sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Carta à Thomas Merton, 1962 (Por Seraphim Rose)

Sou um jovem americano convertido ao Cristianismo Ortodoxo - não aquela espiritualidade vaga e "liberal" de muitos russos modernos, "pensadores religiosos", mas a plena Ortodoxia ascética e contemplativa dos Padres e Santos - e há alguns anos tenho estudado a "crise" espiritual dos nossos tempos e atualmente estou escrevendo um livro sobre o assunto. No decorrer do meus estudos tive ocasião de ler obras de um grande número de autores católicos romanos, alguns dos quais (por exemplo, Pieper, Picard, Gilson, P. Danielou, P. de Lubac) achei bastante úteis e não tão distantes da perspectiva Ortodoxa, embora alguns outros achei preocupante no que diz respeito ao que me parece ser o ensinamento da Igreja universal. Eu li vários de seus trabalhos e, especialmente em alguns de seus artigos recentes, percebo sinais de uma das tendências do pensamento contemporâneo romano (que existe também na Ortodoxia, sendo preciso) que mais me preocuparam. Uma vez que você é um monge romano, vejo você como alguém que pode esclarecer as ambiguidades que encontrei nessa tendência de pensamento. O que gostaria de discutir diz respeito principalmente aquilo que pode ser chamado de "missão social" da Igreja.

Em um ensaio intitulado Ação Cristã na Crise Mundial você trata especialmente da questão da "paz". Em uma época que a a guerra se tornou virtualmente "impossível", isto torna-se, claro, uma preocupação central para qualquer Cristão, mas suas observações particularmente sobre este assunto me deixou preocupado.

Quais são, em primeiro lugar, os verdadeiros antagonistas da guerra espiritual de nossa época? Dizer "Russia e America" é, naturalmente, trivial; o inimigo, como você diz, "está em todos nós". Mas você em seguida diz, "O inimigo é a própria guerra" e suas raízes, "ódio, medo, egoísmo, luxúria".

Posso concordar com você que a guerra, hoje, pelo menos a "guerra total" é bastante injustificável por qualquer norma Cristã pela simples razão que sua natureza "ilimitada" escapa medida de qualquer espécie. O ponto em seu argumento que me preocupa é sua afirmação de que a única alternativa a essa guerra é a "paz".

A alternativa à "guerra total" parece ser a "paz total"; mas o que tal "paz" implica? Você diz, "temos de dar o melhor de nós para a eventual abolição" da guerra; e é isto que uma "paz total" deve ser: abolição da guerra. Não é o tipo de paz que o homem já conheceu antes, mas uma paz inteiramente nova e "permanente".

Tal objetivo, claro, é bastante compreensível para a mentalidade moderna; o idealismo político moderno, marxista e "democrático" igualmente sempre ansiaram tal fim. Mas e o Cristianismo? - e me refiro ao Cristianismo completo inflexível, não o idealismo humanista que se autodenomina Cristão. O Cristianismo não é extremamente hostil a todas as formas de idealismo, a todas suas reduções com seus fins "realistas" e suas meras ideias arrogantes? O ideal da "abolição da guerra" é realmente diferente de outros objetivos grandiosos como a "abolição" da doença, do sofrimento, do pecado, da morte? Todos esses ideais animam alguns idealistas modernos, mas é bastante claro que para o Cristão eles são secularizações e por isso, perversões da genuína esperança Cristã. Eles podem ser realizados somente em Cristo, somente em Seu Reino, que não é deste mundo; quando a fé em Cristo e a esperança de Seu Reino está a desejar, quando são feitas tentativas para efetuar tais "ideais" neste mundo - então há idolatria, o espírito do Anticristo. Doenças, sofrimentos, pecado e morte são partes inevitáveis do mundo que conhecemos como consequência da queda. Esses só podem ser eliminados por uma transformação radical da natureza humana, uma transformação possível somente em Cristo e plenamente somente após a morte.


Pessoalmente, penso que a "paz total", é, no fundo, um ideal utópico; mas o fato de que aparentemente seja praticável hoje em dia levanta uma questão profunda. Porque, a meu ver, o inimigo mais profundo da Igreja hoje não é seus inimigos óbvios - a guerra, o ódio, o ateísmo, o materialismo, todas as forças impessoais que levam ao "coletivismo" desumano, a tirania e miséria - estes têm estado conosco desde a queda, apesar de que, de fato, atualmente tomam uma forma mais extrema. Mas a apostasia que levou a este mundanismo óbvio e extremo parece-me um prelúdio de algo muito pior; e este é o principal tema da minha carta.

A esperança pela "paz" é parte de um contexto mais amplo de um idealismo renovado, fruto da Segunda Guerra Mundial e as tensões do mundo pós-guerra, um idealismo que tem, especialmente nos últimos cinco ou dez anos, capturado as mente dos homens - particularmente dos jovens - de todo o mundo, fazendo com que manifestassem concretamente, muitas vezes, em ações. A esperança que subjaz esse idealismo é a esperança de que os homens podem, afinal, viver juntos em paz e fraternalmente em uma ordem social justa, e que este fim pode ser realizado através de meios "não-violentos" que não sejam incompatíveis com esse fim.  Este objetivo aparenta ser uma revelação virtual de um "novo mundo" para todos aqueles cansados da miséria e do caos que marcou o fim do mundo "velho", aquele mundo vazio "moderno" que agora parece ter finalmente - ou quase - descartado todas suas possibilidades terríveis; e, ao mesmo tempo, parece ser algo inteiramente alcançável por meio morais - diferente dos idealismos modernos antecedentes.

Você mesmo, de fato, fala de um possível "nascimento em agonia de um novo mundo", do dever dos cristãos de hoje "executar a paciente e heroica tarefa de construir um mundo que irá prosperar na unidade e na paz", até mesmo, a este respeito, de "Cristo, o Príncipe da Paz". A questão que me preocupa gravemente em tudo isso é, se trata realmente do Cristianismo, ou ainda é só um idealismo? Ou pode ser possível os dois, um "Idealismo Cristão"?

