sexta-feira, 17 de março de 2017

A lenda do Grande Inquisidor e o Grande Cisma em Dostoiévski


A imagem de Cristo de Dostoiévski é expressa vividamente na narrativa "O Grande Inquisidor", presente em sua última e mais religiosa novela, Os Irmãos Karamazov (1879-1880). O conto, comumente referido como a "Lenda do Grande Inquisidor" é, na verdade, apresentado em nível de meta-ficção.

O autor da lenda é Ivan Karamazov, que relata seu poema não escrito, sobre um personagem imaginário que pode ter imaginado seu encontro com Cristo, para seu irmão Alyosha (Jones 1976: 191). A lenda se passa em Sevilha durante o século XVI no auge da Inquisição espanhola. Em meio ao sofrimento e à tortura dos hereges queimados na fogueira, Cristo aparece "na forma humana em que andou entre a humanidade por três anos há quinze séculos" (PSS 14: 226). Seu retorno à Terra não é como aquele que foi profetizado na Segunda Vinda, mas sim para consolar e re-inspirar momentaneamente "seus filhos" que imediatamente o reconhecem. Cristo move-se entre o povo, abençoando-os e realizando milagres, irradiando amor e compaixão. O Grande Inquisidor, um homem velho, testemunha esses milagres e ordena sua prisão. À noite, ele visita Cristo em sua cela e realiza um longo monólogo no qual confronta Cristo com o fardo que Ele pôs sobre a humanidade. Ele afirma que Cristo não tem o direito de aparecer na Terra e "nos impedir" porque, quando Ele deixou a Terra, Ele concedeu aos predecessores do Inquisidor o direito de ensinar e agir de acordo com Suas palavras em sua própria maneira (PSS 14: 229). Cristo permanece em silêncio durante todo o monólogo: nenhuma vez tenta se opor aos argumentos do Inquisidor ou desenvolver suas próprias idéias.

O argumento do Inquisidor é inteiramente centrado no problema da liberdade. Ele reprova a Cristo por ensinar à humanidade a promessa de liberdade. No entanto, de acordo com o Inquisidor, a humanidade é muito fraca para lidar com essa liberdade, e é por isso que a Igreja assumiu o controle. O Inquisidor acredita que a felicidade na Terra só pode ser alcançada quando a humanidade tiver entregue sua liberdade. Ele fundamenta sua argumentação dentro da estrutura bíblica da tentação de Cristo no deserto. Ele afirma que as três questões colocadas nas tentações são as mais fundamentais em toda história humana porque elas contêm a resposta para aquilo que a humanidade realmente precisa. Com o conhecimento de quinze séculos de história humana atrás dele, o Inquisidor coloca essas três questões novamente para Cristo e visa expor as consequências desastrosas das respostas de Cristo para a humanidade. O inquisidor reformula a primeira tentação da seguinte maneira:

Você quer ir ao mundo, e vai com suas mãos vazias, com alguma promessa de liberdade em que eles, em sua simplicidade e mal-estar nato, não podem sequer compreender, eles temem e receiam, pois nada nunca foi mais insuportável para o ser humano e a sociedade do que a liberdade. Você vê as pedras neste deserto estéril e ressecado? Transformai-as em pão, e a humanidade correrá atrás de ti, como um rebanho de ovelhas, gratos e obedientes, embora sempre tremendo, temendo que retires a tua mão e não lhes dês mais o teu pão. Mas você não quis privar a humanidade da liberdade e rejeitou a oferta, pois pensou, que liberdade é essa, se a obediência é comprada com pão? Você respondeu que o homem não vive apenas de pão (Pv 14,23).



Nessa tentação, o Inquisidor revela sua verdade, que os humanos não podem lidar com a liberdade que Cristo queria que eles tivessem, aquela apresentada a eles. Ele acredita que a verdadeira preocupação da humanidade não é a liberdade, mas a satisfação das necessidades mais primitivas e naturais, como a fome e o frio. Em sua cosmovisão, o ser humano é um ser fraco e quase animalesco ("a raça fraca do homem, sempre pecaminosa e ignóbil) cujo comportamento é totalmente determinado por desejos materiais (PSS 14: 231). O "pão celestial" (khleb nebesnyi) ou a liberdade que Cristo prometeu à humanidade não pode se igualar ao "pão terreno" (khleb zemnoi) ou ao bem-estar material que o Grande Inquisidor e seus companheiros líderes religiosos fornecem à humanidade (PSS 14: 231). Uma vez que o ser humano é por natureza guiado por motivos puramente egoístas, ele nunca poderá compartilhar seu pão com os outros; é por isso que, de acordo com o Inquisidor, não é possível dar a humanidade a promessa da liberdade e do pão, da singularidade espiritual e do bem estar material. Apenas alguns indivíduos excepcionalmente fortes são capazes de disciplinar suas necessidades naturais e podem ser virtuosos e altruístas enquanto sofrem de dor e fome. No entanto, a maioria dos seres humanos, "numerosos como a areia do mar", são determinados por sua condição física e acabariam por matar para satisfazer sua fome. Assim, o Inquisidor crê que, para bem do bem-estar universal da humanidade, é imperativo reconhecer e satisfazer primeiro os seus desejos materiais: "a humanidade proclamará [...] que não há crime e portanto nenhum pecado, que há apenas famintos. Alimenta-os, e então exija virtude deles" (PSS 14: 230). A humanidade prefere um estado de escravidão em vez de um destino de fome. Aparentemente por amor e compaixão pela humanidade sofredora e fingindo agir em nome de Cristo, o Grande Inquisidor e os outros oficiais da Igreja assumiram a tarefa de libertar a humanidade desta terrível e insuportável liberdade e de trazer o bem-estar material para Terra. Para o inquisidor, o erro de Cristo é que ele desconsidera os desejos físicos e materiais do homem, concentrando-se principalmente nas necessidades espirituais do homem. O Inquisidor reconhece, no entanto, que o pão terrestre sozinho não é suficiente para o bem-estar humano nem para a perfeita ordem humana que ele aspira alcançar. Nascido "rebelde" (buntovshchik), o humano não pode aceitar que ele é um mero produto das leis naturais e assim se percebe de uma forma mais idealizada (PSS 14: 229). Como o Inquisidor afirma, "o mistério da existência humana não é apenas viver, mas saber por que se vive" (PSS 14: 232). Os seres humanos se esforçam para transcender as limitações de sua condição natural e adicionar uma dimensão moral à sua existência. Apesar de sua natureza predeterminada, eles não estão apenas satisfeitos com o pão terreno, mas também estão inclinados a compor categorias morais e observar o mundo e a si mesmos dentro desse quadro. Fazem de sua consciência, que é a fonte das distinções morais, o fundamento primário de seu ser. O Grande Inquisidor não ignora a afirmação humana da consciência pessoal. Ele sustenta que, para tomar posse da liberdade humana, deve-se chegar a uma solução para essa inquieta consciência, solução que é complementar à satisfação imediata das necessidades físicas do ser humano. O mistério da consciência humana é que "não há nada mais sedutor para o ser humano do que sua liberdade de consciência (svoboda sovesti)", mas ao mesmo tempo "não há nada mais agonizante também" (PSS 14: 232). Quando se está plenamente consciente deste paradoxo, pode-se aliviar os seres humanos desta liberdade atormentadora, como o percebe o Grande Inquisidor. Ele culpa Cristo por afirmar esta liberdade de consciência ao invés de tomar posse da liberdade do homem, iluminando assim a sua existência:

