quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Aspectos da Subversão (por Jean Bies)

Demagógica por vocação e necessidade, a Subversão encontra terreno nas áreas políticas e sociais. Sabe que suas chances de sucesso são maiores aqui do que em áreas sob controle humano, muito humanos, e que a ordem estabelecida oferece mais deficiências do que qualidades: nenhum regime temporal jamais fez todos felizes. Assim, de certo ponto de vista, as escandalosas prerrogativas da Igreja Romana no final da Idade Média, ou o lento crescimento tecnológico que afetou a Rússia sob o domínio dos czares, ou o Império Médio na China no início do século XX foram capazes de justificar reformas radicais; eram ainda mais destinados ao sucesso, uma vez que as estruturas que atacaram tinham as marcas de desgaste e dilapidação. Mas, assim como um poder atual tende a assumir uma posição mais dura em seus direitos, a negligenciar seus deveres e ceder às tentações hegemônicas, a Subversão também se torna mais questionável a partir do momento em que, embriagada com suas conquistas, revela sua verdadeira natureza e começa a adotar o que desprezou no sistema que está substituindo.

A subversão sempre recorre a linguagem dúbia. Após ter encorajado a desordem por tanto tempo quanto necessário, dedica-se a transmitir sua ordem como a única que é real e justa; ou seja, no caso de resistência passiva e inconsciente, insinuando-se nas mentes pelo condicionamento gradual adaptado às circunstâncias, ou, no caso de resistência ativa, impondo-se sobre eles com força e terror. Em seu plano, faz com que desacreditem antecipadamente tudo o que corre o risco de opor-se a ela. Por exemplo, para contestar a ideia de hierarquia, proclamam a igualdade absoluta entre os homens, mas para fazer isso criarão hierarquia invertidas e paralelas, e quando as anteriores são finalmente destruídas, irão impor suas próprias hierarquias, como as únicas legítimas. Enquanto contestam os princípios do lado oposto, tomarão emprestados quando descobrirem que são eficazes. Deste modo, irão denunciar a castidade dos religiosos como algo sendo antinatural, mas serão capazes de impor aos seus ativistas, não como um método de espiritualização, mas como um treinamento para a rigor moral e a concentração de energia para servir a causa do ideal revolucionário. Isso não irá impedir que corrompam ao mesmo tempo a alma do meio social que querem atacar com sugestões pornográficas e libertinagem. Não agindo abertamente sobre si, a Subversão empurrará todos seus peões em todas cenas da sociedade. Corroerá a sociedade por dentro. Tomarão e usarão a boa vontade daqueles que ignoram como estão sendo usados como instrumentos; especialmente, muitos idealistas e os vagos intelectuais - "os últimos dos imbecis" disse Bernanos - impulsionados pelos ditados do pensamento teórico e por um sentimentalismo ingênuo, sempre prontos parar correr ao resgate de causas falsas. Aqueles que são realmente responsáveis estão, obviamente, por trás, mantendo a guarda para evitar de serem capturados. Em tempos difíceis como esses, é difícil não ficar, inconscientemente, do lado das forças que se despreza ou mesmo que se pretende combater, ainda mais difícil é saber o que eles são.

É fácil observar o processo que, de acordo com as leis cíclicas, permitiu o estabelecimento de classes sociais substituindo as castas, aumentando e reforçando os valores mais baixos e eliminando gradualmente aqueles que impediam ou evitavam a degeneração. Com o enfraquecimento dos indivíduos, as sociedades enfraquecidas veem as forças criativas diminuírem e as referências à fonte transcendente, dispensadora de energia, desaparece. O hábito e a rotina substituem as iniciativas, prejudicam as invenções; o mundo perde o frescor do início da manhã, sua espontaneidade nativa. A destruição das autoridades naturais e o massacre ou suicídio da elite deixam um campo limpo para o desabrochar do obscurantismo. Um revestimento estéril estabelece-se sobre o melhor; o desânimo faz o resto. Os únicos "grandes homens" reconhecidos são recrutados entre os incompetentes. A subversão confia-lhes suas maiores responsabilidades, consultando-os como oráculos infalíveis. A morte de uma estrela transitória e insignificante mergulhará uma nação inteira em desespero; a de um sábio que detém respostas nem sequer será mencionada nos órgãos de informação. Aqueles que ainda seriam capazes de ter certas respostas serão prudentemente deixados de lado como iluminadores e problemáticos; e os denunciadores da Subversão passarão por subversivos! Eles mesmos não farão nada para serem ouvidos, a não ser uma minoria que escapará da supressão, sabendo que em tais graus de cegueira sua mensagem seria importuna, inaudível ou confiscada e que qualquer uso imprudente de energia seria tão inútil quanto uma voz gritando no deserto.