Você fala de uma "ação Cristã", "o Cristão que manifesta a verdade do Evangelho na ação social", "não só em oração e penitência, mas também em seus compromissos políticos e em todas suas responsabilidades sociais". Bem, certamente não direi nada contra isso; se a verdade Cristã não brilha através de tudo que se faz, ao ponto de falhar em ser um Cristão, e se se é chamado para uma vocação política, sua ação naquela área também deverá ser Cristã. Mas, se não me engano, suas palavras significam algo mais que isso; ou seja, que agora, mais do que nunca, precisamos de Cristãos trabalhando na esfera social e política, para realizar ali a verdade do Evangelho. Mas por que, se o Reino de Cristo não é deste mundo? Existe realmente uma "mensagem social" Cristã, ou não é, ao contrário, o resultado da atividade Cristã de alguém que está cuidadosamente trabalhando sua salvação? De maneira alguma estou defendendo a prática do Cristianismo em isolamento; todo o Cristianismo - mesmo aquele do eremita - é um "Cristianismo social", mas isso é apenas um contexto, não um fim.  A Igreja está na sociedade porque os homens estão na sociedade, mas a finalidade da Igreja é a transformação do homem, não da sociedade. É uma boa coisa se uma sociedade e governo professam o Cristianismo verdadeiro, se suas instituições são informadas pelo Cristianismo, porque, assim, um exemplo é dado para os homens que são parte daquela sociedade; mas uma sociedade Cristã não é um fim em si, mas simplesmente um resultado do fato de que os homens Cristãos vivem em sociedade.

Eu não nego, claro, que exista tal coisa como uma "ação social" Cristã; o que questiono é a sua natureza. Quando eu alimento meu irmão com fome, isto é um ato Cristão e uma pregação do Reino que não precisa de palavras; é feito pela razão pessoal que meu irmão - aquele que está diante de mim, neste momento, está com fome, e é um ato Cristão, porque meu irmão é, em certo sentido, Cristo. Mas se eu generalizo a partir deste caso e embarco em uma cruzada política para abolir o "mal da fome", isto é algo inteiramente diferente; embora os indivíduos que participam de tal ato possam agir de maneira perfeitamente Cristã, o projeto inteiro - e precisamente por ser um "projeto", um planejamento humano - torna-se envolvido em uma espécie de manto de "idealismo".

Mais alguns exemplos: A eficiência dos medicamentos modernos não acrescentam nada ao cumprimento do mandamento para confortar os doentes; se eles estiverem disponíveis, muito bem - mas não é Cristão pensar que nosso ato é melhor porque é mais "eficiente" ou porque beneficia mais pessoas. Isso, novamente, é idealismo. Não preciso mencionar o fato de que os medicamentos podem se tornar, de fato, um substituto para o "conforto" Cristão quando a mente do praticante torna-se demasiado absorta em eficiência; e o pesquisador que busca a "cura para o câncer" não esta fazendo nada especificamente "Cristão", mas algo técnico e "neutro".

"Fraternidade" é algo que acontece, aqui e agora, em qualquer circunstância que Deus me coloca, entre eu e meu irmão; mas quando eu começo a pregar o "ideal" da fraternidade e saio deliberadamente para praticá-la, corro o risco de perdê-la por completo. Mesmo se - especialmente se - faço uso de uma aparente "resistência passiva" ou "não-violência" Cristã nesta ou em qualquer outra causa, permita-me antes que eu chame-o de ato Cristão - cuidadosamente me perguntar se seu fim é apenas um ideal elevado mundano, ou algo maior. (São Paulo, para dar um exemplo bastante claro, não disse aos escravos para se revoltarem "não-violentamente"; ele lhes disse para não se revoltar, mas preocupar-se com algo muito mais importante.)

A "Paz de Cristo", localizada no coração, não necessariamente, em nosso mundo decaído, traz a paz exterior, e eu gostaria de saber se há aí qualquer ligação com o ideal da "abolição da guerra."

A diferença entre a "caridade" organizada e a caridade Cristã não precisa de comentários.

Pode haver - e eu não teria escrito essa carta se eu não esperasse que existisse - uma espécie de verdade, porém, por assim dizer, subterrânea, um "ecumenismo" entre Cristãos separados, especialmente em tempos de perseguição; mas isso nada tem a ver com atividades de qualquer "Conselho Mundial de Igrejas".


Você pode, a partir desses exemplos, espero, entender as dúvidas que eu tenho sobre o ressurgimento de ideais aparentemente "Cristãs" em nosso tempo. Digo "dúvidas", pois não há nada intrinsecamente mau em qualquer dessas "cruzadas", e nelas existem cristãos bastantes sinceros e fervorosos que realmente estão pregando o Evangelho; mas, como disse, há uma espécie de manto de "idealismo" envolto sobre todos esses, um manto que parece estar atraindo-os para seu próprio serviço bastante independente (sem negar, dessa maneira, é claro, os atos pessoais Cristãos praticados sob seus auspícios).  Que "serviço" é esse? - o apaziguamento do senso moderno de "idealismo", transformando a interioridade a as verdades cristãs em ideais exteriores - na melhor das hipóteses - em ideais semi-cristãos. E temos de ser realistas o bastante para ver que o efeito geral sobre as mentes das pessoas tanto dentro como fora destes movimentos, dentro e fora da Igreja, é precisamente colocar ênfase sobre a realização de ideais exteriores, ocultando assim verdades interiores; e uma vez que essa ênfase tem sido dada, o caminho se estreita para a falsidade concreta que "em qualquer caso, fazer o bem é o verdadeiro propósito do Cristianismo, e é o único fundamento onde todos Cristãos podem se unir, enquanto os dogmas e as liturgias e similares são questões pessoais que tendem mais separar do que unir."  De fato, quão muitos desses, mesmo Católicos e Ortodoxos, que estão participando no mundo do "Cristianismo social" de hoje, não acreditam que este é o Cristianismo mais "perfeito" e até mesmo mais "interior" que o Cristianismo dogmático, ascético e contemplativo que não alcança "resultados" mais evidentes?

Eu, antes disso, já fui reprovado por alguns Católicos por falta de interesse na missão social da Igreja, por sustentar um Cristianismo unilateral "ascético" e "apocalíptico"; e alguns filósofos e teólogos fizeram tais acusações contra a Igreja Ortodoxa em si - acompanhado, algumas vezes, se não me engano, de um tom um tanto condescendente que assume que a Igreja está um pouco "atrasada" ou "desatualizada" sobre essas coisas, estando sempre "reprimida" pelo Estado e acostumada a olhar pro mundo através de olhos de monges demasiados fora-do-mundo. Longe de mim a presunção de falar pela Igreja; mas pelo menos posso falar de algumas coisas que penso ter aprendido com Ela.

Você pode legitimamente perguntar-me o que, já que sou cético quanto ao "Cristianismo social" - embora, claro, eu não gostaria que abolissem ou entregassem ao diabo, estou apenas apontando sua ambivalência - defendo como "ação Cristã" no meio da "crise" da época com suas alternativas urgentes.

