sexta-feira, 29 de maio de 2015

Liberdade Legionária (Por Mircea Eliade)


Há um aspecto do Movimento Legionário que ainda não foi suficiente explorado: a liberdade do indivíduo. Sendo primariamente um movimento espiritual - interessado na criação de um Novo Homem e a salvação de nosso povo - a Legião não pode crescer e não poderia ter amadurecido sem valorizar a liberdade do indivíduo; a liberdade, sobre a qual muitos livros foram escritos, que empilham nas bibliotecas, em defesa da qual muito discursos democráticos têm sido realizados, sem que seja realmente vivida e estimada.


As pessoas que falam de liberdade e se declaram dispostos a morrer por isso são aquelas que acreditam em dogmas materialistas, em fatalidades: classes sociais, guerra de classes, o primado da economia, etc. É estranho, no mínimo, ouvir uma pessoa que não acredita em Deus lutar pela "liberdade", ou aquela que não acredita na primazia do espírito ou na vida após a morte. Tal pessoa, quando falam de boa-fé, mistura "liberdade" com libertarianismo e anarquia. Só se pode falar de liberdade na vida espiritual. Aqueles que negam o espírito em sua primazia, automaticamente caem no determinismo mecanicista (Marxismo) e na irresponsabilidade. 


As pessoas se unem de acordo ou com o hedonismo ou por um destino econômico familiar. Sou camarada de X por que ele é meu parente, ou colega de trabalho, e, portanto, companheiros de pagamento. As conexões entre as pessoas são quase sempre involuntárias, são dados naturais. Eu não posso mudar meu destino familiar. E com relação ao destino econômico, independentemente de quão esforço eu fizer, no máximo, poderia mudar meus companheiros de pagamento - mas sempre me encontrarei, a contragosto, em solidariedade para com certas pessoas que eu não sei se estou ligado pelo fato de ser pobre ou rico.


Há, no entanto, movimentos espirituais em que as pessoas estão ligadas pela liberdade. As pessoas estão livres para aderir essa família espiritual. Nenhuma determinação exterior obriga-os em tornar-se irmãos. Tempos atrás, quando ainda estava se expandindo e convertendo, o Cristianismo era um movimento espiritual em que as pessoas se juntavam por um desejo comum: espiritualizar sua vida e vencer a morte. Ninguém forçava um pagão se tornar um Cristão. Pelo contrário, o Estado, por um lado, e seu instinto de conservação, por outro, inquietamente levantou obstáculos à conversão Cristã.
Mas, mesmo diante de tais obstáculos, a sede de ser livre, de forjar seu próprio destino, de derrotar determinações biológicas e econômicas era muito mais forte. As pessoas se juntavam ao Cristianismo, sabendo que se tornariam pobres do dia para noite, que deixariam suas famílias ainda pagãs para trás, que poderiam ser condenados à prisão perpétua, ou até mesmo enfrentar a morte mais cruel - a morte de um mártir.


Sendo um movimento profundamente. Cristão, justificando sua doutrina no nível espiritual acima de tudo - o legionarismo incentiva e é construído em cima da liberdade. Você adere o legionarismo porque você é livre, porque você decidiu superar os círculos de ferro do determinismo biológico (medo da morte, sofrimento, etc) e do determinismo econômico (medo de ficar desabrigado). O primeiro gesto que um legionário mostrará é nascido de uma liberdade total: ele se atreve a libertar-se da escravidão espiritual, biológica e econômica. Nenhum determinismo pode influenciá-lo. No momento em que ele decide ser livre é o momento em que todos medos e complexos de inferioridade instantaneamente desaparecem. Aquele que entra na Legião veste sempre a camisa da morte. Isso significa que o legionário se sente tão livre que até mesmo a morte não o assusta. Se o legionário nutre um espírito de sacrifício com paixão, e se ele for capaz de fazer sacrifícios - culminando em morte, como Mota e Marin - estes testemunham a liberdade ilimitada que o legionário ganhou. 'Aquele que sabe como morrer nunca será um escravo'. E isso não diz respeito unicamente a escravidão étnica ou política - mas primeiramente, a escravidão espiritual. Se você está pronto para morrer, nenhum medo, fraqueza, ou timidez pode escravizá-lo. Fazer as pazes com a morte é a maior liberdade que um homem pode receber nesta Terra.

 Texto da publicação Romena Iconar, 5 March 1937.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

O Logos e Metafísica: Palestra sobre Solovyov, Empirismo e Espinosa

A ciência moderna se orgulha do empirismo, a ideia de que é preciso experimento e observação como base de suas operações. Muitas vezes, é difícil perceber o quão isso é verdade, já que a ciência não lida com observação ou seja, com as coisas que são observáveis, mas precisamente de coisas que não são observáveis: conceitos, abstrações e forças. No entanto, o mito da ciência moderna é que ela é racional porque se aproxima das coisas através do experimento. A realidade é que ela é um empreendimento puramente racionalista, utilizando como suas unidades de análise teórica princípios e objetos.
O empirismo é o mais fraco e mais irracional de todas as formas de conhecimento. A existência do observável pode ser atacada por dois pontos:

Em primeiro lugar, que a realidade do mundo exterior não pode ser provada - deve ser tomado com base na fé e somente pela fé. O que nós estamos cientes são apenas impressões sensoriais, o que em si são redutíveis apenas para estados psíquicos, em outras palavras, tudo o que podemos conhecer são estados de nossa própria mente. Chamar isso de "impressões sensoriais do mundo exterior" não provam a existência de coisas fora de nossa mente. Portanto, o empirismo se limita apenas a estados mentais, e não a observações do mundo exterior. Os dados provenientes dos sentidos não provam a existência do mundo exterior, somente prova que nossos sentidos registram certos sons e cores.
Isso também sugere uma outra crítica comum, a da fenomenologia de observação. Todas observações tem um contexto, e por conseguinte, é condicionado por este contexto. As coisas que tomamos como importante ou significativas pode ser ditada pelos nossos estados mentais, que está nos dando pressão social ou normas básicas (e inconscientes) culturais e sociais.

Em segundo lugar, que o objeto em si não está presente em qualquer forma metafísica defensável. O que está presente são forças e energia, a energia de tipo elétrico ou magnético, embora isso até mesmo implique em um posterior substrato não-material. Os observáveis são imediatamente reduzidos a partículas de força; forças que somente seus efeitos podem ser sentidos. Se eu sou um empirista e vejo uma árvore, o que eu vejo só existe em minha mente: são meus sentidos que fizeram aparecer o marrom e o verde das forças elementares da árvore, as energias que são interpretadas por minha mente como cores ou texturas. Quando vejo um objeto e chamo de "coisa", estou me comportando arbitrariamente - chamando o objeto de "único", quando na verdade qualquer objeto imediatamente observável na natureza é uma coleção de milhões de pulsos de forças e energias, em verdade milhões de coisas ao invés de uma única coisa.

O empirismo não é empirismo em tudo - é uma abordagem arbitrária ao mundo que toma as interpretações do mundo exterior como prova de sua existência, ainda que essa existência só exista por fé ou pior, por utilidade - sabemos que algo é verdadeiro porque "funciona", o que normalmente significa que ele pode ser transformado em algum lucro. Mas isso está muito longe das reivindicações da ciência moderna.

O empirismo somente conhece estados internos, psíquicos e nada mais. Não é uma forma de conhecimento, e conduz uma abordagem extremamente superficial do mundo, justificado apenas pela base mais utilitarista. Portanto, até mesmo a energia em si, que afeta o que sentimos em cores, etc deve ser ainda mais reduzida, uma vez que, em alguns casos, nós podemos ver e tocar nas forças e energias, e senti-las trabalhando em nós mesmos de inúmeras maneiras. Por conseguinte, deve-se manter a doutrina das essências, ou forças elementares que não podem ser vistas ou ouvidas, ou sentidas de qualquer forma, pois, se fosse possível ser sentidas, elas cairiam nos problemas a ou b mencionados. Todos os observáveis devem ser reduzidos aquilo que não pode ser observado, a fim de dar sentido a eles. Platão estava correto a este respeito, assim como Agostinho, Espinosa, Skovoroda e Russell. A verdadeira natureza e fundamento da realidade é, portanto, espiritual. Qualquer outra coisa cai sob contradição, um ponto levantado por Fichte e Hegel.