Digo-vos que o humano não tem preocupação mais angustiante de que encontrar alguém para que possa mais depressa entregar esse dom da liberdade, com o qual a infeliz criatura nasce. Mas só aquele que pode apaziguar a sua consciência, pode tomar posse de sua liberdade [...] em vez de tirar a liberdade dos humanos, você aumentou-a ainda mais [...] você sobrecarregou o reino da alma humana para sempre com os sofrimentos da liberdade (PSS 14: 232).

Cristo dotou a humanidade com a completa "livre escolha no conhecimento do bem e do mal" (Svobodnogo vybora v poznanie dabra i zla) (PSS 14: 232). Contudo, de acordo com o Inquisidor, a maioria da humanidade carece da força espiritual e moral para determinar para si mesmos o valor moral do bem e do mal. O Inquisidor revela a Cristo as ramificações de sua mensagem de liberdade moral para a humanidade: a perpétua busca do bem e do mal do homem só resultou em tormento mental e infelicidade. O humano é demasiado fraco para determinar seus próprios padrões morais, e é por isso que, como o Inquisidor sustenta, o humano anseia por ídolos, por autoridades espirituais externas, por um exemplo ético para modelar seu comportamento. Atormentado pela carga da autonomia moral e da consciência pessoal, a humanidade se encontra ansiosa para entregar sua liberdade existencial para uma autoridade absoluta.

O Grande Inquisidor apresenta a Cristo a segunda tentação, onde Ele teve a oportunidade de provar sua divindade por meio de um milagre e, se o fizesse, poderia ter se tornado o ídolo pelo qual a humanidade anseia. A tentação revela os meios mais eficazes para atrair a humanidade a entregar a sua liberdade.

Há três forças, as únicas três forças na terra, que são capazes de conquistar e manter cativo para sempre a consciência desses rebeldes fracos por sua própria felicidade, essas forças são: o milagre, o mistério e a autoridade (chudo, tajna i avtoritet). Você rejeitou os três e você mesmo estabeleceu o exemplo de como fazer. Quando o espírito terrível e sábio te colocou no pináculo do templo e te disse: "Se és filho de Deus, atira-te abaixo, porque está escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito que te guardem" (PSS 14: 232f.).

Cristo ensinou ao homem para "decidir com um coração livre por si mesmo, o que é bom e o que é mau" (svobodnym serdtsem [...] reshat 'vpred' sam, chto dobro i chto zlo) (PSS 14: 232). Na visão do Inquisidor, em contraste, o ser humano deve ser ensinado que a questão do bem e do mal é um mistério que deve ser aceito e acreditado, ao invés de uma escolha livre a ser feita. Não é "a decisão livre de seus corações, nem o amor que é importante para eles, mas o mistério que eles devem cegamente obedecer, mesmo se for contra sua consciência" (PSS 14: 234). Porque, como diz o Inquisidor, o conhecimento do bem e do mal é inacessível para a humanidade e, portanto, os seres humanos não podem deixar de obedecer a uma autoridade externa e absoluta, que é sobretudo confirmada por milagres: o humano "não busca tanto Deus, mas um milagre" (PSS 14: 233). É a opinião do Inquisidor que o ser humano está disposto a ceder sua liberdade para quem lhe dá o pão e tem a chave para os três poderes que podem aliviar o anseio moral do ser humano, isto é, "o milagre, o mistério e a autoridade".
 

Com relação à terceira tentação, o Inquisidor defende que a felicidade do homem ainda não é garantida pelo bem-estar material e pela autoridade moral. O terceiro tormento da humanidade é a "necessidade de unidade universal", em unir-se em um "formigueiro indisputável, comum e harmonioso" (PSS 14: 235). Os seres humanos precisam se curvar a um ídolo, e eles anseiam fazê-lo junto com outros. O Inquisidor defende que a unidade que a humanidade procura é universal porque a coexistência de diferentes ídolos mina a autoridade de cada ídolo individual e resulta em desordem moral. Ele alega que esta unidade universal não só deve ser realizada na esfera espiritual, proporcionando uma autoridade espiritual, mas ainda mais importante, na realização de uma ordem secular. E aqui está o significado da terceira tentação. O diabo ofereceu a Cristo todos os reinos do mundo em troca da adoração de Cristo a ele. E, recordando esta última tentação a Cristo, o inquisidor revela quem ele realmente adora e em quem está sua fé:

Não estamos com você, mas com ele, esse é o nosso segredo! Por muito tempo não estamos mais com você, mas com ele, já há oito séculos. Exatamente oito séculos atrás, nós tomamos dele aquilo que você rejeitou com indignação, aquele último presente que ele lhe ofereceu, mostrando todos os reinos do mundo. Tomamos dele a espada de Roma e de César (mech kesaria) e proclamamo-nos os reis da terra (PSS 14: 234).