Em primeiro lugar, questiono radicalmente a ênfase na "ação" em si, sobre "projetos" e "planejamentos", sobre a preocupação com o "social" e tudo aquilo que o homem pode fazer sobre isso - todos aqueles que atuam em detrimento da aceitação do que nos é dado, do que Deus nos dá neste momento, bem como de permitir que Sua vontade seja feita, não a nossa. Eu não proponho uma retirada total de todos Cristãos da política e do trabalho social; nenhuma regra arbitrária poderia determinar isso, cabe à consciência individual. Mas em qualquer caso, se muitos podem ser chamados para trabalhar pela "justiça", "paz", "unidade", "fraternidade" no mundo - e esses são, nesta forma ideal e generalizada, metas externas e mundanas - não seria melhor ser chamados para o trabalho totalmente inequívoco do Reino, desafiando todos os ideais do mundo e pregar o único Evangelho necessário: Arrependei-vos, porque o Reino dos céus está próximo?  Você mesmo diz com toda razão sobre a America e Rússia, "o inimigo não está apenas de um lado ou de outro... O inimigo está em ambos os lados." Não é possível aprofundar essa percepção e aplicá-la para as outras alternativas aparentemente últimas como, "guerra" e "paz"? Uma delas é muito mais possível para um Cristão do que a outra, se "paz" é uma "paz total (ou seja, idealista)"? E o não reconhecimento dessas duas alternativas igualmente inaceitáveis não nos leva de volta a uma genuína "terceira via" - uma que nunca será popular porque não é nem "nova", nem moderna, e acima de tudo não é "idealista" - um Cristianismo que tem como fim nem uma "paz" nem uma "guerra" mundana, mas um Reino que não é deste mundo?

Isso não é nada "novo", como você diz, e o mundo que se imagina "pós-Cristão" está cansado disso. É verdade que quando nós, como Cristãos, falamos com nossos irmãos frequentemente parecemos ser confrontados com uma "parede", uma má vontade até mesmo de ouvir; e, sendo humano, nós talvez estejamos um pouco "desesperado" por essa falta de resposta. Mas o que pode ser feito sobre isso? Deveríamos desistir de falar daquilo que nossos contemporâneos não querem ouvir, e nos juntar na busca de objetivos que, uma vez que não são especificamente Cristãos, podem ser buscados também por não-Cristãos? Isso me parece uma abdicação de nossa responsabilidade como Cristãos. Eu acho que a necessidade central do nosso tempo não é de modo algum diferente do que sempre foi desde que Cristo veio; ela reside, não na área de "compromissos políticos" e "responsabilidades sociais", mas precisamente na "oração e penitência", jejum e pregação do verdadeiro Reino. A única "responsabilidade social" de um cristão é viver, onde e com quem quer que seja, a vida de fé, para sua própria salvação e como um exemplo para os outros. Se, ao fazer, nós ajudamos a melhorar ou abolir o mal social, isso é uma boa coisa - mas não é o nosso objetivo. Se ficamos desesperados quando a nossa vida e as nossas palavras não conseguem converter outros para o verdadeiro Reino, isso vem da falta de fé. Se queremos viver a nossa fé mais profundamente, seria preciso falar menos dela.

Você fala da necessidade, não apenas de falar da verdade Cristã, mas em "encarnar a verdade Cristã na ação". Para mim, isso significa precisamente a vida que acabo de descrever, uma vinda infundida com a fé em Cristo e a esperança no Seu Reino que não é deste mundo. Mas a vida que você parece descrever é uma bastante envolvida nas cosias deste mundo; considero não diferente de uma adaptação "exterior" da verdadeira interioridade Cristã.

O idealismo moderno, que é dedicado a realização idólatra do "Reino do Homem", durante muito tempo influenciou os círculos cristãos; mas somente nos anos mais recentes que essa influência começou a dar frutos reais dentro do útero da própria Igreja. Penso que não há dúvidas que estamos testemunhando as dores de parto de algo que, para o verdadeiro Cristão, é, de fato, possibilidades assustadoras: um "novo Cristianismo", um Cristianismo que afirma ser "interior", mas é inteiramente preocupado com o resultado exterior; um Cristianismo que não pode realmente acreditar em "paz" e "fraternidade", a menos que entendam por algo generalizado e universalmente aplicado, não em algum aparentemente distante "outro mundo", mas no "aqui e agora."  Este tipo de Cristianismo diz que a "virtude privada" não é suficiente - obviamente dependente de uma compreensão protestante de virtude, uma vez que tudo que um verdadeiro Cristão faz é sentido por todos no Corpo Místico; nada feito em Cristo é feito para si, sozinho - mas não é suficiente para quê? A resposta para isso, penso, é clara: para a transformação do mundo, a definitiva "realização" do Cristianismo na ordem política e social. E isso é idolatria. O Reino não é deste mundo; pensar ou ter esperança que o Cristianismo pode ser exteriormente "bem sucedido" no mundo é uma negação de tudo que Cristo e Seus profetas disseram sobre o futuro da Igreja.  O Cristianismo pode ser "bem sucedido" com uma condição: aquela de renunciar (ou convenientemente esquecer) o verdadeiro Reino e procurar construir o Reino no mundo. O "Reino Terreno" é precisamente o objetivo da mentalidade moderna; a construção dele é o significado da idade moderna. Não é Cristão; como Cristãos, sabemos que Reino é esse. E o que me preocupa bastante é que os cristãos de hoje - Católicos e também Ortodoxos - também estão se juntando, muitas vezes sem estarem cientes, muitas vezes com as melhores intenções possíveis, na construção desta nova Babel...

O idealismo moderno, que espera por um "céu na terra", igualmente espera pela vaga "transformação" do homem - o ideal do "super homem" (em diversas formas, conscientes ou não), que, embora absurdo, tem um grande apelo a uma mentalidade que foi treinada para acreditar na "evolução" e "progresso". E não permita que o desespero contemporâneo nos faça pensar que a esperança por um mundo futuro está morta; desespero pelo futuro só é possível para alguém que ainda quer acreditar nele; e, de fato, misturado com o desespero contemporâneo há um grande senso de expectativa, uma vontade de acreditar que um futuro ideal pode, de alguma maneira, ser realizado.