Solovyov, em sua IV Palestra sobre Divina Humanidade, sustenta que essas forças são basicamente monádicas, atuando como energias elementares além das forças observáveis. Elas são imutáveis e são a fonte de todo o ser - além do espaço e tempo. Elas existem como entidades elementares que, por definição, não podem ser vistas ou ouvidas, mas sabemos quais são seus efeitos sempre que sentimos qualquer coisa. Trata-se de outra interpretação das formas Platônicas, ou essências espirituais de todas as coisas existentes.


Para Espinosa, o conceito de numerosas categorias de formas era excessivo, e que o ser fundamental era o próprio Ser, não observável, não energia, mas Deus. Identificar o Deus no sentido de Espinosa com "natureza" é o máximo de vulgaridade - o establishment acadêmico moderno detém precisamente aquilo que querem acreditar, eles querem justificar o materialismo e, portanto, interpretar a história da filosofia como uma longa marcha para vulgaridade moderna e suas próprias carreiras. Espinosa não era um panteísta, mas um platônico que detinha, em primeiro lugar, que o Ser é não-observável, fora do espaço e tempo, e o início de todo o Ser, seu domínio e seu fundamento. Não era ser, mas Ser, e, portanto, a combinação de todas formas platônicas que Espinosa chamou de Substância.

Espinosa considerou que o Ser era imanente nas coisas, mas isso não é diferente de Solovyov. Imanetizar as formas não é cair no Aristotelismo ou outra forma de empirismo, mas simplesmente fazer uma economia mais limpa da metafísica. Onde está Deus? Acima? Claro que não. Deus é imanente em Sua criação, embora não idêntico a ela, os modos são manifestações da Substância e não idêntico as Substâncias, eles são apenas aparências. Deus existe aqui mesmo em nós, mas em uma dimensão da realidade fora do espaço e tempo, além da capacidade dos sentidos de todos, menos dos ascetas mais puros e algumas crianças (como uma nota aparte, eu acredito, assim como Dostoievski, que as crianças, devido à sua inocência, foram dadas o dom de ver além do que existe no espaço e tempo, e que muitas das crianças vivem pelo menos parcialmente no Éden).

O ponto é, se estamos lidando com Espinosa ou Skovoroda, estamos lidando com o melhor da metafísica, uma vez que estamos lidando com uma Substância singular, que faz o sentido das formas platônicas. De certa forma, o "limite" de Filiebo de Platão é, de fato, os atributos e modos de Espinosa, enquanto o Ilimitado, é a substância, o substrato imaterial de ambos Espinosa e Skovoroda. É aquilo que deve existir para explicar qualquer Ser. É a fundação de todas as ciências.
O Logos é a interligação de forças que não são materiais, mas, pela natureza da realidade, são puramente espirituais. A matéria é o mito do homem moderno, o Deus dos evolucionistas, que sustentam que a matéria é eterna e capaz de produzir todas as cosias, inclusive o próprio Deus. Segundo a mitologia evolucionista, a matéria é deus, eterna e sempre presente, capaz de produzir qualquer coisa, tudo a partir de si mesmo, todo-poderoso. Isso está na raiz do gnosticismo contemporâneo, da maçonaria e da ciência moderna - que deus é matéria morta, e matéria morta pode dar a vida.

Não se pode provar a existência da matéria - ela existe porque as forças externas à pessoa são interpretadas pelos sentidos como tendo solidez, textura, etc mas toda essa solidez não existe, apenas existe um redemoinho constante de elétrons. Tudo é energia, mas essa energia em si deriva de uma causa não material, uma vez que a energia, na medida em que pode ser sentida, também é apenas uma questão de interpretação de nossos estados internos. Toda realidade deve ser espírito e imutável, a matéria é apenas o estado psíquico do observador. Qualquer outra coisa que não seja espírito só existe na mente, e, portanto, a matéria não pode ser comprovada. No máximo, podemos dizer como Skovoroda, que a matéria é, em verdade, a mera qualidade de aparecer.

As ideias de Platão e a Substância de Espinosa existem porque não há provas que da realidade obtidos pelos dados dos sentidos, portanto, o verdadeiro ser deve existir fora das impressões sensoriais do "mundo exterior", e, portanto, são de natureza espiritual, existindo fora do espaço e tempo. O que sabemos ser real é a energia, mas a própria energia, na medida em que faz nossos estados interiores dos sentidos, deve também ser ainda mais reduzida. Pode ser reduzida apenas para aquilo que não pode ser visto, as ideias, ou forças elementais, aquilo que está por trás das próprias forças e energias, e que as animam. Solovyov afirma que, uma vez que os dados obtidos pelos sentidos são múltiplos, tem-se que as formas que os criaram também devem ser assim. Esta é uma afirmação razoável, mas Espinosa parece ser mais econômico ao considerar que a força além da força se manifesta em diferentes maneiras, das quais algumas podemos ter conhecimento, ou seja, aquelas relativas aos modos de pensamento e extensão.

A compreensão histórica do asceticismo foi aquela de permitir ao asceta ver além dos dois modos da Substância de Espinosa (extensão e pensamento), as duas únicas dimensões de existência abertas a vida normal dos sentidos, derivando da Substância não-sensorial. Mas o asceticismo, no processo de limpeza e no afiar dos sentidos, se livrando dos desligamentos da vida adulta - maus hábitos e orgulho - abre novos horizontes, novos elementos do Logos/Substância que existem, assim que os santos e as crianças conseguem ver coisas que pessoas ordinárias não podem. Em minha opinião, os "amigos imaginários" das crianças pequenas são substâncias angélicas que só podem ser vistas pelos inocentes, explicado por adultos alienados que só podem ver o que existe para seu benefício e aquilo que apoia seu ego. Foram esses adultos que criaram nossas ciências filosóficas modernas.

A substância é a existência infinita, como o Logos é, e, portanto, o potencial de forças existindo ao mesmo tempo são igualmente infinitas. O que está disponível para o homem médio é apenas os sentidos e a razão - o que está disponível para o asceta e as crianças é uma variedade das dimensões da realidade além daquelas; os primórdios da plenitude da compreensão quando todos os elementos infinitos são relevados aos que foram chamados para serem perfeitos. Mas, mesmo no céu, o reino da forma (que é a infinita dimensionalidade deste mundo), toda infinidade não é revelada, e o processo de aprofundamento do nosso conhecimento da realidade continua após a morte, com ajuda do Logos cuja infinidade é expressada. Tenha em mente que essas forças, ou modos de Espinosa, não são abstrações: elas são inerentes ao sensível e são as causas da aparência do sensível à consciência. Em outras palavras, o empirista abstrai e o conceito abstrato significa menos e menos assim que os traços são sistematicamente removidos. Aqui, estamos lidando com um processo diferente - uma vez que a força é inerente à coisa, e não é uma abstração, mas uma coisa espiritual (cf. Solovyov, Palestra V, 59, onde ele discorda Espinosa).

No entanto, Solovyov, em sua Quarta Palestra parece chegar muito próximo a ideia de Substancia de Espinosa quando ele escreve "... a relação essencial entre ideias é semelhante a relação lógico-formal entre diferentes conceitos. Em ambos casos, há uma relação de maior ou menor generalidade da amplitude. Se as ideias de várias entidades se relacionam com a ideia de uma única entidade como conceitos específicos se relacionam ao conceito genérico, esta última entidade abrange todas as outras; ela os contém em si. Diferentes entre si [Solovyov aqui está falando de formas/forças], elas são iguais em relação ao conceito genérico que é o seu centro comum e que igualmente preenche elas com sua ideia." (Palestra IV, 53).