Cristo ensinou à humanidade que Seu reino não é deste mundo (João 18: 36-39). O Inquisidor, ao contrário, aspira construir um paraíso terrestre, um estado universal no qual a felicidade material e espiritual da humanidade é assegurada. A referência a "oito séculos atrás" não é arbitrária. A lenda do "Grande Inquisidor" se passa no século XVI, mas oito séculos antes, houve dois eventos no mundo cristão que revelaram as diferenças ideológicas entre a Igreja Oriental e a Igreja Ocidental. Em 756, o rei franco, Pepino o Breve, deu ao Papa Estêvão III a soberania sobre Ravenna, concedendo-lhe assim o poder secular (Terras 1981: 234). Para Dostoiévski, esta apreensão do poder temporal pela Igreja Católica foi uma traição da recusa de Cristo de um reino terrestre, como foi oferecido a Ele pelo diabo. Embora Cristo tivesse explicitado que Seu Reino não pertence a este mundo, a Igreja Romana havia aceito em Seu nome a secularidade do império romano e tinha tomado a espada de César como um instrumento de compulsão para levar a mensagem de Cristo aos povos bárbaros. Ao se envolver em assuntos terrenos, a Igreja Ocidental tinha sido infiel à promessa de Cristo de um paraíso celestial.
 
No entanto, foi outro evento, no campo da teologia, que seria crucial para a divisão final entre a Igreja Ocidental e Oriental. Em 796, um sínodo local de bispos latinos acrescentou a cláusula Filioque ao credo Niceno, que se tornaria prática comum na Igreja Ocidental. A cláusula proclama que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho (qui ex Patre Filioque procedit). Esta cláusula foi aceita pelos teólogos ocidentais, mas rejeitada pela Igreja Oriental, resultando assim em uma disputa teológica entre o Ocidente e o Oriente, o que, por sua vez, revelou que ambos tinham uma concepção diferente da Divindade. O Trinitarianismo ocidental tomou a unidade de Deus como ponto de partida e considerou o Espírito como o elo de união entre Pai e Filho. Em tal teoria, Deus é uma entidade com três hipóstases. O Trinitarianismo oriental, em contrapartida, afastou-se do Pai, do Filho e do Espírito Santo como três entidades desarticuladas e procurou definir a relação entre elas de modo a assegurar sua unidade. Nessa teoria, o Pai é a fonte, o princípio e a causa dentro da Trindade. A Trindade é uma unidade se tanto o Filho como o Espírito emanam de uma causa, o Pai. Os teólogos orientais compararam a Trindade a uma balança de equilíbrio, na qual o Pai é o ponto de equilíbrio no centro, do qual dependem tanto o Filho quanto o Espírito Santo. Assim, eles condenaram o Filioque ocidental porque tornou  o Filho igual ao Pai (Pelikan 1977: 183ff.). Basicamente, para a Igreja Oriental, a cláusula Filioque traiu o princípio supremo cristão da transcendência e imanência simultânea de Deus, uma verdade que não pode ser compreendida pela razão humana e deve permanecer um mistério para a humanidade.

Para Dostoiévski, as sementes do cisma oficial entre a Igreja Ocidental e Oriental em 1054 foram semeadas três séculos antes, quando os Bispos latinos alteraram a verdade doutrinária sem o consentimento de toda a Igreja. É óbvio que o Grande Inquisidor está do lado da Igreja Católica Romana. Pois, oito séculos depois do Filioque, ele continua a típica inclinação da Igreja Latina para racionalizar o princípio incognoscível e ininteligível da verdade cristã: este é, na perspectiva oriental, o paradoxo da transcendência e imanência simultânea de Deus. Os teólogos ocidentais, buscando uma definição mais inteligível da unidade trinitária, subjugaram esse paradoxo, enfatizando a transcendência de Deus e excluindo Sua imanência. Para os crentes orientais, assim como para Dostoiévski, isso implica a exclusão de Deus do mundo.

Assumindo que Deus está ausente neste mundo, o Grande Inquisidor e os ex-líderes católicos tentaram organizar uma ordem humana baseada em uma autoridade terrena. Para esse fim, eles se aliaram com um poder secular e tomaram a "espada de César". Esta é mais uma alusão à história da Igreja Latina. No século VIII, o papado romano, sentindo-se ameaçado pelas invasões de tribos bárbaras vizinhas, entrou numa aliança com Carlos Magno que os ajudou a derrotar e cristianizar esses povos pagãos. Embora Carlos Magno não fosse um especialista em questões teológicas, ele apoiou o Filioque e desempenhou um papel crucial na aceitação dele no credo da Igreja Ocidental. Para selar a aliança, o Papa Leão III o coroou imperador do Sacro Império Romano em 800 (Ward 1986: 169). A Igreja Católica, assim, se integrou no estado terrenal e se conformou às instituições legais e cívicas do império romano. Sucumbindo à necessidade humana da unidade universal, a Igreja Católica Romana buscou essa unidade em uma ordem material e secular e preferiu a autoridade visível do imperador e do papa em vez do ideal invisível de Cristo. A Igreja Ocidental cedeu à terceira tentação e aceitou a oferta de todos os reinos deste mundo. E aqui reside o segredo do Grande Inquisidor: no Ocidente a Igreja não viveu pelo ensinamento de Cristo sobre a liberdade, mas renunciou à sua liberdade para aquele que tentou a Cristo no deserto, Satanás:

Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem está qualificado para dominar os homens senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem de seu pão? Tomamos a espada de César e, assim fazendo, nós Te abandonamos para segui-lo. (PSS 14:235).

Prosseguindo a sua convicção racional de que o homem só pode alcançar a felicidade num paraíso terreno, o Inquisidor chega até mesmo a rejeitar a imortalidade da alma e a idéia do Paraíso Celestial: "Tranquilos eles morrerão, pacificamente expirarão em seu nome e, além do túmulo, encontrarão apenas a morte". No entanto, pela paz de espírito da humanidade, "nós os atrairemos com uma recompensa celestial e terrena" (PSS 14: 236). O Inquisidor assim abandona uma das doutrinas mais essenciais do cristianismo, a doutrina da salvação e da ressurreição da humanidade no outro mundo. Ele reprova a Cristo por ter trazido à humanidade uma vaga promessa de um reino celestial ininteligível, deixando-os em condição de infelicidade e ignorância: ele tomou para si a tarefa de salvar a humanidade infeliz e proclama-se o novo salvador ("salvamos a todos" PSS 14: 236). Ele não coloca a salvação final da humanidade no paraíso celestial, mas busca uma ordem humana universal neste mundo que salvará a humanidade nesta vida. Isso mostra novamente que o Inquisidor se liga a Satanás e não a Cristo que proclama ressurreição no Reino Celestial.