O poder do inumano e do impessoal governou a primeira parte do nosso século de "crise"; um vago espírito "existencial", semi ou pseudo-religioso, idealista e prático ao mesmo tempo (mas nunca de outro mundo), parece destinado governar a última parte deste século. Eles são duas fases da mesma doença, o "humanismo" moderno, doença causada pela confiança no mundo e no homem, ignorando Cristo - exceto para tomar Seu nome emprestado como um "símbolo" conveniente para homens que, afinal, não conseguem esquecê-lo, bem como para seduzir aqueles que ainda desejam servi-Lo.  O Cristianismo se tornou uma "cruzada", Cristo se tornou uma "ideia", ambos a serviço de um mundo "transformado" por técnicas científicas e sociais e por um homem virtualmente "deificado" pelo despertar de uma "nova consciência": isto está diante de nós. O comunismo, parece claro, está se aproximando de uma transformação, uma "humanização", e disto Boris Pasternak nos dá um sinal antecipadamente; ele não rejeita a Revolução, ele apenas quer que seja "humanizada". As "democracias", por um caminho diferente, estão se aproximando do mesmo objetivo. Em todos lugares, "profetas" - semi ou pseudo-Cristãos - como Berdyaev e Tolstói; pagãos mais explícitos como D. H. Lawrence, Henry Miller, Kazanzakis, bem como as legiões de ocultistas, astrólogos, espiritualistas e milenaristas - todos anunciam o nascimento de uma "nova era." Protestantes e, em seguida, mais e mais Católicos e Ortodoxos, são apanhados neste entusiasmo e imaginam sua própria era ecumênica e harmoniosa, alguns sendo tão ousados - e blasfemos - a ponto de chamá-la de "terceira era", a "descida do Espírito Santo" (como D. H. Lawrence, Berdyaev e, em última instância, Joachim de Floris).

Uma era de "paz" pode vir para o homem cansado, apocaliticamente ansioso; mas o que o Cristão pode dizer de tal "paz"? Não será uma Paz de Cristo; imaginar uma súbita conversão universal dos homens para à plena fé Cristã, não passa de fantasia; e sem essa fé, Sua Paz não pode vir. E qualquer "paz" humana será apenas o prelúdio para a única e verdadeira "guerra" de nossa época, a guerra de Cristo contra todos os poderes de Satã, a guerra dos Cristãos que apenas buscam o Reino que não é deste mundo contra todos aqueles, pagãos ou pseudo-Cristãos, que apenas buscam por um Reino mundano, o Reino do Homem.

A Letter to Thomas Merton, 1962 por Eugene [Fr. Seraphim] Rose

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Misticismo Induzido por Drogas - Uma Entrevista com Charles Upton

Charles Upton, poeta, autor, ativista e veterano da contra-cultura, participou e experimentou de primeira mão muitas das facetas do cul-de-sac New Age, incluindo suas armadilhas que frequentemente são ignoradas. Desde 1960, os psicodélicos ou alucinógenos, agora denominados enteógenos, têm desempenhado um papel crucial para os buscadores modernos e pós-modernos em contornar as armadilhas do ego empírico e alcançar a auto-realização. Depois de um hiato de quase trinta anos, a pesquisa psicodélica tem agora um reavivamento, provocando muita investigação sobre o que está por trás deste fenômeno. É interessante notar que movimentos como o New Age, o Movimento do Potencial Humano, a Psicologia Humanista, e a Psicologia Transpessoal emergiram em um cenário comum e não só compartilham muitas semelhanças, mas também possibilitou o desenvolvimento entre elas. Por exemplo, o escritor inglês, Aldous Huxley (1894-1963), pode ser considerado uma figura que liga todos os movimentos supracitados através de sua popularização da filosofia perene e seus escritos sobre psicodélicos. Huxley não só ajudou a moldar cada um dos movimentos acima, mas forneceu uma teoria integrativa puderam criar raízes. Dito isto, embora tenha popularizado a filosofia perene, ele não é considerado um tradicionalista ou perenialista.

Charles Upton deixa de lado seus camaradas New-Age e a contra-cultura ao ser introduzido as obras dos tradicionalistas ou perenialistas - mais significativamente René Guénon, Frithjof Schuon (1907-1998), e Ananda Coomaraswamy (1887-1947), desde então ele tem se filiado nesta orientação. Upton já escreveu vários livros e artigos sobre metafísica tradicional e filosofia perene, os mais notáveis são  The System of Antichrist: Truth and Falsehood in Postmodernism and the New Age (2001), incluindo sua continuação, Vectors of the Counter-initiation: The Shape and Destiny of Inverted Spirituality (2012).


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Samuel Bendeck Sotillos: Talvez pudéssemos começar com a crítica perenialista fundamental em relação ao que tem sido chamado de "expansão da consciência", "estados alterados de consciência", "estados não-ordinários de consciência" - que distingue o psíquico do espiritual; essa é uma crítica que leitores fora dos círculos tradicionalistas não estão familiarizados e tem criado uma grande confusão aos buscadores contemporâneos. Você se importaria de elaborar sobre esta distinção fundamental, de profundas implicações, no que diz respeito ao reconhecimento da autêntica espiritualidade contra a pseudo-espiritualidade ou a espiritualidade Nova Era?

Charles Upton: O plano psíquico ou intermediário é o mundo da subjetividade; o plano espiritual é a própria objetividade. Enquanto o mundo psíquico é maior que o mundo material e engloba-o, plano do Espírito é superior tanto a psique e a matéria, e engloba-os. O mundo psíquico é composto de crenças, percepções, impressões, experiências; o mundo espiritual é composto de certezas - de coisas que são verdadeiras, mesmo se não temos certeza delas. Quando o poeta da Geração Beat Lew Welch disse: "Eu busco a união com que acontece estando eu observando ou não", ele estava postulando o nível de Espírito. O plano psíquico é relativamente objetivo na medida que não está encerrado dentro da psique individual; Como Jung demonstrou, ele também tem um aspecto coletivo. No entanto, esta coletividade não está limitada a uma massa subjetiva humana ou a um "inconsciente coletivo"; ali também se encontra muitas classes de seres não-humanos, incluindo o que os gregos chamavam de daimones, as fadas dos europeus, e os jinn dos árabes. Ele carrega nada menos que as impressões das experiências de todos seres sencientes. O plano psíquico é um ambiente (relativamente) objetivo da psique-humana, assim como a terra é um ambiente (relativamente) objetivo para o corpo humano. Nossa aparente subjetividade individual é co-extensiva com inúmeras outras subjetividades, tanto humana como não humana; como Huston Smith disse, "o cérebro respira pensamentos assim como os pulmões respiram ar." Mas continua a ser essencialmente subjetivo em todos casos; é o plano das experiências, não de realidades. Uma experiência é uma impressão de uma realidade objetiva, seja material ou espiritual, recebida por um sujeito limitado, uma impressão que é editada pelas limitações inerentes ou adquiridas pelo sujeito que recebe-a. É um fenômeno e não um númeno. Qualquer que seja os dados relativamente objetivos possam ser acessados através de meios psíquicos (clarividência, precognição, etc.), sempre pertencem a entidades contingentes imersas em uma forma ou outra no espaço e no tempo, linear ou multidimensional; realidades eternas não podem ser intuídas por meios psíquicos.