Quando as coisas chegam a este ponto, as fissuras na Grande Muralha se alargam para tornarem-se portas a fim de que as hordas da Subversão possam entrar. Os últimos não tem problemas em satisfazer o que há de mais baixo no ser humano:  a vulgaridade, a mediocridade, a subserviência burocrática mesquinha, o ciúme, todos os elementos apaixonados que estão apenas esperando para serem despertados. Também não tem problemas em tornar as últimas chances de salvação detestáveis, espalhando confusão em confusão, destruindo a perspicácia da mente, seu senso de proporções, e substituindo-os por mitos capitais que só podem ter controle sobre mentes incultas. E, graças às técnicas avançadas, já não é necessário explorar os rumores, a histeria, as recusas e os desvios, para estabelecer um clima de permanente incerteza e instabilidade a fim de desviar os verdadeiros problemas que são e permanecem sendo aqueles da interioridade. Num silêncio trêmulo, numa hipocrisia abafada, o indivíduo já não pensa nem fala; ele será pensado e falado. Mil influências sutis o apertarão, o moldarão, ao mesmo tempo em que o estabelecerão como o responsável e o tomador de decisões.

A Subversão é muito boa em organizar a vida de tal forma que o negócio, bem como o prazer (conhecido como "atividades organizadas") contribuam para diminuir o nível mental do maior número de pessoas possíveis. Ela segrega a incomunicabilidade entre as pessoas: o homem, um estranho para si mesmo, "alienado", só pode ser um estranho para os outros; ela estabelece relações sociais insalubres, marcadas com indiferença ou vigilância recíproca, rancor e brutalidade: os homens da Age de Fer (Idade de Ferro) são eles mesmos en fer (feitos de ferro) - o que os coloca no Enfer (Inferno). Um Inferno que eles impõem aos outros porque que os outros sejam isentos é algo intolerável para eles: Inferno, também, é contagioso. Isso obriga os indivíduos a terem atividades pálidas, sem qualquer interesse real, tirando tanto tempo possível deles - tempo que se torna ainda mais precioso na medida que se esgota - de modo que eles são confrontados o menos possível com eles mesmos, com a memória das "únicas necessidades da vida (solum necessarium)". Tudo é bom, desde que as "únicas necessidades da vida" não sejam servidas, desde que ninguém pense nelas, o que elas significam ou qualquer interesse que possam ter, e que passem como as únicas coisas que são inúteis e desnecessárias. Para desviar o homem, a Subversão multiplicará as preocupações sobre o bem-estar, os conflitos nas relações humanas, as dissensões familiares, a escravidão social, a mediocridade e a mesquinhez, o incomodo do tédio burocrático, as reuniões obrigatórias, as discussões sem fim, o assédio, as perseguições disfarçadas e até as recompensas...


Como um empenho colossal para demolição, ela começa discretamente como rumores modificando as tendências energéticas, provocações e denúncias constantes, e termina com a vasta manipulação de intimidação ideológica, lavagem cerebral, campos de correção, execuções sumárias. Quando a Subversão atingiu seus objetivos, quando toma posse da maquinaria estatal, da força policial, das agências de informações, das editoras, dos departamentos sociais e culturais, das hierarquias sociais, eclesiais, universitárias e militares, quando tudo já pertence, embora nada pareça ainda pertencer, então pode-se considerar que essa sociedade não é nada mais do que uma mera sombra do seu antigo ser. Da mesma forma como a decomposição de um cadáver cujos ossos emergem depois que a carne já desapareceu, as estruturas sociais permanecem, mas a consciência motriz e criativa foi dissolvida e aniquilada. A Subversão se sobressai em misturar a verdade com o erro. Regularmente transmitida às novas gerações, essas falsificações oficiais entronadas, inteligentes ou laboriosas, são vistas então como tradições anti-tradicionais.