Esta não é apenas uma abordagem básica a Substância de Espinosa (que também existe fora do tempo e espaço), mas é uma excelente exposição da doutrina do Logos usando uma linguagem lógica moderna. Solovyov continua, "Essa aparece como um complexo organismo de entidades. Vários desses organismos encontram seu centro em outra entidade com uma ideia ainda mais geral, ou mais ampla, e, assim, torna-se partes ou órgãos, de um novo organismo de uma ordem superior, que responde ou cobre a si mesmo com todos os organismos inferiores relativos a ele. Assim, gradualmente ascendendo, nós chegamos na ideia mais geral e mais ampla, que deve, interiormente, cobrir a si mesmo com todas outras. Essa é a ideia da bondade absoluta, ou mais precisamente, o amor absoluto" (ibid). Essa é a doutrina do Logos, considerada cientificamente. Ciência, mecanismo e materialismo, se consistente, deve dar lugar ao Logos, ou a Ideia (por assim dizer) por trás das forças que, por sua vez, compõe nosso universo sensorial em sua relativa irrealidade.

Por isso, como Solovyov diz na Palestra V, há três coisas que a metafísica não pode ignorar se quiser fazer sentido em si mesma: a força, a representação que ela cria em nossa mente, e a Ideia que todas as forças fazem, o Logos, o centro de todas as forças suprassensíveis e o movimento e o conteúdo de todas as forças, em última instância. Assim como Solovyov usa "força", e Platão usa "forma", os modos de Espinosa são duas formas sob as quais a energia pode ser concebida pela o ser pensante médio. Existe pensamento e extensão e somente esses dois, que são as únicas formas pelas quais a Substância se revela para aqueles que ainda não estão no caminho ascético.

Elas são coleções das "forças" de Solovyov, mas reduzidos a sua singularidade, modos genéricos de pensamento e extensão. Naturalmente, a substância é a mais elevada de todas as entidades, e é semelhante à doutrina do Logos e é provável que isto tenha removido Espinosa de sua sinagoga em Amsterdam. Espinosa diria que Aristóteles foi arbitrário quando assumiu os observáveis como possuindo essência, uma vez que, para além das objeções acima, os objetos são interligados em sistemas irredutíveis de energia e força, portanto, a natureza do cosmos é um sistema de sistemas, um sistema de forças que deve ter uma fundação super-sensível. Tomar um observável isolado e fazer dele sujeito de uma essência é arbitrário por esta razão e assim se cai na mesma armadilha como os empiristas mais radicais e reducionistas acima. Assim, para ser consistente, há apenas uma única substância, que contém todos os sistemas em conjunto, essa é energia, e o substrato dessa energia é o Logos. A Substância é energia rarefeita (por assim dizer) e essa energia deve ter uma fonte, uma que detém todos os sistemas irredutíveis em um sistema mais amplo e mais inclusivo. O Logos é o substrato dessa energia. Mas mesmo essa deve ter uma fonte, eternamente concebida.

Só pode haver um Deus, uma única fonte de energia, ou seja, o Logos, que é o substrato de criação de forças (que é expresso em modos). Espinosa argumenta que, se há duas substâncias, elas podem não ter nada em comum. Uma substância é "aquilo que em si é concebida por si mesmo.". Ou seja, de nada depende, o que está implícito em qualquer definição de Ser (como tal). Não há compreensão de Deus sem o entendimento da distinção entre um objeto que é expresso através de alguma coisa, e um objeto que tem sua existência por si. Isto significa, portanto, que a essência envolve necessariamente existência, isto é, o conceito de um ser existindo através de si, em vez de a partir de outro. Se isso for verdade, então só pode haver uma única substância, o próprio Deus, Aquele que está além de toda energia e é a fonte dela. O Logos é esse substrato, essa energia, passando a existir fora do tempo, eternamente com o Pai.

Uma única substância pode existir, e Espinosa argumenta dessa forma: Todas as coisas que existem, existem a partir de uma causa. Essa razão ou causa deve estar dentro da natureza da coisa ou fora dela. Aquilo que tem sua existência a partir de si mesmo deve necessariamente ser eterno e incriado. Não há nenhuma causa que pode trazer isso, uma vez que ela é a sua própria causa. Então Deus existe necessariamente. Só pode haver Um, já que múltiplas substâncias (que existe por si mesmo) é uma contradição. Mas deve existir um ser como Deus uma vez que a Realidade é composta de pensamentos e objetos sensíveis que concordam com os sensíveis (ou seja, os atributos no sentido de Espinosa), esses são os dois modos, eles mesmos a criação da energia final, Substância. Esta substância é o que constitui o objeto de mudança dos sistemas, seu movimento e a causa do movimento. Um corpo não é Deus, Deus não é um corpo, mas o corpo é a solidificação de luz/energia com o Logos como sua fonte raiz.

Tanto Espinosa como Solovyov estão de acordo em vários pontos: primeiro, que a realidade última, o Amor supremo não é um corpo, está além do espaço e tempo, mas é a unidade espiritual que produz nosso mundo sensível. Este mundo sensível não é o mundo real, mas é relativo às forças que derivam da Substância Última. Embora Espinosa não tenha dado a esse amor uma personalidade, a doutrina do Logos sustenta que é o próprio Cristo, o próprio pensamento do Pai. Estou interpretando Espinosa aqui mantendo três construções da realidade em Solovyov: a representação, o sensível, a força, os modos, e a Substância, ou a unidade final de todos modos, a fonte de toda expressão - o centro espiritual do mundo que não é um corpo e está além do espaço e tempo.

Espinosa não reduz tudo ao Um numa ontologia, mas apenas em causa. Solovyov escreve: "Segue-se diretamente que há uma conexão interna entre todas entidades, em virtude da qual o sistema de entidades é um organismo de ideias" (Palestra V, 57). Este organismo é o que Espinosa entende por Substância. Mas Solovyov vai mais longe, e mantem que a personalidade - a vontade e o amor - é um atributo necessário da Substância, a unidade de todas ideias. O argumento é o seguinte: a substância, ou o Logos, que gera todas as forças na natureza, é auto-suficiente - ela contém todas as forças e todo o ser. Isso faz a Substância diferente ontologicamente, mas também subjetivamente. Solovyov escreve: "Quer dizer, ela deve possuir uma realidade separada de sua própria, ser um centro independente para si mesmo, e, consequentemente, deve possuir auto-consciência e personalidade. Pois, se as ideias diferissem apenas objetivamente, por suas qualidades cognoscíveis, mas não fossem auto-diferenciadas em seu próprio ser, elas só seriam representações para o outro e não seres reais.... Assim o portador de uma ideia, ou a ideia como um sujeito, deve ser uma pessoa. Os dois termos, a pessoa e a ideia, são correlativos como sujeitos e objetos e necessariamente exige um ao outro para a plenitude de sua respectiva atividade." (Palestra V, 64).

Colocando de forma diferente, pode-se imaginar, como Solovyov faz, uma personalidade sem uma ideia, uma perda inútil. Mas igualmente mal é uma ideia sem uma personalidade, uma vez que seria o mal oposto, uma força inerte, conteúdo sem veículo, sem vontade. Por isso, as forças que agem na natureza, em algum nível, devem possuir personalidades, e essa ideia metafísica ajuda a explicar por que as civilizações pelo mundo inteiro acreditam em anjos, ou a ideia de forças naturais, elementos do poder do Logos, como possuidoras de personalidades, vontade, amor, etc. Deus está vivo pela mesma razão que um sujeito precisa de um objeto, como a ideia precisa de uma vontade. Vontade sem uma ideia é uma força cega, ideia sem uma vontade é inerte e estagnada, irreal.

Solovyov quer remover o erro de um cosmo simplesmente idealizado como Platão ou Espinosa fez. Tal universo, "tem um caráter especulativo e artístico, um que é exclusivamente contemplativo, não ativo". Tal princípio divino não tem nada a ver com a vontade neste caso, e, portanto, é basicamente inútil. Mas se as formas tivessem uma vontade, estivessem unificadas no Logos, o Filho, uma pessoal real, então, se sustenta que a vontade subjetiva de uma pessoa humana, relativamente inútil e sem força, deve ter o Logos como seu substituto. O Logos não é apenas um ser, uma pessoa, mas uma coleção de todas forças, todas que compõem o universo. O Logos é tanto pessoa como um conceito, homem e Deus, Logos e uma determinação específica humana (Palestra V, 67). Portanto, a Trindade deve existir, e o logos deve ser duas entidades.