O plano espiritual, por outro lado, é puramente objetivo. Ele não é composto de nossas impressões, mas de coisas que recebemos impressões - dos númenos que transcendem a experiência dos sentidos e não dependem, para sua existência, que estejamos conscientes deles, assim como - no nível de experiência sensorial - a montanha fora de nossa janela realmente está lá, mesmo se estivermos olhando-a ou não. O plano espiritual é o domínio das primeiras manifestações inteligíveis ou "nomes" de Deus - dos princípios metafísicos não são simples idéias abstratas, mas realidades vivas que têm poder, em condições adequadas, para dominar, guiar, purificar, e em conformar nossa psique para "salvar nossas almas."

Portanto, as realidades espirituais transcendem a experiência subjetiva. Mas sem experiência, elas não são eficazes para nos iluminar e nos salvar. As experiências espirituais, então,  - aquilo que os Sufis chamam de ahwal ou estados espirituais (que são elementos espirituais do caminho espiritual) - são experiências psíquicas que não são fundamentadas naquele que está experimentado, mas nas realidades objetivas que transcendem o domínio dos sentidos - nos Nomes de Deus. Estar sujeito a um estado espiritual é ter uma intuição intelectiva direta de uma realidade espiritual objetiva que transcende o estado em questão; onde o estado subjetivo pelo qual é intuído sempre velará e desvelará; e, se as realidades espirituais parcialmente transcendem nossa experiências subjetiva delas, Deus transcende nossa experiência Dele absolutamente. Experimentar Deus é ser chamado para transcender imediatamente aquela experiência necessariamente limitada Dele, e entrar em contato existencial puro com Ele como Ele é em Si mesmo, além de toda a experiência; como os Sufis dizem, "o ser humano não conhece Deus em Sua Essência Absoluta; é Deus que conhece a Si mesmo na forma humana". A prática Sufi de contemplar a Deus dessa maneira é conhecida como Fikr, que pode ser definida como "o sacrifício contínuo de toda concepção do Absoluto, gerado pelo Absoluto, em face do Absoluto."

Assim, podemos dizer que as realidades espirituais são objetivas, e que Deus, a Fonte de todas essas realidades, é o Objeto Absoluto. Mas, "objeto" aqui não significa "qualquer coisa que seja percebido por um sujeito limitado como algo diferente de si mesmo"; tomado neste sentido, "objeto" é relativo aquele sujeito limitado e assim participa de sua subjetividade. Deus, como o Objeto Absoluto é igualmente a morada do Sujeito Absoluto, a Testemunha Absoluta, aquilo que os Hindus chamam de Atman, o que Frithjof Schuon chama de "Sujeito absoluto de nossas subjetividades contingentes." A Testemunha Absoluta se situa "atrás" de todas experiências psíquicas, testemunhando-as impassivelmente, não se identificando com elas; aqui se encontra a diferença exata entre a psique e o Espírito.

Não podemos alcançar Deus através da psique, através da experiência; a essência do caminho espiritual é colocar-nos na presença de Deus e deixar que Ele nos alcance. Ele pode fazer isso através de experiências, através de eventos, ou através de uma ação secreta dentro da alma que não somos sequer conscientes. A função das experiências espirituais, ou estados, não é "enriquecer a alma" com impressões fascinantes do Divino, mas queimar aspectos específicos do ego, apegos e identificações específicas; é por isso que o Sufi realizado, aquele que transcendeu a si mesmo, que morreu para si mesmo, torna-se objetivo para si mesmo - ou melhor, para a Testemunha Absoluta dentro de si - está inteiramente além de todos estado espirituais.

SBS: Dando sequência a este assunto, o que você pode dizer sobre a hipótese que a busca pela expansão da consciência - ou por um estado alterado de consciência - é um fim em si mesmo, como se fosse uma norma humana desejável que contradiz os princípios pereniais - "o objetivo não é estados alterados, mas traços alterados." Esta abordagem perigosa muitas vezes envolve uma mistura ad hoc de técnicas espirituais ao invés de uma aderência persistente em uma forma espiritual ortodoxa. Você poderia por favor falar sobre esse desenvolvimento confuso?


Charles Upton: Isso tudo é uma espécie de desespero, bem como uma indicação que o colapso das religiões tradicionais reveladas, conduzindo a uma Religião Única Mundial, constituída de fragmentos resultantes, - um desenvolvimento que resultará no regime do Anticristo - está prosseguindo de forma programada.

Na medida que as religiões degeneram, o sentimento da realidade de Deus é progressivamente substituído por uma obsessão com a moralidade como um fim em si mesmo, e o fervor religioso considerado como um fim em si mesmo, ambos tomados fora de seu contexto próprio. A pureza moral já não é sentida como algo que naturalmente devemos a Deus em vista de Seu amor por nós e pelo fato de que Ele nos criou, mas algo que nos impede de cair na ingratidão de adorar as paixões como ídolos em Seu lugar; assim, a moralidade se torna-se um ídolo em si mesma. Da mesma forma, o fervor perdeu de vista o Deus que supostamente lhe inspira, tornando-se um substituto de Sua presença em vez de uma resposta a ela. Em vários dos hinos protestantes contemporâneos, por exemplo - ou canções contemporâneas de "pop" Cristão - os cantores cantam principalmente sobre seus próprios sentimentos e não sobre Deus.