Embora a ficção de Dostoiévski seja geralmente marcada por um discurso polifônico, a figura de Cristo neste texto específico não fala explicitamente. Ainda assim, ele representa a voz ideológica mais original no discurso fictício de Dostoiévski. A imagem do Cristo silencioso oferece a solução para todas as buscas ideológicas dos outros personagens fictícios ou, colocando nos termos de Bakhtin, "esta voz mais elevada deve coroar o mundo das vozes, organizá-lo e subjugá-lo" (Bakhtin 1984: 97). Como interpreto, Cristo permanece em silêncio porque a sua verdade é algo que não pode ser capturado na linguagem humana. O silêncio absoluto de Cristo em confronto com as fortes acusações do Grande Inquisidor afirma o típico dogma apofático ortodoxo da inefabilidade da "palavra" divina. Na tradição cristã ortodoxa, a verdade divina não pode ser comunicada, mas apenas pode ser manifestada pelas obras de Cristo. Ou, como observou Dostoiévski em seus cadernos dos Demônios, em relação a Cristo "não há sequer ensinamentos, apenas palavras ocasionais, ao passo que a coisa principal é a imagem de Cristo, da qual procede todo ensinamento" (PSS 11:19).


"Se você distorcer a fé de Cristo, combinando-a com os objetivos deste mundo, todo o significado do cristianismo é imediatamente perdido, a mente irá, sem dúvida, cair na descrença, e em vez do grande ideal de Cristo ali surgirá apenas uma nova torre de Babel. [...] Sob a aparência do amor social pela humanidade, ali surge um desprezo quase disfarçado por ela"     
Palavras de Dostoiévski em uma introdução a uma leitura pública de "O Grande Inquisidor"
                                                      

Retirado do livro "What the God-seekers Found in Nietzsche" por  Nel Grillaert

domingo, 12 de março de 2017

O Problema do Ser e da Existência (por N. Berdyaev)

Desde a antiguidade os filósofos buscaram o conhecimento do ser (ousia, essentia). A construção de uma ontologia tem sido a maior reivindicação da filosofia. E, ao mesmo tempo, a possibilidade de conseguir isso suscitava dúvidas entre os filósofos. Às vezes, parecia que o pensamento humano se encontrava, nesse aspecto, perseguindo um fantasma.

A transição do múltiplo para o Um, e do Um para o múltiplo era um tema fundamental na filosofia grega. De maneira diferente o mesmo tópico tem sido fundamental na filosofia indiana também. O pensamento indiano tem-se incomodado pela pergunta: como o ser se origina do não-ser? Em grande parte, centrou-se no problema do nada, do não-ser e da ilusão. Esteve ocupado com a descoberta do Absoluto e libertação do relativo, o que significava salvação. O pensamento indiano tentou colocar-se do outro lado do ser e do não-ser, e revelou uma dialética do ser e do não-ser. É isso que o tornou importante.

Os gregos procuravam apxn - o primordial. Eles meditaram sobre o imutável; preocupavam-se com o problema da relação do imutável com a mudança; desejavam explicar como o devir surge do ser. A filosofia buscava elevar-se acima do mundo enganoso dos sentidos e penetrar no Uno passando pelo mundo de pluralidade e mudança. Tinham dúvidas sobre a realidade do movimento. Se o homem obter o conhecimento do ser ele alcançará o ápice do conhecimento, e, às vezes, se pensava, que se alcançaria a salvação por ter realizado a união com a fonte primária. Contudo, ao mesmo tempo, Hegel diz que o conceito de ser é completamente fútil, ao passo que Lotze afirma que o ser é indefinível e só pode ser experimentado.

Heidegger, ao pretender construir uma nova ontologia, diz que o conceito de ser é muito obscuro. O ser puro é uma abstração e é numa abstração que os homens procuram se apoderar da realidade primária, a vida primária. O pensamento humano está empenhado na busca de seu próprio produto. É nisso que reside a tragédia da aprendizagem filosófica, a tragédia, isto é, de toda a filosofia abstrata. O problema que enfrentamos é o seguinte: não é o ser um produto da objetivação? Não transforma o assunto do conhecimento filosófico em objetos nos quais o mundo noumenal desaparece? Não estará o conceito de ser lidando com o ser enquanto conceito, o ser possui existência?

Parmênides é o fundador da tradição ontológica da filosofia, uma tradição altamente significativa e importante em relação à qual os esforços da razão atingiram o nível de gênio. Para Parmênides, o ser é um e imutável. Não há não-ser, existe apenas ser. Para Platão, que seguiu essa tradição ontológica, o verdadeiro ser é o reino das idéias que ele vê por trás do movimento e do mundo múltiplo dos sentidos. Mas, ao mesmo tempo, Platão mantém a supremacia do bom e do benéfico sobre o ser, e daí é possível ir para outra tradição da filosofia. Em Platão, a unidade da perfeição é a idéia mais elevada e a idéia de ser é o próprio ser. Husserl, depois de passar por uma fase de idealismo e afirmação da primazia da mente, veio a continuar a tradição do platonismo na contemplação do ser ideal, Wesenheiten.

Nos processos de pensamento a mente humana procurou elevar-se acima deste mundo dos sentidos que se apresenta a nós, e no qual tudo é instável, acima do mundo do devir, ao invés do ser. Mas por isso mesmo, a busca pelo ser tornou-se dependente do pensar, e a marca de pensamento encontra-se sobre ela. O ser tornou-se objeto do pensamento e, assim, veio a denotar objetificação. O que a razão encontra é o seu próprio produto. A realidade então depende do fato de que ela se torna matéria de conhecimento, em outras palavras, um objeto. Mas, na verdade, o contrário é verdadeiro, a realidade não está na frente do sujeito cognoscente, mas "atrás dele", em sua existencialidade.