É assim porque o conceito da divindade aqui é aquele do Todo, ou de todas as forças da natureza, assim como um homem determinado, Jesus. Ao mesmo tempo, se pode ter um Todo, como o Logos é, mas o Todo deve ter uma fonte, qualquer sistema, a fim de fazer sentido, deve ter uma fonte singular, isto é, o Pai, para além de todos tempos e rótulos, está além da Substância de Espinosa. Em outras palavras, em toda realidade criada, o número três domina. Primeiro, existe a forma, em seguida, o conteúdo determinado, a matéria. Estes dois correspondem ao Pai e o Filho. O Espírito corresponde à unidade atualizada, o todo, os dois juntos. Mas todas as coisas na natureza são deste tipo: existe uma forma, a própria força, e a matéria, o que ela cria e a sua finalidade. A terceira é a plenitude, o todo como um todo, o Todo atualizado no mundo.


Assim, a trindade, quando considerada de forma racional e cientificamente, é o resultado líquido da rejeição da ingenuidade dos empiristas. Objetos no espaço e no tempo podem ser reduzidos a forças, e estas forças devem estar fora do espaço e do tempo. Essas forças são, coletivamente falando, a expressão do Logos, o conteúdo e a manifestação da mente do Pai. Assim é porque o sistema de forças é por si mesmo irredutível, o sistema deve existir antes das partes (por assim dizer). Assim, o Logos existe antes dos séculos. Espinosa é útil em conceituar isso, mas ele nunca foi além da doutrina do Logos, e nunca considerou o que poderia explicar a Substância.

Texto traduzido de uma palestra por Matthew Raphael Johnson na Universidade Mount St. Mary em  2006  original aqui http://reasonradionetwork.com/20060318/the-logos-and-metaphysics-a-lecture-on-solovyov-empiricism-and-spinoza-2006


quarta-feira, 6 de maio de 2015

Transcendência ascendente, descendente e horizontal (por Aldous Huxley)

Sem uma compreensão da profunda e arraigada necessidade do homem pela autotranscendência, de sua natural relutância a empreender o difícil caminho ascendente, de sua busca de uma liberação espúria por debaixo ou à margem de sua personalidade, não podemos esperar dar sentido a nosso próprio período particular da história ou à história em geral, à vida como foi vivida no passado e como é vivida hoje. Por tal razão, proponho discutir alguns dos substitutos mais comuns da graça, nos quais e por meio dos quais, homens e mulheres trataram de escapar à entristecedora consciência de ser, meramente, eles mesmos. 

Na França há atualmente um varejista de álcool por cada cem habitantes. Nos Estados Unidos há, provavelmente mais de um milhão de alcoólicos desesperados, além de um número muito maior de grandes bebedores cujo mal não chegou ainda a ser mortal. Com respeito ao consumo de bebidas alcoólicas no passado, não temos conhecimentos precisos ou estatísticos. Na Europa ocidental, entre os celtas e os teutônicos, durante a Idade Média e os primeiros tempos da Moderna, o consumo de álcool por indivíduo provavelmente superava ao atual. Nas diversas ocasiões em que nós bebemos chá, café ou refrigerantes, nossos antepassados se refrescavam com vinho, cerveja, hidromel e, nos últimos séculos, com gim, conhaque ou aguardente. A ingestão regular de água era uma penalidade imposta aos malfeitores, ou aceita pelos religiosos, junto com um vegetarianismo ocasional, como severa mortificação. Não beber bebidas alcoólicas era uma excentricidade, suficientemente, notável para provocar comentários e a aplicação de um mote mais ou menos desonroso. Assim nasceram sobrenomes tais como o italiano Bevilacqua, o francês Boileau e o inglês Drinkwater. 

O álcool é só uma das múltiplas drogas empregadas pelo ser humano como válvulas de escape do eu isolado. Dos narcóticos naturais, estimulantes e alucinógenos que nos oferece a natureza, não há um só, acredito, cujas propriedades não tenham sido conhecidas desde tempo imemorial. A investigação moderna nos há provido de diversos produtos sintéticos; mas no que corresponde aos venenos naturais desenvolveu, simplesmente, melhores métodos para extrair, concentrar e recombinar os já conhecidos. Da adormidera ao curare, da coca andina ao haxixe da Índia e o agárico da Sibéria, todas as plantas, arbustos ou cogumelos cujos extratos, uma vez ingeridos produzem estupefação ou excitação, ou provocam visões, são conhecidos desde tempos muito remotos e suas propriedades se aproveitam de modo sistemático. O fato é estranhamente significativo, já que parece provar que, em todo momento e lugar, o ser humano sentiu a radical inadequação de sua existência pessoal, a penúria de ser só seu eu isolado e não um pouco mais amplo, algo «muito mais profundamente consubstanciado», empregando as palavras de Wordsworth. Explorando o mundo do homem primitivo não há dúvida que «fez experiência com todas as coisas a seu alcance e procurou aproveitar aquilo que lhe resultava bom». A efeitos da própria conservação, é bom todo fruto e é boa toda folha comestível, toda semente, toda raiz, toda semente aproveitável. Mas, de outro ponto de vista o do descontentamento de si mesmo e do desejo de autotranscendência, o bom se acha assim que existe na natureza, pois por meio do que for pode ser mudada a condição da consciência própria. Tais mudanças podem obedecer, sem dúvida alguma ao pior; podem alcançar-se ao preço de um mal-estar presente, de um apego ao futuro, uma degradação ou uma morte prematura. 

Tudo isto não pertence ao momento. O que importa é ter consciência, embora não seja mais que uma hora ou duas, embora não seja mais que uns minutos, de ser alguém ou melhor ainda, de ser outro distinto, e não o isolado eu que é a gente mesmo. «Eu vivo, mas não vivo propriamente o eu, a não ser o vinho, o ópio, o haxixe que vivem em mim.» Transcender além dos limites do eu isolado é como uma liberação de tal índole que, até quando se alcança a autotranscendência através da náusea, ou em meio ao frenesi, ou como sujeitos pacientes de cãibras e intumescimentos, ou nas alucinações, as experiências que se realizaram valendo-se de medicamentos ou de drogas foram olhadas sempre, tanto pelos homens primitivos como pelas civilizações mais adiantadas, como intrinsecamente divinas. O êxtase ocasionado por meio da intoxicação é considerado ainda como parte essencial dos fatos religiosos em muitos povos da África, da América do Sul e da Polinésia. Em tempos pretéritos, segundo nos testemunham isso documentos irrefutáveis, também foi considerado o êxtase como coisa fundamental nas religiões dos celtas, dos teutônicos, dos gregos, dos povos do Oriente Médio e dos conquistadores arianos da Índia. Não é simplesmente que «a cerveja tenha maior poder que Milton para justificar os caminhos que levam a Deus». É que a cerveja é o deus. Entre os celtas, Sabazios era o nome divino dado ao espírito de alienação produzido pela bebedeira de cerveja. Muito mais ao sul, Dionisos era, entre outras coisas, a objetivação sobrenatural dos efeitos psicofísicos do excesso de vinho. Na Mitologia Védica, Indra era o deus daquela droga não identificada que leva o nome de Soma. Semideus, destruidor de dragões, foi ele a magnífica projeção ao céu da estranha e gloriosa diversidade experimentada pelo intoxicado. Formando como uma só coisa com a droga, constitui-se, assim que Soma-Indra, na fonte da imortalidade, no mediador entre o humano e o divino. 