 Em parte alguma isso é mais evidente do que no campo da informação universitária. A escolha de autores e textos, as imagens que os ilustram, a omissão de partes embaraçosas, o sublinhado, contribuem para a alteração ou desvio da realidade objetiva. História oferece uma área privilegiada para esse tipo de manipulação de acordo com as opções ideológicas daqueles que a narram. Em história domina-se a arte de isolar os eventos fora de seu contexto, interpretando o comportamento mágico através da mentalidade moderna, condenando-se, assim, a não compreender os acontecimentos, evitando aquilo que iria contra os preconceitos do messianismo progressista.   Foi esquecido, por exemplo, que os erros cometidos pelos imperadores da China eram punidos pela rebelião do povo; quanto aos reis nórdicos, eles eram levados a julgamento em consequência de calamidades sociais, que mostravam sua desqualificação; ou até mesmo sobre a condição das mulheres: elas tinham o direito de votar nas prefeituras medievais. Todo esforço é feito para desprezar qualquer coisa que não atenda às exigências dos dogmas estabelecidos, identificando abusivamente o que é representado e seu representativo. Da mesma forma como a medicina seria condenada sob o pretexto de que existem charlatães, toda religião será condenada por completo por causa de alguns maus monges. Certas correções embaraçosas serão mantidas em silêncio. Imagina-se como é fácil influenciar as mentes jovens que, por definição, são receptivas e maleáveis, ainda privadas de um senso crítico, sensíveis à suposta neutralidade objetiva, mas sem qualquer argumentação contrária. 

Muito mais instrutivo do que a História oficial seria as possíveis investigações na "metapolítica", cujo papel no nível da guerra oculta não pode ser negligenciado. As palavras de Disraeli são bem conhecidas: "O mundo é governado por personagens muito diferentes do que se imagina por aqueles que não estão por trás das cenas." Rapidamente surgiria como trabalho delicado na História a existência de tramas por lealdades rivais, planos projetados e seguidos passo a passo por promotores clandestinos. A desinformação - estranhamente camuflada pela sobrecarga de informação - a desorganização, a destruição dos últimos valores em vista do planejamento da humanidade no nível mais baixo, certamente não são apenas efeitos do acaso, mas a aplicação de uma vontade implacável e de programas concentrados, nos quais a desmoralização daqueles cuja derrota é desejada também está incluída. Sem dúvida, a situação real do mundo requer uma consideração lúcida; e seria enganoso ignorar os aspectos mais ameaçadores. No entanto, tal reconhecimento, se seu único objetivo for para trazer desespero, só poderia servir a Subversão. Deve-se ter por objetivo informar a consciência das pessoas e torná-las conscientes, não para impedir o colapso do império, mas para ficar atento aos sinais daquilo que deve ocorrer.

* * * 
Se olharmos agora para o mundo da arte, veremos que o mundo moderno apresenta a imagem de uma "civilização sem cultura" ou, na melhor das hipóteses, uma "cultura sem conhecimento".

Se ainda existem algumas obras de artes sérias isoladas, o abismo que separa as obras atuais da poesia mística do sufismo ou do teatro elisabetano, das catedrais góticas ou dos templos hindus, e o corpus metafísico tanto do Oriente como do Ocidente, é imenso. Até mesmo a admiração pela conquista científica rapidamente perde seu brilho; "milagres técnicos" já não geram entusiasmo entre as multidões que já estão entediadas ou sempre famintas por outra coisa. O talento é frustrado. Detectável atrás do desperdício da vocação está a visível assinatura da Subversão que sabe muito bem que "com a destruição da inteligência (buddhi) o homem perece."