O caráter errôneo do antigo realismo é particularmente claro no caso do tomismo, a filosofia do comum ou do senso comum. Considera-se os produtos do pensamento, a hipostasiação do pensamento, como realidades objetivas. Assim, São Tomás de Aquino supõe que o intelecto - e somente intelecto - entra em contato com o ser. O ser é recebido desde fora. Isto é tornar a consciência normal média - que também é considerada como a natureza humana imutável - absoluta. Esse tipo de ontologia é um claro exemplo de metafísica naturalista, e não reconhece as antinomias que a razão gera. A natureza da apreensão intelectual do ser é estabelecida pelo fato de que o ser já era de antemão o produto da intelectualização. Na visão tomista, o ser vem antes do pensamento; mas esse ser já era fabricado pelo pensamento. O ser é secundário e não primário.

Na filosofia medieval, a questão da relação entre essentia e existentia desempenhou um papel importante. O ser é essentia. Mas a questão permanece: a essência possui uma existentia própria? Na filosofia atual, por exemplo em Heidegger e Jaspers, essa questão assume uma nova forma: a relação entre Sein e Dasein. Aristóteles e os escolásticos admitiram uma classificação numa lógica do mesmo tipo que na zoologia e em tal classificação o conceito de ser tomou seu lugar como o mais amplo e o mais elevado. Brunschvicg assinala com razão que foi Descartes que rompeu com esse naturalismo na lógica e na metafísica. Mas a ontologia nunca foi capaz de livrar-se inteiramente do espírito naturalista.

Hegel introduziu um novo elemento no conceito de ser. Ele introduziu a idéia do não-ser, o nada, sem o qual não há nenhum vir-a-ser, não há emergência do que é novo. O ser em si é vazio e o equivalente do não-ser. O fato inicial é ser-não-ser, a unidade, ser e nada. O ser é o nada, o ser indeterminado e incondicional. Dasein em Hegel é a união do ser e do nada, do devir, do ser determinado. A verdade está na transição do ser para o nada, e do nada para o ser. Hegel quer colocar a vida num ser entorpecido e ossificado. Ele procura passar do conceito ao ser concreto. Isto é alcançado por meio do reconhecimento da natureza ontológica do próprio conceito, é o ser que é preenchido com vida interior. "Identidade", diz Hegel, "é uma definição do ser simples, imediato e morto, ao passo que a contradição é a raiz de todo movimento e vitalidade. É somente na medida em que o nada tem dentro de si sua contradição que ele tem movimento e atinge um estado de vigília e atividade." A dialética é a vida real. Mas Hegel não atinge a concretude real. Ele permanece sob o domínio da objetividade. Vladimir Soloviev, que esteve muito sob a influência de Hegel, faz uma distinção muito valiosa e importante entre ser e o existente. O ser é o predicado do existente, que é o sujeito. Dizemos: "esta criatura é" e "essa sensação é". Uma hipostasiação do predicado ocorre. Diversos tipos de ser são formados através da abstração e hipostasiação de atributos e qualidades, assim se construíram ontologias que formavam uma doutrina do ser abstrato e não do existente concreto. Mas o verdadeiro sujeito da filosofia deveria ser, não o ser em geral, mas aquilo a que e a quem o ser pertence, isto é, o existente, o que existe. Uma filosofia concreta é uma filosofia existencial, e isso Soloviev não atingiu, ele permaneceu um metafísico abstrato. A doutrina do tudo-em-um é o monismo ontológico.


Não é verdadeiro dizer que o ser é: somente o existente é, somente o que existe. O que o ser diz de uma coisa é que algo é, não fala sobre o que é. O sujeito da existência confere ser. O conceito de ser é logicamente e gramaticalmente ambíguo, dois significados estão confusos nele. Ser significa que algo é, e também significa aquilo que é. Este segundo significado de "ser" deveria ter sido descartado. O ser aparece como um sujeito e um predicado, no sentido gramatical dessas palavras. Na verdade, o ser é apenas um predicado. Ser é o comum, o universal. Mas o comum não tem existência e o universal está somente dentro daquilo que existe, no sujeito da existência, não no objeto. O mundo é múltiplo, tudo nele é individual e único. O universalmente comum não é senão a realização da qualidade de unidade e de comunhão nessa pluralidade de individualidades. Há algum grau de verdade no que Rickert diz, que ser é um julgamento de valor, que o real é o sujeito do julgamento. A partir disso, conclui-se erroneamente que a verdade é obrigação, em vez de ser; o transcendente é apenas Geltung. Geltung refere-se ao valor, não à realidade.

Quando se afirma a primazia da obrigação sobre o ser, isto pode parecer o primado platônico do bem sobre o ser. Mas Soloviev diz que aquilo obriga o ser neste mundo é o eternamente existente em outra esfera. Surge uma questão fundamental: existe o sentido, o valor ideal, e, em caso afirmativo, em que sentido existe? Existe um sujeito de sentido, valor e idéia? Minha resposta a esta pergunta é que existe, existe como espírito. O espírito, além disso, não é o ser abstrato, é o que existe concretamente. O Espírito é uma realidade de outra ordem comparada a realidade da natureza "objetiva" ou da "objetividade" que nasce da razão. A ontologia deve ser substituída pela pneumatologia. A filosofia existencial se afasta da tradição ontologica, na qual vê uma objetificação inconsciente. Quando Leibniz vê na mônada uma substância simples que entra em uma organização complexa, seu ensinamento trata da harmonia das mônadas no mundo, e o que mais lhe interessa é a questão da simplicidade e da complexidade: ele ainda está no poder da metafísica naturalista e numa ontologia objetivada.