Nos tempos modernos a cerveja e os outros tóxicos que predispõem a autotranscendência já não são adorados oficialmente como coisa divina. A teoria sofreu uma mudança. Mas não assim a prática, toda vez que milhões e milhões de homens e mulheres civilizados continuam dando fé de sua devoção, certamente que não ao espírito liberador e transfigurador, mas, mais certamente sim ao álcool, ao haxixe, ao ópio e a todos seus derivados, aos barbitúricos e a quantos aditamentos traz o catálogo de tóxicos da antigüidade, capazes de servir como mediadores para obter a autotranscendência. Em todo caso, o que podia parecer um deus é atualmente um demônio. O que tinha que ser liberação é, com efeito, uma escravidão. A autotranscendência se produz para baixo, em direção ao infra-humano, essa zona que se acha a um nível inferior ao da personalidade. O mesmo que a intoxicação, a sexualidade em si, a sexualidade elementar, divorciada do amor, satisfazia por si mesmo e estava considerada como se se tratasse de um deus; adorada não só como o princípio da fecundidade, mas sim como uma manifestação da radical Diversidade, imanente em cada ser humano. Em teoria, a sexualidade elementar deixou, faz já muito tempo, de ser considerada como um deus; mas na prática ainda pode alardear de contar com umas hostes de inumeráveis sectários que assim a consideram. 


Há uma sexualidade elementar que é inocente e há uma sexualidade elementar que moral e esteticamente é sórdida. D. H. Lawrence tem escrito muito belas páginas a respeito da primeira. Jean Genét falou com tons patéticos e horripilantes da segunda. A sexualidade do paraíso e a sexualidade da rede de esgoto têm tanto uma como outra o poder de arrastar ao indivíduo além dos limites de seu isolado eu. Mas a segunda variedade, a mais corrente, toma àqueles que se deixam apanhar até afundá-los na zona do infra-humano e lhes dá o sentido de uma completa alienação, muito mais intensa que a alienação da primeira. Daí uma permanente atração por parte da luxúria e de seus estranhos equivalentes, tal como foram descritos no curso de nosso relato, para todos os que sentem o apresso de escapar à pressão de sua própria e escravizadora identidade. 

Na maioria das comunidades civilizadas a opinião pública condena a luxúria e o vício das drogas por as considerar como um extravio da moral. E à condenação moral terá que adicionar as sanções econômicas e a proibição por parte das leis. O álcool está loteado, a venda de narcóticos está proibida em todos os países, e certas práticas sexuais se acham qualificadas como delitos. Mas quando passamos dos tomadores de drogas e da sexualidade elementar à terceira das vias principais da autotranscendência descendente, encontramo-nos, por parte dos moralistas e dos legisladores, com uma atitude muito diferente e muito mais benévola, o qual parece surpreendente desde que o delírio da massa, mais imediatamente perigoso para a ordem social que a bebida e a luxúria, mais dramaticamente ameaça essa tênue crosta denominada decoro, moderação e mútua tolerância que constitui a cobertura de uma civilização. É verdade que um hábito de indulgência exagerada para com a sexualidade, generalizado e mantido com o passar do tempo, pode determinar como afirma J. D. Unwin [J. D. Unwin: Sex and Culture, Londres, 1934] uma diminuição da energia vital de toda uma sociedade, incapacitando-a, portanto, para alcançar ou manter um elevado nível de civilidade. De modo semelhante, o vício das drogas, se se vai estendendo e generalizando, pode rebaixar a eficiência militar, econômica e política da sociedade que o padeça. Nos séculos XVII e XVIII foi o álcool em bruto a arma secreta do tráfico de escravos na Europa; no XX a heroína foi para os militaristas japoneses. Bêbado, o negro era uma presa fácil e assim, quão mesmo com respeito aos chineses e o uso das drogas, podia-se confiar, graças ao álcool, em que a gente negra não ocasionasse perturbações a seus exploradores. Mas tudo isso tinha uma importância restringida. Na realidade, teria que pensar que toda sociedade permissiva se entrega, geralmente, à influência de seu veneno favorito. A droga é um parasita que atua no corpo político e social, mas um parasita cujo hóspede - falando metaforicamente - conta com suficiente força e bastante sentido para poder mantê-lo sob seu controle. Estas considerações também se aplicam à sexualidade. Nenhuma sociedade que assente a prática da sexualidade nas teorias do Marquês de Sade chegará a sobreviver; de fato, nenhuma sociedade chegou a pôr em prática teorias semelhantes. Até os mais prazenteiros dos paraísos da Polinésia possuem suas regras e suas ordenações, seus imperativos categóricos e seus mandatos. Contra o abuso da sexualidade, como contra o abuso das drogas, a sociedade se acha em condições de poder proteger-se com probabilidades de êxito. Em troca, sua defesa contra o delírio das massas e as desastrosas consequências que conduz é, na maioria dos casos, muito menos eficaz. Os moralistas profissionais que vozeiam invectivas contra a embriaguez guardam um silêncio muito estranho contra a intoxicação gregária, contra essa forma de autotranscendência para baixo que precipita até o nível do infra-humano, pondo em efervescência à massa. 

«Onde dois ou três se reúnam em meu nome, ali estou Eu em meio deles.» Em meio de duzentos ou trezentos, a presença divina se faz mais problemática. E quando o número alcança o nível dos milhares e de milhões, as probabilidades de achar-se Deus presente entre eles e na consciência de cada um, diminuem a tal ponto que se reduzem a zero. Porque é tal a natureza de uma multidão excitada (e toda multidão tem como condição iniludível a de estar sempre aberta à excitação automática), que ali onde se reúnem dois mil ou três mil indivíduos em massa, ali brilha necessariamente por sua ausência, não só a deidade, mas também a mesma humanidade comum a todos. O fato de pertencer a uma massa humana rouba ao homem a consciência de ser ele seu próprio eu e arrasta a estágios inferiores, às onduras de um reino onde o pessoal não conta, nem sequer existe, onde não existem responsabilidades, onde não existem nem o direito nem a ofensa, onde não há necessidade de um pensamento de discriminação e de julgamento, a não ser somente um intenso e confuso sentido de descomunal gravitação, um maciço interesse de instigar à alienação de rebanho. E essa alienação é, ao mesmo tempo, mais permanente e menos exaustiva que o que produz a luxúria; à manhã seguinte a vítima se acha menos deprimida que se se tivesse entregue ao álcool ou à morfina. Além disso, o frenesi da massa pode ficar satisfeito à margem de toda intenção perversa e até com a lucidez de uma intenção honorável. Porque longe de condenar o afundamento a que se leva às massas por meio de sua alienação, os dirigentes de uma Igreja ou de um Estado aspiraram com vivacidade sua prática sempre e quando pudesse ser aproveitada em benefício de seus próprios fins. Individualmente ou constituídos e disciplinados em agrupamentos, os homens e as mulheres que formam parte de uma sociedade sã, mostram uma grande capacidade de intelectualidade, de julgamento e de discernimento e sabem deixar-se iluminar pela luz dos princípios éticos. Agrupados - pelo contrário - como uma plebe, esses mesmos homens e mulheres se conduzem necessariamente como se não possuíssem faculdade racional nem gozassem de livre-arbítrio. A alienação maciça os reduz a uma condição muito abaixo do nível da pessoa e os afunda na irresponsabilidade anti-social. 