De igual modo, vários programas de "estudos da consciência", atualmente disponíveis na academia, tendem a concentrar-se em estados subjetivos de consciência, bem como nos sistemas de crenças que lhes dão suporte e as técnicas pelas quais às vezes podem ser produzidas ao invés de compreender os estados espirituais como reflexos de uma ordem metafísica objetiva e, assim, como instâncias de conhecimento ao invés de simples experiências.  De acordo com a doutrina Sufi, os estados espirituais não são aquisições, mas dons de Deus. Ele os envia a fim de "queimar" paixões específicas, apegos e nós-egóicos; depois que os apegos são dissolvidos, aquele estado particular não retorna. Por exemplo, o hábito de um medo neurótico, queimado por um estado (hal) de um amor extático, é transformado em uma estação (maqam) de coragem e equanimidade; assim, um "estado" temporário resultou em um "traço" estabelecido. E o Sufi totalmente realizado é dito estar além de ambos estados e estações, uma vez que ele já não mantém mais um ego separativo que possa ser sujeitos aos mesmos; ele atingiu uma realização metafísica objetiva. Quando a fé tradicional é forte, é uma fonte de segurança e certeza para os fiéis; eles sentem que estão na presença dos sagrados mistérios. Mas quando as religiões tradicionais enfraquecem, certas pessoas que estariam espiritualmente satisfeitas por simplesmente viver dentro de um ambiente e uma tradição sagrada, e que teriam salvado suas almas, concebem o desejo de uma relação direta mística com Deus, de modo a compensar o que foi perdido - uma relação que pode não ser, de fato, adequada para eles. Eles imaginam que essa relação só pode resultar de um extravagante tour-de-force espiritual - e as drogas psicodélicas imediatamente aparecem como uma maneira plausível de tomar esse caminho. Mas os psicodélicos, bem como as várias técnicas espirituais, tal como o yoga não-tradicional secularizado, são frequentemente abordados em função de um contexto limitante e falso, onde as pessoas buscam libertarem-se de uma vida espiritual como um exercício da vontade-própria (como no caso da moralidade compulsiva), e de Deus concebido como uma experiência ao invés de uma Realidade (como no caso do fervor auto-centrado, por exemplo, que diviniza a experiência e que pode ser descrito como uma espécie de "pentecostalismo não-cristão"). Na ausência de um senso de Graça de Deus, baseado na fé, que São Paulo chama de "o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem", nada é possível na vida espiritual além de uma tentativa Prometéica de tomar o céu por assalto e um narcisismo espiritual - duas patologias que estão intimamente relacionadas entre si e que nunca aparecem separadas. A vontade de cortar relações com o Intelecto espiritual (que está virtualmente em vigor, sempre que a Fé a Graça estão presentes) produz o prometeísmo; a alienação das afeições do Intelecto produz narcisismo.

É bastante interessante que as drogas psicodélicas entram em cena precisamente no mesmo momento em que o Concílio Vaticano II estava abolindo o Catolicismo Romano tradicional e desconstruindo a ordem sacramental. É como se a graça dos sacramentos Católicos Romanos, enquanto estavam intactos, transbordavam - em seu contexto especificamente Católico - e mantinham um certo nível de elevação no "inconsciente coletivo" do mundo ocidental, uma elevação que foi rapidamente perdida quando a graça foi cortada. Diante de um repentino senso - inconsciente ou semi-consciente - de perda espiritual, e a sensação sufocante que sempre surge quando a psique é cortada do plano do Espírito, a coletividade ocidental tornou-se suscetível à tentação dos psicodélicos, que, pelo menos, pode proporcionar (embora não sem consequências extremamente negativas) uma expansividade psíquica horizontal, que surge para compensar - e por vezes, em verdade, falsifica -  a perda de uma elevação espiritual vertical, enquanto ao mesmo tempo esconde o fato de que essa perda já ocorreu. Psicodélicos, em outras palavras, se tornaram uma espécie de "prêmio de consolação" luciférico oferecido como compensação pela queda da cristandade ocidental. 


SBS: Os defensores e os pesquisadores dos psicodélicos afirmam que, devido ao fato de que as propriedades psicoativas se encontram naturalmente em algumas plantas (e até são endógenos ao corpo humano), esses têm sido utilizados em rituais sagrados por todo o mundo desde tempos imemoriais. Sugerem que eles podem ter sido os precursores de fundação das próprias religiões. Tem sido sugerido que essas plantas que alteram a mente eram os componentes centrais do Soma do Rig Veda ou do Hoama do Avesta, identificando como nada menos que o cogumelo Amanita muscaria, e que o principal rito dos mistérios elusianos (dizem que Platão, Aristóteles e Epicteto foram inciados), o Kykeon, supostamente seria o fungo ergo que contém alcaloides psicoativos como o LSD (ácido lisérgico e dietilamida); também se afirmou que o Manna da Bíblia Hebraica era um psicodélico. O uso de cogumelos psicoativos também têm sido atribuído ao culto de Mitra, e dizem ter sido utilizado no Egito antigo e até mesmo nas origens do Cristianismo. Poderiam as drogas psicodélicas serem a verdadeira origem de qualquer religião revelada particular? Quais são seus pensamentos sobre essa importante discussão?

Charles Upton: Uma vez que as religiões são fundadas por uma ação Divina através de profetas e avatares (talvez com exceção do Budismo, embora Gautama Buddha também seja considerado ser o nono avatar de Vishnu, dentro da tradição Hindu), dizer que elas foram iniciadas por psicodélicos é negar que Deus possa ter Sua própria iniciativa e isso é, consequentemente, negar Deus. É fazer da "religião" algo inteiramente humano e, portanto, postular algo que não se encaixa na própria definição dessa palavra. Nenhuma tradição religiosa afirma ter sido fundada com base na experiência psicodélica; tais afirmações emanam de usuários de psicodélicos que gostam de projetar suas fantasias em tradições que eles de modo algum pretendem seguir. Qualquer um que pensa que Moisés encontrou com Deus no Sinai ou que Jesus se tornou "Cristo" depois de comer alguns cogumelos, porque de outra forma como poderiam eles terem feito isso, não tem qualquer senso do sagrado. Dentro de certos contextos e em certas yugas talvez fosse espiritualmente possível abrir aos iniciados as graças de um caminho espiritual já estabelecido através do uso de psicodélicos, mas tais coisas certamente não são possíveis em nosso tempo, exceto por um grande custo - e com que moeda poderíamos pagar esse custo, pobre como nós somos? Em todo caso, é certo que o estabelecimento de um caminho espiritual legítimo através do uso de psicodélicos nunca foi possível e nem necessário.