E isso começa com a destruição da linguagem. O intenso consumo de palavras enfraquece-as, seca o seu sabor. Usá-las sem distinção ou limite esgota seu efeito mágico, sua intensidade e densidade. O recurso sistemático à linguagem grosseira quando não há razão para isso é suposto para substituir os termos usados em excesso, enquanto se espera a sua vez para ser elas mesmas usadas em excesso. A criação de acrônimos às vezes impronunciáveis é multiplicado por expressões abstratas reduzidas a iniciais. As palavras são desviadas de seu significado original, a ponto de significar o contrário; várias línguas são misturadas sem qualquer princípio orientador; os termos mais severos são utilizados para assuntos mais insignificantes; os significados espirituais são utilizados no nível mais profano. Uma técnica ainda mais sutil consiste em remover subrepticiamente um certo número de palavras de dicionários com o pretexto de que elas não estão mais no uso corrente ou são incompreensíveis para a maioria. É arriscado que que essas palavras tragam noções filosóficas ou espirituais; os conceitos que elas englobam desaparecem com elas. O que é praticado no mesmo nível das palavras é praticado com o nome das pessoas. Com a conspiração do silêncio, a verdadeira paródia da "lei dos segredos" praticada nas irmandades iniciáticas, os sistemas e doutrinas que comentem o erro de não seguir o "rumo da História" serão suprimidos. Consequentemente, algumas questões importantes são cuidadosamente omitidas dos debates; os trabalhos de mentes eminentes, precursores condenados à solidão, a retirar-se ao passado e desaparecer da memória; a queda generalizada do pensamento ocorre periodicamente, sem que o público seja informado. 


Nenhum campo é poupado pela Subversão: tudo é de sua conta. Na publicidade, a ortografia é desfigurada e alterada; se fala em livrar-se dela sob pretexto de que contribui para manter a opressão! A natureza aproximativa do estilo e da sintaxe, combinada com a do vocabulário, leva à pobreza e a diminuição de um pensamento incerto e perturbado que reflete uma psique derrotada.  O último enclave de uma linguagem sagrada é a poesia, mas a perda de interesse do público nela é bem conhecida, a não ser que se escolha trancar-se em uma obscuridade ilegível ou na propagação de palavras cancerígenas. Aqui, muitos dos sintomas do fim de uma linguagem estão presentes. No entanto, acontece que o fim de uma linguagem é o fim daqueles que a falam, na medida em que é inerente à sua atitude, psicologia e sensibilidade única.

A "nova música" que só consegue se estabelecer por meio de terrorismo cultural está em um beco sem saída desde a primeira metade do século XX - época em que Schoenberg inventou a "técnica serial". Renunciou-se o sistema de intervalos, à relação hierárquica entre as notas. Sua distinção entre o fundamental, a nota-chave, a nota condutora e a dominante expressava as relações que os sistemas politonais e atonais se emaranhavam sem destruir-se; mas seu desaparecimento arruína qualquer possibilidade de "comunicação". A arte musical contemporânea abunda em colagens sonoras, em peças aleatórias e repetitivas (paródias de encantamentos); multiplica-se as dissonâncias, rompe os ritmos, reproduz-se em seu modo a violência fragmentada da psique ocidental.  Ao integrar os elementos sonoros de origem elétrica, submetidos a tratamentos algébricos, manipulados em laboratórios e programados em computadores, elimina-se qualquer tipo de emoção ou imaginação, qualquer valor terapêutico susceptível de ter efeito sobre o núcleo psíquico do ser humano, como faz a música tradicional. Se esta última é o "som da porta do Céu abrindo e fechando" como se ouve na expressão dos dervixes de Mevlevi (e que certas obras de Messiaen ainda gostariam de imitar), a gravação dos gritos dos condenados, os espasmos ofegantes da humanidade arremessada pela onda de choque de uma explosão atômica é possível graças à música eletrônica. O papel da música é certamente outro: mudar o nível de consciência, dispensar temporariamente o peso terreno e turbulento, sugerir estados pré-extáticos, reconciliar o homem e a criação, ajudá-lo a perdoar a si mesmo.


Quanto à escultura, visa-se uma abstração e densificação de volumes em perfeita harmonia com a atitude da massa. Em vez de iluminar a massa, torna-a opaca, proibindo a incursão final do Espírito para mostrar até a mais leve transparência e flexibilidade. O monte de fragmentos de César eloquentemente fornece evidências a favor da Idade de Ferro. Com exceção de alguns artistas como Platão - Klee, Matthieu, Bordet, Wulfing - a pintura também despojou-se de tremores e reflexões divino-humanas, e as vibrações afetivas e subjetivas são sua razão de ser. O reinado da angústia que surgiu imediatamente após o impressionismo, a recusa da natureza, o deslocamento das formas, a divisão do mundo a partir do cubismo e do futurismo (ao ponto de ser incapaz de reconhecer o tema de uma pintura de Picasso), contribuiu para essa evolução equivocada onde o homem, contemporâneo do inverno do mundo, descobre que está gélido, não está mais unido; um mundo onde o nada é a única coisa que resta para pintar. Seja por meio de larvas que se elevaram a partir de decadência psíquica, seja a partir de geometria semelhante a superestruturas metálicas desmanteladas, ou através da degradação dos rostos e corpos dos seres humanos, a arte pictórica exibe um completo vazio espiritual onde se tenta persuadir que flashes de genialidade, indignações arrogantes e vantagens mercantis estão reconciliados.