É essencial compreender as inter-relações de conceitos como verdade, ser e realidade. Desses termos, realidade é o menos aberto à dúvida e o mais independente das escolas de terminologia filosófica, no sentido que adquiriu. Mas, originalmente, estava ligado a res, a uma coisa, e a marca de um mundo objetificado foi gravada no termo. A verdade, mais uma vez, não é simplesmente aquilo que existe, é uma qualidade e valor alcançado, a verdade é espiritual. Aquilo que é, não deve ser venerado simplesmente porque é. O erro do ontologismo conduz à uma atitude idólatra em relação ao ser. É a Verdade que deve ser venerada, não o ser. A Verdade, além disso, existe concretamente, não no mundo, mas no Espírito. O milagre do cristianismo consiste no fato de que nele, a encarnação da Verdade, do Logos, do Sentido, apareceu, a encarnação do que é único, singular e irrepetível; e aquela encarnação não era uma objetificação, mas uma ruptura abrupta contra a objetificação. Deve-se reiterar constantemente que o espírito nunca é um objeto e que não existe tal coisa como espírito objetivo. O ser é apenas um entre os filhos do espírito. Mas somente o trans-subjetivo é aquilo que existe, o existente. Enquanto o ser é meramente um produto da existência hipostatizada.

O ontologismo puro submete o valor ao ser. Colocando de outra forma, obriga-se a considerar o ser como uma única escala e critério de valor e de verdade, do bem e do belo. Ser, a natureza do ser, de fato é bondade, verdade e beleza. O único significado da bondade, verdade e beleza está nisso, que eles são - ser. E o reverso da questão é semelhante, o único mal, falsidade e feiura, é o não-ser, a negação do ser. O ontologismo tem de reconhecer o ser como Deus, deificar o ser e definir Deus como ser. E isso é característico da doutrina catafática de Deus, e distingue-a, em princípio, da doutrina apofática que considera Deus não como ser, mas como supra-ser.

Schelling diz que Deus não é ser, mas vida. 'Vida' é uma palavra melhor do que 'ser'. Mas a filosofia ontológica tem uma semelhança formal com a filosofia da vida, à qual a 'vida' é o único padrão da verdade, bondade e da beleza: a vida em seu máximo é seu valor supremo. O maior bem, o maior valor é definido como o máximo do ser ou o máximo da vida. E não há contestação do fato de que deve-se ser, deve-se viver, antes que a questão do valor e do bem possa ser levantada. Não há nada mais triste e estéril do que aquilo que os gregos expressaram pela frase OVK ov, que é o autêntico nada. As palavras Sv escondem uma potencialidade, e assim, portanto, é apenas metade do ser ou ser que não está realizado.

A vida é mais concreta e mais próxima de nós do que o ser. Mas a inadequação da filosofia da vida consiste nisso: ela tem sempre um sabor biológico. Nietzsche, Bergson e Klages ilustram esse ponto. O ser, de fato, é abstrato e não tem vida interior. O ser pode possuir as qualidades mais elevadas, mas também pode não possuí-las, pode ser também o mais inferior. E, portanto, o ser não pode ser um padrão de qualidade e valor. A situação é sempre salva quando a frase 'real e verdadeiro' é adicionada. Mas então 'realidade e verdade' se tornam o padrão e valor mais elevado. É a realização do ser 'real e verdadeiro' que é o objetivo, não a afirmação do ser em seu máximo. Isso só salienta a verdade que o ontologismo é a hipostatização de predicados e qualidades. O ser adquire um sentido axiológico. O valor, a bondade, a verdade e a beleza são uma visão da qualidade na existência e elevam-se acima do ser.

Mas há algo ainda mais importante na caracterização do ontologismo na filosofia. O reconhecimento do ser como o bem supremo e valor significa o primado do comum sobre o que é individual e isto é a filosofia dos universais. O ser é o mundo das ideias que esmaga o mundo do indivíduo, o único, o irrepetível. A mesma coisa acontece quando a matéria é considerada a essência do ser. O ontologismo universalista não pode reconhecer o valor supremo da personalidade: a personalidade é um meio, uma ferramenta do universalmente comum.

Na realidade mais viva, a essência é individual em sua existencialidade, enquanto o universal é uma criação da razão (Duns Scotus). A filosofia dos valores ideais é caracterizado pelo mesmo esmagamento da personalidade, e nem há necessidade de se opor à filosofia do ser abstrato. A filosofia real é a filosofia da entidade viva concreta e das entidades e é a que mais corresponde ao cristianismo. É também a filosofia do espírito concreto, pois é no espírito que o valor e a ideia devem ser encontrados. O sentido também é algo que existe e por sua existência é comunicado àqueles que existem. Ser e devir devem possuir um portador vivo, um sujeito, uma entidade viva concreta. O que existe concretamente é mais profundo do que o valor e vem antes dele, e a existência é mais profunda que o ser.

O ontologismo tem sido a metafísica do intelectualismo. Mas as palavras ontologia e ontologismo são usadas em sentido amplo e raramente são identificadas com o realismo metafísico como um todo. Hartmann diz que o irracional na ontologia é mais profundo do que o irracional no misticismo, pois ele está além dos limites não só do que pode ser conhecido, mas também do que pode ser experimentado. Mas dessa maneira a profundidade ontológica é atribuída a um nível ainda maior (ou mais profundo) do que a possibilidade da experiência, isto é, do que a existência. Esta profundidade ontológica é muito parecida com o Incognoscível de Spencer. Em Fichte o ser existe por causa da razão e não o contrário. Mas o ser é o fruto da razão e a razão, além disso, é uma função da vida primária ou da existência. Pascal vai mais fundo quando diz que o homem é colocado entre o nada e o infinito. Esta é a posição existencial do homem, e não uma abstração do pensamento.

Houveram tentativas de estabilizar o ser e fortalecer sua posição entre o nada e o infinito, entre o abismo inferior e o superior, mas isso foi apenas um ajuste da razão e da consciência às condições sociais da existência no mundo objetificado. Mas o infinito rompe a partir de baixo e de cima, age sobre os homens, e remove o ser estabilizado e a  consciência estabelecida. Dá origem ao sentimento trágico da vida e à perspectiva escatológica.

