domingo, 23 de agosto de 2015

A Justiça Original é a Verdade (Por Jean Borella)


O homem moderno espontaneamente pensa no pecado de forma subjetiva e perde completamente de vista o lado objetivo. Esse erro prejudica toda a sua vida espiritual e moral, e todas suas formas de pensar sobre o pecado original e a redenção. Mas, na realidade, a justiça é definida como ordem e o pecado original como desordem. Essa doutrina é objetiva porque se encontra dentro da natureza das coisas. A justiça original é ordem, e ordem é a harmonia hierárquica refletindo e atualizando a unidade na multiplicidade. Justiça é, de fato, a qualidade do que é justo. A justiça marca a relação entre as coisas, pois o que é justo se apresenta como uma coisa em relação com outra em conformidade com suas respectivas naturezas e, portanto, em conformidade com o direito que elas têm de atualizar estas naturezas. Um relacionamento justo torna possível uma realidade ser o que ela é. Esta possibilidade não está realizada ipso facto no mundo das coisas criadas, e isto, por duas razões: em primeiro lugar, nenhuma realidade é, no seu próprio ser, idêntico a sua natureza, mas, ao contrário, encontra-se sujeita ao devir; segundo, o mundo estando completo, a atualização de uma natureza particular colidirá com as atualizações de todas outras naturezas. Se a primeira razão estabelece o direito de um ser criado ser o que deveria ser por sua natureza, o segundo estabelece a ideia de hierarquia. Considerado em si mesmo, um direito é sempre absoluto e, portanto, exclui todos os outros. Mas é impossível traduzir esse absolutismo em igualdade e dizer que, uma vez que todos os direitos são absolutos, todos eles são iguais, pois igualdades destrói os direitos. Este direito é, em verdade, o direito de uma natureza ser o que ela é. A igualdade é realiza somente no plano puramente quantitativo de unidades numéricas (1=1); assim, sob essa tendência, tudo tende a uma justaposição numérica, que só é possível através da destruição de todas as diferenças qualitativas que especificamente compõem essas naturezas, de modo que, com a igualdade, o direito se torna o direito para o nada. Assim, para preservar este direito (esse ser absoluto incapaz de expressar-se através de uma justaposição igualitária), resta apenas um posicionamento hierárquico, no qual, aquele direito, renunciando ser absoluto, consente com sua própria relatividade, em outras palavras: um posicionamento onde um direito pode ter mais direito a alguma coisa que outro. Mas, para essa renúncia não ser apenas resignação e compromisso, ela tem que ser baseada em algo além de restrição. Por outro lado, para que haja uma subordinação hierárquica, é necessário um princípio de hierarquização que regulamenta a subordinação das naturezas por seu grau de proximidade com o Princípio. Estas duas exigências são satisfeitas em uma operação única e singular: a submissão da criatura ao Criador, do relativo ao Absoluto. Todos os direitos são estabelecidos com a renúncia de seu caráter absoluto em face dos direitos do Absoluto, e é através desta obediência por si só que esses direitos são estabelecidos. Por este ato de submissão, todas as naturezas têm acesso a uma igualdade formal e qualitativa, não horizontalmente entre si, mas verticalmente com respeito a Deus. Referindo-se a esse critério absoluto, cada um é visto - simultaneamente - em sua própria verdade, que define sua posição hierárquica. A justiça consiste, então, na submissão do menor ao maior, porque essa submissão está em conformidade com a verdade ontológica. Mas, sendo uma submissão, trata-se de um ato de vontade; pois, mesmo se por definição o intelecto é sujeito à verdade, ele ainda é impotente para levar-se à submissão, que é uma operação própria da vontade. O intelecto não obedece; é em si mesmo obediência. Mas a vontade obedece, no sentido ativo do verbo, porque pode sempre recusar-se a ser submisso à verdade percebida pelo intelecto. Portanto, se a vontade obedece, e uma vez que isso não ocorre apenas por estar simplesmente ciente da natureza das coisas, isso deve ser um efeito da Graça Divina. A harmonia hierárquica, que dá definição à justiça, é de fato, baseada na natureza das coisas, mas para que possa ser atualizada pela vontade, é necessário o poder da graça. Assim, a justiça é o efeito da verdade, mas também é o efeito da graça sobrenatural.