Em tudo isso, nada é susceptível de manter a atenção por muito tempo. Em vez de tornar o homem digno e preparar sua assunção, a arte moderna escolheu o caminho mais fácil: seguir a degeneração cíclica. O espírito profético deixou de inspirar, talvez porque não há futuro. Se, de acordo com o hadith, "Deus é belo e ama toda a beleza", não se pode entender como ele poderia se reconhecer nestas feiuras e fragmentações. Nenhum dos três critérios para a perfeita arte - nobreza dos conteúdos, a exatidão do simbolismo ou harmonia de composição e pureza de estilo - tem qualquer significado para os artistas que se permitiram ser cercado por elementos luciferianos cuja acelerada exaustão acelera o fim da arte.

A arte recusou as "chaves" que permitiam ilimitadas possibilidades para a criação; ela esgotou a harmonização possível e a combinação de elementos e intervalos que haviam dado origem a diferentes tendências artísticas e escolas; se abriu unilateralmente ou para o yang intemperado, trazendo a rigidez e o endurecimento das formas, ou para o yin no estado puro, trazendo sua liquefação. Sem dúvida, uma de suas raras opções seria voltar-se para o Oriente, retornar às suas raízes, renovar-se lá, recorrendo a certos princípios eternos esquecidos e adaptando-os a uma linguagem apropriada. A música, por exemplo, redescobriria seu próprio papel: não a expressão de equações, mas de "qualidades" e "estados", de descobrir novos ritmos, tons e instrumentos.





Em conclusão, apenas mencionaremos uma palavra sobre uma das descobertas mais recentes cujo desenvolvimento preocupante apenas por necessidade econômica chegou ao ponto de suplantar o homem em seus últimos reinos de liberdade e de implementar uma transferência de criatividade em seu favor: gostaríamos falar sobre o computador. Sua invasão inexorável nos garante uma espécie de universo congelado, sem possibilidade de erros ou mentiras, de pureza boreal completa, quase divino. Mas este universo é a divindade defeituosa, diabolicamente inocente.  Porque os computadores, independentemente de quão perfeitos ou perfectíveis possam ser e apesar de seu conhecimento absoluto, sempre faltarão o que alguns poderiam chamar de alma, em qualquer caso, a je ne sais quoi. Estes anjos de metal de alta qualidade, capazes de cálculos empolgantes em velocidades incalculáveis (que só servem para acelerar o movimento cíclico), e ao lado do qual os homens arrastam-se ao ritmo de bois, aparecendo muito inferior as máquinas que são, no entanto, suas criaturas, apresentam apenas uma falha - total e implacável - aquela de ser quase infalível em comparação com todas as fraquezas da inteligência humana. Impedindo o Espírito das esferas do Alto, seu Emissário providencial, aqui embaixo parece perigoso saber tudo e nunca cometer um erro.

Da mesma forma que uma tapeçaria árabe sempre tem uma falha (embora feita de propósito pelo artesão), um ponto ausente é prova de que todo o trabalho feito pelo homem está aquém da perfeição que pertence somente a um Criador; da mesma forma que o oxigênio absolutamente puro torna-se rapidamente irrespirável porque qualquer coisa viva precisa de germes e impurezas, pode-se considerar que toda a tecnologia avançada parece muito impecável para corresponder aos padrões humanos. É tentador elogiar o erro como uma necessidade vital, os erros do não-cumprido como assinatura de um mundo normal. O mundo dos computadores se assemelha muito da perfeição para permanecer insuspeito - uma perfeição esterilizada com algo automático e insensível, uma perfeição franca - se aproxima demais de Deus para não ser suspeito de ser o Diabo.  Errare humanum est, non errare diabolicum.

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