E isso explica o fato de que o que eu chamo de metafísica escatológica (que também é uma metafísica existencial) não é ontologia. Ela nega a estabilização do ser e prevê o fim do ser, porque o considera como objetificação. Neste mundo, de fato, o ser é mudança, não repouso. Isso é o que é verdade em Bergson. Já disse que o problema da relação entre pensamento e o ser foi posto de forma errada. A verdadeira afirmação do problema baseou-se no fracasso em compreender o fato de que o conhecimento é o acender da luz dentro do ser, e não no assumir uma posição diante do ser como objeto.
A teologia apofática é de imensa importância para a compreensão do problema do ser. Ela é visível na filosofia religiosa indiana e, no Ocidente, principalmente em Plotino, nos neoplatónicos, em Dionísio, o Areopagita, em Eckhardt, em Nicolau de Cusa e no misticismo especulativo alemão. A teologia catafática racionalizou a idéia de Deus. Aplicou a Deus as categorias racionais que foram elaboradas em relação ao mundo objeto. E assim foi afirmado, de forma clara, como uma verdade básica, que Deus é ser. O tipo de pensamento adaptado ao conhecimento do ser lhe foi aplicado, tipo de pensamento que é marcado com a permanente impressão do mundo fenomênico, natural e histórico. Esse conhecimento cosmomórfico e sócio-mórfico de Deus levou à negação da verdade religiosa fundamental de que Deus é mistério e que o mistério está no coração de todas as coisas.
O ensino da teologia catafática, no sentido de que Deus é ser e que é cognoscível em conceitos, é uma expressão do naturalismo teológico. Deus é interpretado como natureza e os atributos da natureza são transferidos para ele (todo-poderoso, por exemplo); da mesma forma como na maneira sociomórfica as propriedades de poder são transferidas a ele. Mas Deus não é natureza, e não é ser, ele é Espírito. O Espírito não é ser, está acima do ser e está fora da objetificação. O Deus da teologia catafática é um Deus que se revela na objetificação. É uma doutrina sobre o que é secundário e não sobre o que é primário. O importante processo religioso no mundo é o de espiritualizar a idéia humana de Deus. O ensino de Eckhardt sobre Gottheit como possuindo maior profundidade do que Gott é profundo. Gottheit é mistério e o conceito de criador do mundo não é aplicável a Gottheit. Deus, como a primeira e a última coisa, é o não-ser que é supra-ser.
A teologia negativa reconhece que há algo mais elevado do que o ser. Deus não é ser. Ele é maior e mais elevado, mais misterioso do que nosso conceito racional de ser. O conhecimento do ser não é a última coisa, nem a primeira. O Uno de Plotino está do outro lado do ser. A profundidade da teologia apofática de Plotino, entretanto, é distorcida pelo monismo segundo a qual a entidade separada emana da adição do não-ser. Isso seria verdade, se por "não-ser" entendemos a liberdade enquanto distinta da natureza. O ensino de Eckhardt não é panteísmo, não pode ser transformado na linguagem da teologia racional, e aqueles que se propõem chamá-lo de teo-panteísmo possuem um termo melhor. Otto está certo quando fala do supra-teísmo e não do anti-teísmo de Sankhara e de Eckhardt. É preciso elevar-se acima do ser.
A relação que subsiste entre Deus, o mundo e o homem não deve ser pensada em termos de ser e necessidade. Deve ser concebido pelo pensamento que está integrado na experiência do espírito e da liberdade. Em outras palavras, deve ser pensado em uma esfera que está além de toda objetivação, de poder, de autoridade, causa, necessidade e externalidade. O sol fora de mim denota minha queda, deveria estar dentro de mim e emitir seus raios dentro de mim.
Isto tem, acima de tudo, importância para o significado cosmológico, e significa que o homem é um microcosmo. Mas no problema que se refere às relações que subsistem entre o homem e Deus, certamente não deve ser entendido como uma identidade panteísta. Tal forma de pensar é sempre evidência de um pensamento racionalista sobre o ser em que tudo é relegado a um lugar exterior ou identificado com alguma coisa. Deus e o homem não são externos um ao outro, nem afastado um do outro, nem são identificados, a natureza de um não desaparece no outro. Mas é impossível elaborar conceitos adequados sobre isso, somente podendo ser expresso em símbolos. O conhecimento simbólico que lança uma ponte de um mundo para o outro é apofático.
O conhecimento por conceitos que estão sujeitos às leis restritivas da lógica, é adequado apenas ao ser, que é uma esfera secundária objetivada, e não atende às necessidades do mundo do espírito, que está fora da esfera do ser ou do supra-ser. O conceito de ser tem sido uma confusão do mundo fenomenal com o noumenal, ou do secundário com o primário, do predicado com o sujeito. O pensamento indiano tomou a visão certa ao afirmar que o ser depende do ato. Fichte também mantém a existência do ato puro. O ser é postulado como um ato de espírito, é derivativo. O que é verdadeiro não significa o que pertence ao ser, como a filosofia escolástica medieval mantinha. Existentia não é apreendida pelo intelecto, ao passo que a essentia é apreendida, simplesmente porque é um produto do intelecto. O que é verdadeiro não significa aquilo que pertence ao ser, mas o que pertence ao espírito.
Uma questão de grande importância na questão da relação entre a teologia catafática e a apofática é a elaboração da idéia do Absoluto, e isso tem sido em geral a ocupação da filosofia, e não da religião. O Absoluto é a fronteira do pensamento abstrato, e o que os homens desejam é dar um caráter positivo a seu caráter negativo. O Absoluto é o que é separado e auto-suficiente, não há no Absoluto nenhuma relação com qualquer outro. Nesse sentido, Deus não é o Absoluto, o Absoluto não pode ser o Criador, e não conhece nenhuma relação com qualquer outra coisa. O Deus da Bíblia não é o Absoluto. Pode-se colocar, de forma paradoxal, que Deus é o Relativo, porque Deus tem relação com o outro, isto é, com o homem e com o mundo, e conhece a relação do amor. A perfeição de Deus é a perfeição de sua relação; paradoxalmente falando, é a perfeição absoluta dessa relação. Aqui o estado de ser absoluto é o predicado, não o sujeito. É duvidoso que se possa admitir a distinção que Soloviev traça entre o Existente Absoluto e o Absoluto que está vindo-a-ser; não há nenhum vir-a-ser no Absoluto. O Absoluto é o único, e a mente pensante pode dizer isso do Gottheit, embora o diga muito insuficientemente.
Uma prova real, não verbal, do ser de Deus é, de qualquer modo, impossível, porque Deus não é ser, porque o ser é um termo que pertence ao naturalismo, enquanto que a realidade de Deus é uma realidade do espírito, da esfera espiritual que está fora daquilo que pertence ao ser ou ao supra-ser. Deus não pode, em nenhum sentido, ser concebido como um objeto, nem mesmo como o objeto mais elevado. Deus não pode ser encontrado no mundo dos objetos. A prova ontológica compartilha a fraqueza de todo ontologismo. O serviço que Husserl prestou em sua luta contra todas as formas de metafísica naturalista deve ser reconhecido. O naturalismo compreende a plenitude do ser em termos de forma de uma coisa material, a naturalização da mente considera a mente como parte da natureza. Mas existência tem diferentes significados em diferentes esferas. Husserl faz uma distinção entre o ser de uma coisa e o ser da mente. Em sua visão, a mente é a fonte de todo ser, e nesse aspecto ele é um idealista. É o ser da consciência que ele está interessado.