Drogados pela misteriosa peçonha que toda multidão transbordada segrega, caem em um estado de exacerbada sugestibilidade, muito parecido ao que produz uma injeção de sódio amytal ou um confinamento de tipo hipnótico. Em tal estado, não só darão crédito a qualquer disparate que seja propagado mas também estarão dispostos a atuar a partir de uma exortação ou uma ordem, tenham ou não tenham sentido, e por mais perversas e criminosas que sejam. Para os homens e as mulheres que se deixam influir pelo frenesi da massa, «tudo o que eu afirme três vezes é verdadeiro» e todo o eu afirme trezentas é revelação, quer dizer: a palavra diretamente inspirada por Deus. E isto é assim porque os homens que gozam de autoridade - os sacerdotes e os legisladores -, nunca proclamaram que modo inequívoco a imoralidade da marcha descendente no caminho da autotranscendência. Pois o delírio da massa, quando foi suscitado pelos membros da oposição e em nome de uns princípios por outros considerados como heréticos, sempre teve que ser condenado pelos que usufruíam o poder. Em troca, esse mesmo delírio ou frenesi promovido pelas pessoas que governam, em nome do que se afirma como ortodoxia, é missa de outro cantar. Em todo caso, onde os interesses dos homens ficam submetidos ao controle da Igreja e do Estado, a alienação das massas é considerada como recurso legítimo e desejável. Peregrinações e concentrações políticas, restaurações coribânticas e patrióticas paradas, tudo isso é apropriado e moralmente defensável quando se trata de nossas peregrinações, de nossas paradas. O fato real de que a maioria dos que tomam parte nestes atos se desumanizam temporalmente ao afundar-se nessa via, não significa nada, ao que parece, em comparação com o fato de que sua desumanização possa ser dirigida facilmente, com o fim de consolidar o poder religioso ou político que seja. 

Quando a alienação das massas é explorada em benefício dos governos e das igrejas ortodoxas, os exploradores sempre se cuidam de não dar excessivo fôlego a esse delírio coletivo. As minorias moderadas se valem dos desejos de seus submetidos dentro dessa via da autotranscendência descendente para duas coisas: primeiro, para distrai-los e transtorná-los e, segundo, para levá-los a um estado infra-pessoal de excitada sugestibilidade. Os cerimoniais religiosos e políticos são aceitos pelas massas com grande complacência, posto que são propícia oportunidade de afundar-se e embriagar-se em sua alienação, e são, ao mesmo tempo, confeccionados agradando pelos que manipulam às massas, porque lhes oferecem oportunidade, por sua vez, de dirigir a seu desejo o subconsciente de todos aqueles que não são capazes de exercitar sua razão nem são donos de sua vontade. 

O sintoma definitivo da alienação das massas é a violência maníaca. Exemplos da culminação desse delírio, exemplos nos quais pulsa um monstruoso espírito de destruição sem fundamento e que se oferecem em brutais auto-mutilações, em fratricida selvageria sem finalidade alguma e contra todo interesse nacional, são centenas de fatos que podem ilustrar e que ilustram muitas páginas dos manuais de antropologia e, com menos freqüência, mas com lamentável regularidade, as histórias dos povos e até das nações mais civilizadas. A não ser quando se trata de liquidar uma minoria impopular, as representações oficiais da Igreja e do Estado sempre procedem com cautela, pois nunca se sentem seguras de controlar o frenesi que provocam. Um escrúpulo que não se dá nos dirigentes revolucionários que odeiam o statu quo e alimentam só um desejo: criar um caos sobre o qual, quando chegarem ao poder, possam impor uma ordem nova. Quando o revolucionário explora a apetência dos homens a lançar-se a transcendência de seu afundamento, explora-a até os limites do frenético e do demoníaco. Aos homens e às mulheres enfermos do mal de sentirem-se isolados em seu eu e afligidos com as responsabilidades inerentes aos membros de uma sociedade, o revolucionário lhes oferece candentes oportunidades para lançar pela amurada todas essas preocupações com o recurso das paradas, das manifestações e das assembléias. Todos os órgãos do corpo político atuam segundo seus próprios fins. Uma multidão é o equivalente social do câncer. O veneno que segrega despersonaliza aos indivíduos que a compõem até tal ponto que os instiga a conduzirem-se com violência selvagem, que não se promoveria neles se estivessem em estado normal. O revolucionário excita seus seguidores a manifestarem seus extremos e piores sintomas de maciça intoxicação, e procede a dirigir seu frenesi projetando-o contra seus inimigos, os detentores do poder político, econômico e religioso. 


Ao longo dos últimos quarenta anos, as técnicas para explorar a ansiedade dos homens pela forma mais perigosa de autotranscendência descendente alcançaram um grau de perfeição único na história. Em primeiro lugar, há mais habitantes por quilômetro quadrado que antes e os meios para transportar grandes rebanhos de homens a considerável distância e de concentrá-los em um edifício ou em um estudo são muito mais eficientes que no passado. Além disso, realizaram-se novos inventos, que antes nem sequer se imaginavam, para excitar às multidões. Um é o rádio, que alargou enormemente o âmbito de percepção das roucas vociferações dos demagogos. Outro é o alto-falante, que amplifica e reduplica indefinidamente a música impetuosa da luta de classes e do nacionalismo militante. Outro é a câmara escura da qual se disse ingenuamente que «não pode mentir» e seus brotos o cinema e a televisão. Estes três deram facilidades de maneira absurda à objetivação de fantasias tendenciosas. Outro é, finalmente, a maior de todas nossas invenções sociais: a educação obrigatória e livre. 

Agora o mundo sabe ler e, em conseqüência, acha-se a mercê dos propagandistas (ou governamentais, ou comerciais), que são os donos das fábricas de papel, dos linotipos e das imprensas dos periódicos. Concentrem multidões de homens e mulheres previamente condicionadas e influídas pela leitura diária dos periódicos; adulem com altissonantes bandas de música; deslumbrem com brilhantes e espetaculares iluminações e confusões com a oratória de um demagogo - e em qualquer parte encontrarão um demagogo que é ao mesmo tempo explorador e vítima da alienação maciça -  e já verão como rapidamente podem reduzi-los a um estado de quase infra-humana necessidade. Jamais antes de agora tiveram oportunidade tão poucos homens para converter em loucos, maníacos ou criminosos a tanta gente. 

Na Rússia comunista, na Itália fascista, na Alemanha nazista, os exploradores da fatal inclinação dos homens ao delírio coletivo seguiram uma mesma direção. Quando se encontravam no campo da oposição revolucionária aspiravam às multidões que tinham sob seu domínio à destruição pela violência. Logo, quando chegaram ao poder, não permitiram que o delírio coletivo alcançasse sua plenitude e expansão total a não ser em relação aos estrangeiros e às vítimas propiciatórias. Tendo que defender os interesses criados em seu próprio statu quo, continham o deslizamento ao infra-humano em um nível prudente. Para estes neo-conservadores a intoxicação das massas era principalmente útil como meio de melhorar a sugestibilidade de seus indivíduos e fazê-los assim mais dóceis aos mandatos da nova autoridade. O pensamento independente e próprio é o melhor antídoto contra os que se acham inundados na massa. Daí a radical objeção dos ditadores às explicações psicológicas: «Intelectuais do mundo, unidos, nada têm a perder, que não seja seus cérebros». 

Drogas, sexualidade elementar, intoxicação coletiva: estes são os três caminhos mais conhecidos de autotranscendência descendente. Há muitos outros, não tão debulhados como estas grandes avenidas, mas sim encaminhados também à mesma meta da negação da pessoa. Considerem, por exemplo, a via do movimento rítmico. Nas religiões primitivas o movimento rítmico prolongado é um recurso ao que se vai para promover por indução um estado de êxtase infra-pessoal e infra-humano. A mesma técnica, para chegar ao mesmo fim, foi usada por muitos povos civilizados; por exemplo: pelos gregos, pelos hindus, por muitos dos dervixes do mundo muçulmano, pelas seitas cristãs dos Shakers e os pios roller. Em todos esses casos o movimento rítmico, lento e reiterativo é uma forma ritual deliberadamente praticada, a fim de suscitar uma ansiedade de transcendência obnubilante. A história recorda muitos casos esporádicos de involuntários incontroláveis dançarinos de giga. Esses zarândeos, que em uns países se chamam tarantismo e em outros baile de São Vito, produziram-se geralmente nos períodos de turbulência que revistam seguir a uma guerra, a uma epidemia ou a uma situação de fome coletiva e que são correntes nas regiões de malária endêmica. A inconsciente finalidade dos homens e mulheres que sucumbem a estas manias coletivas é da mesma espécie que a perseguida pelos sectários que se valem da dança como de um rito religioso, especialmente para escapar da concreta delimitação em que se acha sua pessoa e entrar em um estado no que não existem responsabilidades nem cargos de culpas passadas, nem futuros obsediante, a não ser só o presente, e a venturosa consciência de ser outro.