Ordem e Ordenação

A matéria também pode ser expressada da seguinte maneira: através do Verbo, o ser criado recebe uma forma (ou uma essência ou logos). Esta forma determina a existência do ser criado e sua situação hierárquica na ordem cósmica. Para determinar a natureza de uma coisa, sua "coisidade", o que ela é, é também determinar tudo que ela não é e, portanto, é também atribuir a coisa sua posição entre todas as criaturas, pois sua natureza não é a única natureza - a possibilidade (natureza) não é esgotada por si só. Também não é completamente separada de todas as outras possibilidades (naturezas), se assim fosse seria como não-existente para o resto da criação e vice-versa. Por ser o que é (determinação cardinal) a criatura também é um elemento da ordem universal (determinação ordinal). Assim, uma nota musical, por ser ela mesma, isto é, tal ou qual nota específica, define simultaneamente seu lugar dentro da oitava. Por sua própria natureza a criatura é um nexo de relações implicando o universo inteiro. E é por isso que é correto apropriar essa função de relação ontológica ao Logos. Sem dúvida, essa doutrina de uma determinação dual - cardinal e ordinal - pede para que vemos a criatura em uma totalidade harmoniosa, uma hierarquia cósmica em que cada coisa tem sua razão de ser e ocupa uma posição adequada à sua natureza. Indubitavelmente, há também como consequência da doutrina da correspondência universal, a doutrina da criação corpórea, anímica e angélica, que define, para o homem, os três graus básicos da realidade cósmica, que são como as diversas reverberações do Único Logos. Assim, a doutrina da correspondência universal é só outra maneira de expressar a unidade da criação na multiplicidade dos seus aspectos e, portanto, a própria noção de hierarquia cósmica. Mas é claro que essas noções são, na verdade, inseparáveis da noção de criação, e que, na Bíblia, a beleza e a bondade do universo não representa temas poéticos, mas axiomas metafísicos. Aqui, de forma brevemente resumida, está aquilo que São Tomás chama de o "trabalho de distinção do Verbo".

No entanto, um ser criado não possui sua natureza em acto abinitio (desde o começo); ele realiza por passar (relativamente) de potência ao ato. Neste sentido, dessa forma é fornecido o fim para o qual foi criado, um fim que não pode ser alcançado por nenhuma outra criatura. Mas a organização deste fim está vinculada ao trabalho ordenador do Espírito Santo. É ele, o viniculum perfectionis, o "vínculo da perfeição", que atualiza e aperfeiçoa as criaturas enquanto ordena elas para seu fim. Tal é a condição de toda criatura que pode cumprir seu fim próprio, e portanto, para realizar sua própria natureza, somente entregando-se para outra criatura. Somente através da alteridade é que ela pode descobrir sua própria identidade. E da mesma forma, todas as criaturas realizam-se entregando-se para a criação, enquanto toda criação realiza-se entregando-se a Deus. Pois o fim tudo é verdadeiramente interminável, infinito; caso contrário, uma criatura realizar seu fim significaria simplesmente sua destruição e sua aniquilação. Assim vemos que os dois significados do "fim", fim/aniquilação e fim/perfeição, são dois aspectos de uma mesma realização: "Se o grão de trigo não morrer, não terá frutos." O fim como morte é o mesmo que o fim como cumprimento. Assim, as raízes da árvore chegam ao tronco que contém seiva, encontrando o seu cumprimento nele; o tronco faz o mesmo para os ramos e os ramos para as folhas, flores e frutos. A fruta somente tem seu fim na continuidade da espécie, mas a espécie não é um fim em si mesmo - ela manifesta um aspecto da Beleza Divina, e, através dela, encarna um arquétipo da Verdade Eterna que nos instrui. Então, através do ministério do espírito contemplativo, a própria espécie se torna consciente, pois a consciência, a chaminé cósmica que arde no coração da árvore da criação e que carrega as chamas até ao céu, é a raison-d’être dos estados considerados. 

Certamente o Amor ordena tudo para todo o resto. Se o Verbo é a ordem, o Espírito Santo é a ordenação, Aquele que anima e revela a interseção universal das determinações cardinais e ordinais. Desta forma, vislumbramos a metafísica da caridade em toda sua unidade. De acordo com a ordem da caridade fraterna, o Espírito Santo é o animador e revelador da proximidade ontológica, que deve estar relacionado com o Verbo; de acordo com a ordem da Caridade Divina, podemos vê-lo através de sua função de maternidade hipostática, revelador do Logos; agora podemos vê-lo como animador e revelador do "verbo" das criaturas em sua função como caridade cósmica - a obra da criação exige a concordância das "duas mãos de Deus", o Verbo e o Espírito Santo. Se uma realidade papável pode simbolizar uma realidade inteligível, é em virtude de uma correspondência ontológica, o trabalho do Verbo Divino. Mas é o trabalho da Terceira Pessoa definir realidades palpáveis e inteligíveis em correspondência, trazer o símbolo ao simbolizado (isto é, o próprio símbolo em sua função ordenadora de relacionar um com o outro). A criação prossegue, assim, como uma partitura musical: as notas são compostas pelo Logos, mas é o Espírito Santo quem canta.


Jean Borella em The Secret of the Christian Way: A Contemplative Ascent Through the Writings of Jean Borella

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