SBS: Embora a filosofia perene reconheça as tradições Xamânicas dos Primeiros Povos, um desafio central para a noção que os enteógenos ou psicodélicos foram utilizados desde os tempos mais antigos é que, desde o "começo dos tempos" ou "pré-história" - que alguns sugerem ser em torno de 5000 a.C - quando contextualizados dentro do tempo cíclico, é provável que se encontre na Kali Yuga ou Idade de Ferro, na culminação deste ciclo temporal ou na melhor das hipóteses, no Dharma Yuga ou Idade de Bronze, a fase que precede a idade final. Dessa maneira, o uso de plantas sagradas que possuem propriedades psicoativas ocorreram no final do ciclo cósmico (manvantara) e não no seu inicio, na Krita-Yuga ou Satya-Yuga, conhecido como a Idade de Ouro na cosmologia ocidental. Isso apoiaria a observação do proeminente historiador de religião, Mircea Eliade (1907-1986), que "o uso de intoxicantes... é uma inovação recente e aponta para uma decadência na técnica xamânica." Você poderia por favor elaborar sobre a perspectiva perenialista quanto a este ponto?

Charles Upton: Eu concordo com a opinião inicial dos psicodélicos; quando uma tradição espiritual se degenera, não há como dizer o que as pessoas irão tentar a fim de recuperar o que se sente que perdeu. Talvez, se Deus quiser, algo pode ser parcialmente recuperado através dos psicodélicos sob certas condições cósmicas - condições que certamente não desfrutamos hoje - mas, a própria tentativa de recuperar uma exaltação espiritual antiga é uma evidência de uma degeneração. A Krita-Yuga foi caracterizada por uma "consciência teofânica em massa" em que os psicodélicos não eram necessários; nas palavras do Gênesis, a humanidade "passeava com Deus no jardim ao entardecer." Na minha opinião (e eu estou aberto à correção), o xamanismo começou na Tetra-Yuga ou Idade de Prata, quando o ambiente cósmico estava sujeito a desequilíbrios devido às incursões demoníacas que os xamãs - como eles mesmos se intitulam, de acordo com Eliade - foram enviados por Deus para corrigir. E, como os xamãs de nossos tempos têm afirmado, de acordo com Eliade, seus antepassados eram imensamente mais poderosos que eles, e não precisavam de psicodélicos; de modo que o uso da "muleta" psicodélica, sem dúvida, veio mais tarde que a própria dispensação xamânica. Também de grande interesse é o fato de que a visionária Cristã e estigmatista Anne Catherine Emmerich (1774-1824), em seu livro A Vida de Cristo e Revelações Bíblicas, com base em suas visões, menciona um patriarca não-bíblico Hom, que ou foi nomeado posteriormente, ou forneceu um nome para uma planta que considerava sagrada. Essa planta, na minha opinião, é a planta Haoma, dos antigos persas, equivalente ao Soma védico. De acordo com Emmerich, a linhagem que ia desde Hom, que incluia um tal Dsemschid (sem duvidas, o lendário rei persa Jamshid), tornou-se poluída com fantasias satânicas e, embora aparentemente ela não tenha reconhecido a planta em questão como intoxicante, é altamente improvável que Emmerich, uma camponesa quase analfabeta de Vestefália, teria algum conhecimento da história Persa ou erudição Zoroastra, muito menos sobre os efeitos de um psicodélico exótico. Por isso, pode muito bem ser verdade que o uso de tais plantas, pelo menos para além da era cósmica que poderiam ter permitido sua utilização sobre certas condições, representa um desvio verdadeiramente antigo na relação da humanidade com Deus. (Não se deve esquecer, no entanto, que de acordo com René Guénon e Ananda K. Coomaraswamy, o Soma e Haome, em seu sentido simbólico mais elevado, não são plantas psicoativas, mas a fonte da "Bebida da Imortalidade" que retorna a forma humana ao seu fitra, ao seu estado edênico primordial, antes da Queda. Em outras palavras, eles simbolizam um determinado estágio da realização espiritual.)

Quanto à opinião do Eliade que o êxtase psicodélico é idêntico ao êxtase produzido por outros meios, eu especulo que ele disse isso só porque ele mesmo experimentou os psicodélicos e não tinha mais nada que pudesse compará-los. Ele era um estudioso incomparável de religião, mas ele não tinha uma fé religiosa; ele caracterizava as religiões, os mitos, as crenças metafísicas como "criações artísticas" referentes a nenhuma realidade objetiva; ele as colocava no plano psíquico e não no plano espiritual.

SBS: Existe a noção que o uso do peiote (Lophophora williamsii) através da sincretista Igreja Nativa Americana (NAC) é compatível com os outros ritos xamânicos tradicionais que originalmente não utilizavam esta planta. Por exemplo, há alguns que sugerem que a religião da Dança do Sol é compatível com o uso de peiote (alguns até mesmo introduziram a Ayahuasca ou Yajé neste ritual sagrado). No entanto, autoridades espirituais tradicionais dentro dessas comunidades, tais como
o curandeiro e chefe da Dança do Sol, Thomas Yellowtail (1903-1993), sugere exatamente o contrário, que eles não são compatíveis e que tal sincretismo ou mistura de elementos estrangeiros, como o peiote são, de fato, perigosos, e podem ser espiritualmente prejudiciais, sem mencionar que eles não fazem justiça com nenhum dos caminhos espirituais e acabam diluindo cada tradição, levando à morte de ambas. Você tem alguma opinião sobre isso?

Charles Upton: Yellowtail está correto.

SBS: Juntamente com a Igreja Nativa Americana (NAC), há também o fenômeno da bebida psicoativa Ayahuasca ou Yajé na America do Sul, que tem sido amplamente explorada e disponibilizada em todo mundo através das igrejas sincréticas do Santo Daime, fundada pelo Mestre Irineu ou Raimundo Irineiu Serra (1892-1971), e pela União do Vegetal (Centro Espírita Beneficente União do Vegetal ou UDV), fundada pelo Mestre Gabriel ou José Gabriel da Costa (1922-1971), que combina Catolicismo, Espiritismo de Allan Kardec (1804-1869) e Xamanismo Africano e Sul-Americano. Em conjunto com isso, precisamos mencionar que a busca por experiências místicas também trouxe o fenômeno do "turismo espiritual" para partes remotas  da bacia amazônica e tem trazido efeitos nocivos as sociedades tradicionais que vivem nessas áreas, estendendo-se a todas as tradições sapienciais. Você poderia falar sobre esses fenômenos interessantes, que são, sem dúvida, uma marca do pensamento New Age?