Intimamente associado com esse rito de produção do êxtase que é o movimento rítmico, temos esse outro rito de produção de êxtase que é o som rítmico. A música tem uma amplitude tão grande como a natureza humana, e pode dizer algo aos homens e às mulheres em cada um dos níveis e aspectos de seu ser, do estrito e sentimental do eu até o abstrato e intelectual, do meramente visceral até o do espírito. Em uma de suas inumeráveis formas, a música é uma droga de grande poder, já seja estimulante, já narcótica, e em alternância um e outro. Nenhum homem, por muito civilizado que seja, pode escutar durante longo momento o rufo do tambor ou do timbal dos africanos, ou as cantarolas da Índia, ou os hinos dos gauleses, e manter intactas suas faculdades de discernimento e sua personalidade autoconsciente. Seria interessante reunir um grupo dos mais eminentes filósofos das universidades mais famosas do mundo, encerrá-los em uma habitação de elevada temperatura, em companhia de alguns dervixes marroquinos e uns quantos bruxos haitianos, e medir, com aparelho de relojoaria ad hoc, o grau de sua resistência fisiológica aos estímulos do ritmo sonoro. Seriam capazes de maior resistência os positivistas, com sua lógica, que são mais fortes que os tomistas ou que os que seguem a doutrina do Vedanta? Que fascinante seria isto! Que frutífero campo o que se oferece a uma experiência semelhante! Enquanto isto não se leve a cabo, tudo o que podemos predizer com absoluta segurança é que, expostos aos tamtam e às cantarolas durante um tempo suficientemente longo, todos e cada um de nossos filósofos terminariam uivando e fazendo cambalhotas quão mesmo os selvagens. 

Os procedimentos do movimento e do som sujeitos a ritmo são, em geral, super-impostos - por assim dizer - quando se pretende a intoxicação coletiva. Mas há além outros procedimentos privados, procedimentos que podem ser experimentados pelo viajante solitário que não tem inclinação às expansões de tipo coletivo ou não conta com suficiente fé nos princípios, instituições e pessoas em cujo nome se leva a cabo a concentração das massas. Um desses procedimentos é o do mantram, [Prática da religião brahamânica] do qual Cristo dizia que era «vã reiteração». Nas cerimônias de adoração que se celebram publicamente, a «vã reiteração» quase sempre vai associada com o movimento de caráter rítmico; cantam-se ou pelo menos se entoam letanias e rezas. Por meio das rezas, quão mesmo com a música, produzem-se efeitos quase hipnóticos. A «vã reiteração», quando se exercita em privado, atua sobre a mente, não por sua associação com os sons compassados - já que surte efeito mesmo que as palavras são simples produto da imaginação-, a não ser em virtude de uma concentração da atenção e da memória. A constante reiteração da mesma palavra ou da mesma frase, origina com freqüência, um estado de iluminação ou um profundo arroubo. Uma vez promovido, esse arroubo pode ser gozado como o é, como uma deliciosa impressão de diversidade infra-pessoal, ou, deliberadamente com o intento de retificar a conduta pessoal por meio da auto-sugestão e de preparar o caminho da autotranscendência para o alto, para a culminação. A respeito da segunda possibilidade diremos algo mais adiante. Aqui estamos nos ocupando da «vã reiteração» como caminho descendente na espera da alienação intra-pessoal. 

Agora temos que considerar uma questão estritamente fisiológica: é o método de salvação da personalidade isolada em si mesmo: a via corporal da penitência. A violência destrutiva, que é o sintoma do frenesi coletivo, não é invariavelmente dirigida para fora. 

A história das religiões abunda em relatos horrendos de autoflagelações, de navalhadas e rasgo em carne própria, de autocastrações e até de suicídios. Esses atos são conseqüência de um delírio coletivo e são executados em estado de frenesi. Coisa muito diferente é a penitência corpórea entendida individualmente e a sangue frio. Neste caso, a tortura que alguém se inflige a si mesmo tem sua origem em um ato de vontade pessoal; mas seu resultado - ao menos em alguns casos - é uma transformação temporária da personalidade, que se achava sozinha, em outra coisa distinta. Em rigor esta outra coisa distinta é a consciência - que por sua intensidade se faz exclusiva - da dor física. A pessoa que se tortura a si mesmo se identifica com sua dor e, ao fazer-se mera consciência do corpo que padece, sente-se livre da presente frustração, daquela obsessiva ansiedade sobre o futuro que constitui, em grande parte, a realidade do eu neurótico. Foi uma liberação da personalidade, um trânsito para baixo, dentro de um estado de pura tortura fisiológica. Quem se atormenta não se vê obrigado por necessidade iniludível a permanecer nessa região da consciência infra-pessoal. À maneira do homem que faz uso da «vã reiteração» para chegar além de si mesmo, que se atormenta a si mesmo pode ser capaz de valer-se de sua alienação temporária da personalidade como de uma ponte - por assim dizer - para partir acima no fluir da vida do espírito.


Isto nos situa ante uma questão muito importante e verdadeiramente difícil: Até onde e em que circunstâncias é possível ao homem empreender a marcha pelo caminho descendente, a fim de obter uma transcendência espiritual? A primeira vista parece óbvio que o caminho para baixo não pode ser jamais caminho que vá para cima. Mas na realidade da existência há questões que não são tão simples como aparecem neste mundo maravilhoso de nossos pulcros e ordenados vocábulos. Na vida atual um movimento descendente pode ser, às vezes, o princípio de uma marcha para o alto. 

Quando sai do ego se quebra e começa a ter consciência de diversificações subliminares e fisiológicas latentes abaixo da personalidade, costuma acontecer que advertimos um vislumbre momentâneo, mas apocalíptico, dessa outra Diversidade que é o Fundamento de todo ser. Entretanto, alguém se encontra confinado em seu interior, isolada personalidade permanece inconsciente dos vários não um mesmo com os quais está associado: o orgânico não um mesmo, o subconsciente não um mesmo, o coletivo não um mesmo do meio psíquico em que todos nossos sentimentos têm sua existência, e o imanente e transcendente não um mesmo do espírito. Qualquer liberação, embora seja por um caminho descendente, fora da personalidade isolada, faz possível, pelo menos, um momentâneo conhecimento do não um mesmo em seus distintos níveis, inclusive o mais elevado. William James, em suas Variedades da experiência religiosa, dá-nos exemplos de «revelações anestésicas» logo depois da inalação de gás hilariante. Os alcoólicos experimentam às vezes teofanias desse tipo e no curso de intoxicação produzida por uma droga qualquer se dão, provavelmente, momentos nos quais a consciência de um não um mesmo, superior ao eu que se desagrega, faz-se, sem mais, possível. Mas esses ocasionais brilhos de revelação terão que obtê-los a um preço muito elevado. Para o viciado em drogas, o momento em que ressurge a consciência de seu espírito (se chegar a produzir-se) dá lugar imediatamente a um estupor infra-humano - ou frenesi, ou alucinação - seguido de um acusado e tremendo mal-estar e, depois, de uma permanente e fatal piora de saúde do corpo e das faculdades mentais. Só de vez em quando pode uma simples «revelação anestésica» obrar como qualquer outra teofania para levar um sujeito receptor a um esforço de autotransformação e autotranscendência para o alto. Mas o fato de que uma coisa assim chegue a acontecer algumas vezes, jamais justificará o emprego dos métodos químicos de autotranscendência. Este é um caminho descendente e, a maioria dos que o seguiram chegarão a um estado de degradação no que os períodos do êxtase infra-humano alternarão com os períodos de personalidade consciente, tão desprezível que, qualquer evasão, embora seja por meio do lento suicídio da entrega às drogas, parecerá preferível ser uma pessoa. 

