. Entregar-se ao glamour psíquico é meramente uma manifestação desse intelecto natural. Mas quando submetemos nossa vontade à Vontade de Deus, nosso intelecto muda. Nosso brilho superficial pode ser mortificado; podemos sentir como se tivéssemos nos tornando velhos, aborrecidos e estúpidos. O pensamento, o sentimento, a intuição, a sensibilidade, a imaginação, a memória - todas essas faculdades da alma são escurecidas. E o que emerge dessa escuridão não é mais o que se costumava chamar-se de "meu". Se houver luz, já não é nossa luz. Se houver amor e conhecimento, não é mais nosso amor e nosso conhecimento; mas (como os Sufis dizem), Deus ama Deus, e Deus conhece Deus, em nós; nossa única responsabilidade é sair do Caminho. A razão/dianoia deu lugar ao Nous/Intelectus.


Nem o mercúrio, nem cobre, nem ferro, nem estanho, nem mesmo prata - metais que representam vários poderes e disposições psíquicas - podem funcionar como a raiz da metanóia alquímica. Somente se primeiramente formos reduzidos ao chumbo, através da melanose, através de uma mortificação radical, nossa alma poderá ser transmutada (via a prata receptiva da leucose) para o ouro alquímico.


Trecho do livro The Science of the Greater Jihad: Essays in Principial Psychology por Charles Upton