Charles Upton: Sincretizar diferentes formas do sagrado, assumindo que são originalmente verdadeiros caminhos espirituais, e não simplesmente "tecnologias" psíquicas, é relativizar e subjetivar-las e, assim, conduzir tudo para baixo, para o nível da psique ao mesmo tempo vedando o acesso ao Espírito; e isso equivale a invocação demoníaca. E, se as práticas em questão são fundamentalmente psíquicas, misturá-las só pode gerar ainda mais caos. A Unidade Espiritual é superior a multiplicidade psíquica e engloba-a, mas, uma vez que a Unidade do Espírito é velada, vem a ideia "Você quer dizer que você só tem um deus? Vocês são espiritualmente privados! Temos centenas" - o "reino da quantidade" com força total! O problema com esta abordagem é que nenhum desses vários deuses pode ser a Realidade Absoluta, nem mesmo um símbolo psíquico dela - pois, por definição, você não pode ter mais de um Absoluto. E o caos psíquico criado pela mistura do Xamanismo Africano e Sul Americano com o Catolicismo e o Espiritismo Europeu só pode ser comparado com com a reprodução da música de Bach, de Moody Blues, Charlie Parker e Inti Illimani todas ao mesmo tempo - uma prática que só conseguiria destruir toda a presença da mente e unidade da alma do ouvinte. É claro que algumas pessoas gostam desse tipo de coisa; em vez de transcender sua individualidade, através da ascensão espiritual, eles simplesmente preferem quebrá-la, e, consequentemente, afundar pra baixo dela, para o nível infra-psíquico. É o chamado "pós-modernismo".

E o turismo espiritual em lugares como a Amazônia causa danos não somente as culturas indígenas, mas também aos turistas. (Recentemente vi uma notícia sobre uma aldeia que proibiu tal turismo; um aldeão chamou de "assustador" os estranhos norte-americanos que lhe visitaram e imediatamente pediram para que falassem tudo sobre os rituais sagrados locais e suas crenças.) Quando os "norteamericanos" e os europeus endinheirados entram nas aldeias sujas e pobres da Amazônia e em outros lugares à procura de satisfazer sua fome espiritual, uma fome baseada no abandono de sua própria tradição espiritual (geralmente o Cristianismo), eles tentam seduzir os anciões da aldeias que troquem coisas sagradas por dinheiro (um pecado que os católicos tradicionais chamam de simonia). Turistas espirituais não são em geral peregrinos, mas ladrões, vampiros. Na maioria dos casos eles não estão à procura de um caminho espiritual para dedicar suas vidas, mas simplesmente pegando aqui e ali qualquer objeto de arte sacra, ou experiências psicodélicas, ou rituais sagrados degradados ao nível de mero espetáculo que se adequem a suas fantasias - isso quando não é o caso de serem em verdade feiticeiros em busca de "poder pessoal". Muitas vezes seu tipo é psíquico em vez de espiritual; como a maioria dos turistas, eles estão buscando por "experiências", não por princípios para viver. Eles deixam para trás as influências destrutivas de suas próprias atitudes profanas pós-modernas, e voltam para casa poluídos com os resíduos psíquicos tóxicos das formas sacras que saquearam de modo a liberá-las para fazer estragos dentro de suas próprias culturas.

SBS: Outro ponto importante a discutir é que, embora exista sociedades tradicionais xamânicas que ainda hoje utilizam plantas psicoativas em seus ritos sagrados, - i.e. os Huichol, Tarahumara, Cora, Mazatec, Bwiti, Kayapo, Fang, Mitsogo, Jivaro, Yanomami, Koryak, etc - isso não significa necessariamente que aqueles que estão fora desses grupos raciais e étnicos também terão a mesma resposta espiritual e benéfica com o uso dessas plantas. É como se aos diferentes povos indígenas foram dadas diferentes plantas medicinais específicas para sua constituição humana e contexto ecológico. Você poderia por favor falar sobre este tema  sensível, pois, talvez seja, "politicamente incorreto"?

Charles Upton: Isto é, sem dúvida, verdade em muitos casos. Se pela invocação do divino nome Allah não se espera que seja espiritualmente fecundo para um Budista, então, pela mesma razão, o uso de certas plantas psicoativas fora de seu contexto tradicional e ritual, é provável que não tenha o mesmo efeito que teria dentro desses contextos, e provavelmente terá um efeito negativo. Essas transferências psíquicas e culturais podem ser comparadas - com precisão - ao colapso de ecossistemas distintos e independentes. A Carpa Asiática estão muito bem na Ásia; nos Grandes Lagos elas são um desastre. E aqueles que esperam se beneficiar com as cosmovisões sagradas dos Huichols, dos Tarahumara ou da Igreja Nativa Americana, deveriam estar dispostos a viver sob as mesmas condições de privação, opressão e marginalização social, como os Huichols, os Tarahumara e a Igreja Nativa Americana. Se você quer a espiritualidade da Reserva, aceite o sofrimento da Reserva. O Xamanismo, mesmo aquele relativamente degenerado, tem uma certa justificativa prática em condições verdadeiramente primitivas, uma vez que representa grande parte da herança tecnológica da tribo. O xamã cura as doenças,  cria os jogos, desenvolve as investigações criminais, influencia o tempo, protege a tribo em guerra, e protege contra os desequilíbrios psicológicos e / ou incursões demoníacas. Mas, sob condições modernas, quando ao menos algumas dessas funções podem ser cumpridas por outros meios, o xamanismo perde certo grau de sua razão de ser. Jean Cocteau (1889-1963), cineasta e poeta francês, conta a história de um antropólogo que estava estudando as tradições populares dos nativos no Haiti, onde as árvores são (ou eram) utilizadas para a comunicação de longa distância; quando o marido de alguma mulher estava longe, no mercado, ela podia enviar uma mensagem para ele conversando com uma árvore e recebia a resposta pela mesmo meio. Quando o antropólogo perguntou por que os nativos falavam com as árvores, responderam "Porque somos pobres. Se fôssemos ricos teríamos um telefone." Na minha opinião, pessoas do ocidente pós-moderno, cuja natureza psicofísica ainda não está totalmente integrada ao Espírito, ou pelo menos totalmente submetido a Ele - uma condição extremamente rara em nosso tempo - nunca deveriam ter contato com o xamanismo das culturas primitivas, uma vez que os ocidentais não possuem a proteção fornecida por um conjunto espiritual  básico e os caracteres de formação dessas culturas. O caso raro e excepcional é da pessoa que, pela graça de Deus, encontrou e foi aceito, não somente por um curandeiro ou um xamã tradicional, mas por um verdadeiro homem santo dos caminhos espirituais primitivos - no entanto, como ele ou ela poderia, em primeiro lugar, reconhecer tal homem santo, é difícil de imaginar. 

Entrevista publicada no livro Psychology and the Perennial Philosophy: Studies in Comparative Religion
por Samuel Bendeck Sotillos