O que é verdade das drogas é verdade, mutatis mutandis, da sexualidade elementar. O caminho se desliza costa abaixo, mas ao longo desta rota podem dar-se ocasionalmente teofanias. Os deuses opacos - como os denominou Lawrence - podem trocar seu sinal e fazer-se luminosos. Na Índia há uma ioga, a Trantric, apoiada em uma técnica fisiopsicológica, cuja finalidade aponta à transformação da autotranscendência ascendente. No mundo ocidental, o equivalente mais próximo às práticas dessa ioga foi a disciplina sexual ideada pelo John Humphrey Noyes e praticada pelos membros da Oneida Community. Na Oneida Community a sexualidade elementar, não tão somente foi disciplinada com êxito, mas sim também, foi feita compatível com, e subordinada a, uma forma de cristandade protestante que pregava sinceramente e atuava com seriedade. 

A intoxicação maciça desintegra o eu mais a fundo e de raiz que a sexualidade elementar. Seu frenesi, suas loucuras, suas exageradas sugestibilidades, podem ser equiparadas somente com as intoxicações promovidas por drogas como o álcool, o haxixe e a heroína. Mas até aquele que forma parte de um povo excitado pode alcançar - em uma das primeiras etapas de sua autotranscendência em descida - uma genuína revelação da Diversidade que se oferece acima da pessoa. Esta é uma das razões pelas quais um indivíduo pode desprender-se de sua influência e ficar à margem do ambiente opressivo de uma exaltação coribântica, seja religiosa ou política. Em virtude do fato de que os homens ou as mulheres que formam parte de uma multidão se sintam inclinados e inclinem a ser brinquedo de uma sugestibilidade superior a normal, os resultados que se produzam tanto podem ser favoráveis como realmente desastrosos: enquanto se acham neste estado de sugestibilidade, como sujeitos submetidos às exortações dominantes, voltam para a posse de suas faculdades, tal como acontece depois de um período de hipnose. Tanto o demagogo como o pregador ou o ritualista desintegram o eu de seus ouvintes agrupando-os em rebanho e alucinando-os com abundantes dose de vãs reiterações e monótona cantarola. Então = a diferença do demagogo -, os outros apelam a suas particulares sugestões, algumas das quais podem ser efetivamente cristãs. Essas sugestões, se são «assimiladas», resolvem em uma reintegração da personalidade de cada um  - até esse momento afundada e desfeita - a um nível um pouco mais elevado. Podem dar-se também reiterações da personalidade sob a influência de mandatos pós-hipnóticos no processo de excitação de um povo movido por paixão política. Mas esses mandatos são, por uma parte, incitações ao ódio e, por outra, à obediência cega e à ilusão compensatória. Iniciados com uma dose enorme de veneno coletivo, confirmados e estipulados pela retórica de um maníaco que é ao mesmo tempo um maquiavélico explorador das debilidades de outros mortais, a «conversão» política resolve na criação de uma personalidade nova, pior que a anterior e muito mais perigosa, já que está entregue de coração a um partido cuja primeira finalidade consiste na liquidação de seus oponentes. 

Distingui entre demagogos e religiosos, sobre a base de que estes últimos podem fazer algo bom, enquanto que os primeiros apenas se fizerem algo mais dada a natureza das coisas que suscitar a ofensa. O qual não quer dizer que os religiosos que se valem da intoxicação da multidão estejam totalmente isentos de culpabilidade. Pelo contrário, no passado, foram responsáveis por maldades quase tão descomunais como as ocasionadas pelos revolucionários demagogos de nossos tempos, aniquilando vítimas sem conta em um rosário sem fim. No curso das seis ou sete últimas gerações, o poder das organizações religiosas para exercitar o mal declinou, ostensivamente, em nosso mundo do ocidente. Isto é devido, em primeiro lugar, ao assombroso progresso da técnica e a conseqüente demanda, por parte das massas, de ilusões compensatórias, as quais se manifestam melhor como algo positivo que como lucubração metafísica. Os demagogos oferecem essas ilusões pseudo-positivas e os religiosos não. Segundo a força atrativa das igrejas vai declinando, assim vai declinando conseqüentemente sua influência. E assim declinam também sua riqueza, seu poder político e, ao mesmo tempo que estes, sua capacidade para exercitar o mal em grande escala. As circunstâncias liberaram aos eclesiásticos de algumas das tentações às quais nos séculos passados sucumbiam quase invariavelmente seus predecessores. Deveriam ser estimulados a liberar-se voluntariamente e por si mesmos de tais tentações, que ainda subsistem. Entre tais tentações uma muito principal é a de alcançar o poder, a fim de aspirar o desejo dos homens por uma transcendência de inibição. E à verdade, não se pode justificar moralmente o fato de induzir, a consciência à intoxicação alucinante das multidões, nem que seja em nome da religião, nem que se dê como bom que tudo é pelo bem do intoxicado. 

A propósito da autotranscendência horizontal não é necessário dizer muitas coisas e não porque o fenômeno deste tipo de transcendência careça de importância, mas sim porque se trata de coisa muito freqüente e que pode ser facilmente submetida a análise. 


Quanto ao fato de escapar ao espanto de sentir-se pessoa isolada e sozinha, a maioria das pessoas escolhem quase sempre um caminho que não é o que vai para cima nem o que vai para baixo, a não ser um caminho plano. Todos se identificam com alguma causa que supera em amplitude o âmbito de seus interesses imediatos, mas que não é degradantemente inferior e, se resultar que é mais elevada, só o é na classe dos valores sociais correntes. Nesse caminho horizontal  - ou quase horizontal - a transcendência pode dar-se em virtude de um pouco tão corriqueiro como uma mania ou tão estimável como o amor matrimonial. Pode dar-se também pela identificação que alguém faz de si mesmo com qualquer atividade humana, da direção de um negócio até a investigação nuclear, da composição de uma sinfonia até a busca e coleção de selos, das campanhas de tipo político até a educação dos meninos ou o estudo dos costumes matutinos dos pássaros. A autotranscendência horizontal é da maior importância. Sem ela não haveria nem arte, nem ciência, nem lei, nem filosofia e nem sequer civilização. E, certamente, tampouco haveria guerra nem odium theologicum ou ideologicum, nem intolerância sistemática, nem perseguição. Esses grandes bens e esses enormes males são os frutos da capacidade do homem para a total e contínua auto-identificação com uma idéia, um sentimento, uma causa. Como podemos ter o bem sem o mal, como gozar de uma elevada civilização, sem saturação de bombardeios e exterminação de hereges religiosos ou políticos? A resposta é que não podemos manter o bem tão longo tempo como nossa autotranscendência permanece em atitude horizontal. Quando nos identificamos com uma idéia ou com uma causa é que nos achamos de fato em transe de adoração algo de tipo doméstico, algo parcial e paroquial, algo que, não obstante sua nobreza, tem características excessivamente humanas. «O patriotismo», segundo a conclusão a que chega um grande patriota a véspera de sua execução, decretada pelos inimigos de sua pátria, «não é suficiente». Nem é socialismo, nem comunismo, nem capitalismo; nem tampouco é arte, nem ciência, nem ordem pública, nem religião positiva, nem Igreja. Tudo isto é indispensável, mas nenhuma dessas coisas é suficiente. A civilização exige do indivíduo uma decidida auto-identificação com a mais eminente das causas da natureza humana. Mas se esta auto-identificação com o que é humano não vai acompanhada de um consciente e consistente esforço para levar a sua culminação a autotranscendência para o alto na vida universal do Espírito, os bens conseguidos aparecerão sempre mesclados com males que os contrapesem. «Da verdade mesma fazem um ídolo - escreveu Pascal-, posto que verdade sem caridade não é Deus, a não ser sua imagem e ídolo, que nunca devemos amar nem adorar.» E não deixa de ter sua razão o adorar a um ídolo; coisas na verdade inconveniente. A adoração da verdade à margem da caridade - auto-identificação com a ciência que não vai acompanhada de uma auto-identificação com o Fundamento de todo ser - resolve nessa particular situação em que agora nos encontramos. Todo ídolo, exaltado como é, deriva, ao longo de seu curso, fazendo um Moloch faminto de sacrifícios humanos.


Texto tirado do Apêndice do livro "Os demônios de Loudun", de Aldous Huxley.