É corretamente apontado que há uma diferença entre Husserl e Descartes, na medida em que este último não se preocupou com uma investigação sobre os vários significados da existência. Mas Husserl trabalha com isso e procura passar de uma teoria do conhecimento para uma teoria do ser. Mas ele preserva o ontologismo que vem de Platão. É sobre o ser que ele mantém sua atenção fixa. Mas ainda há mais para ser dito, que não só as coisas, mas até mesmo os Wesenheiten também existem apenas para a mente, e isso significa que estão expostos ao processo de objetificação.  Atrás disto está uma esfera diferente, a esfera do espírito. O Espírito não é o ser, mas o existente, aquilo que existe e possui verdadeira existência, e não está sujeito à determinação de nenhum ser. Espírito não é um princípio, mas personalidade, ou seja, a forma mais elevada de existência.
Aqueles idealistas que ensinaram que Deus não é ser, mas existência e valor, simplesmente têm ensinado, embora de forma distorcida e diminuída, a doutrina escatológica de Deus. Deus se revela neste mundo e é apreendido eschato-logicamente. Isso ficará mais claro nos dois últimos capítulos deste livro. Eu mantenho uma filosofia de espírito, mas ela difere da metafísica "espiritualista" tradicional. O Espírito não é entendido como substância, nem como outra natureza comparável à natureza material. Espírito é liberdade, não natureza: espírito é ato, ato criativo; tampouco é o ser que está congelado e determinado, ainda que de uma forma diferente. Para a filosofia existencial do espírito, o mundo material natural é uma queda, é o produto da objetificação, a auto-alienação dentro da existência. Mas a forma do corpo humano e a expressão dos olhos pertencem à personalidade espiritual e não se opõem ao espírito.

A filosofia ontológica não é uma filosofia da liberdade. A liberdade não pode ter sua origem no ser, nem ser determinada pelo ser: ela não pode entrar em um sistema de determinismo ontológico. A liberdade não sofre o poder determinante do ser e nem da razão. Quando Hegel diz que a verdade da necessidade é a liberdade, ele nega a natureza primária da liberdade e subordina-a inteiramente à necessidade. E pouco ajuda quando Hegel afirma que a condição finita do mundo é a consciência da liberdade do espírito, e que o objetivo final é a realização da liberdade. A liberdade é representada como o resultado de um processo necessário no mundo - como um dom da necessidade.  Mas então, tem de ser dito que no próprio Hegel Deus é um resultado do processo do mundo; ele vem-a-ser dentro da ordem do mundo. A escolha tem de ser feita - ou o primado de ser sobre a liberdade, ou o primado da liberdade sobre o ser. A escolha estabelece dois tipos de filosofia. A aceitação do primado do ser sobre a liberdade é inevitavelmente um determinismo aberto ou disfarçado. A liberdade não pode ser um tipo de efeito da ação determinante ou geradora de qualquer coisa ou pessoa; ela escapa para a profundidade inexplicável, para o abismo sem fundo. E isso é reconhecido por uma filosofia que toma como ponto de partida o primado da liberdade sobre o ser, a liberdade que precede o ser e tudo o que lhe pertence.
Mas a maioria das escolas de pensamento filosófico estão sob o domínio do ser determinado e determinante. E esse tipo de filosofar está sob o poder da objetificação, isto é, na expulsão da existência humana para o exterior. "No princípio era o Verbo" (Logos). Mas no princípio também estava a liberdade. O Logos estava em liberdade e a liberdade estava no Logos. Isso, no entanto, é apenas um dos aspectos da liberdade. Há outro aspecto, aquele em que a liberdade é inteiramente externa ao Logos e ocorre um choque entre o Logos e a Liberdade. Assim, a vida do mundo é um drama, pois está cheia da sensação de tragédia e antagonismo de princípios diametralmente opostos. Há uma dialética existencial da liberdade: ela avança para a necessidade, a liberdade não só liberta, mas também escraviza. Não há um desenvolvimento suave no processo de alcançar a perfeição. O mundo vive em tensões da paixão, e o tema básico de sua vida é a liberdade. As doutrinas filosóficas da liberdade dão pouco contentamento para a maioria. A maioria se encolhe ao entrar em contato com o mistério dela, e possuem medo de penetrar nesse mistério.

[...]
A metafísica alemã, em contraste com a latina e grega, tomava um princípio irracional como fonte primária do ser, não a razão, que inunda o mundo como a luz do sol, mas como vontade, ação. Isto vem de Boehme, e sob a superfície sua influência pode ser rastreada em Kant, Fichte, Schelling, Hegel e Schopenhauer. A possibilidade de uma filosofia da liberdade foi trazida à luz, uma filosofia que se baseia no primado da liberdade sobre o ser. Hegel não permanece fiel à filosofia da liberdade, mas nele também é possível observar o princípio enunciado por Boehme; ele também se inclina sobre o que está além dos limites do ontologismo. Kant deve ser incluído como um fundador da filosofia da liberdade.
Tudo nos leva à conclusão de que o ser não é o fundo último, que existe um princípio que precede a emergência do ser e que a liberdade está ligada a esse princípio. A liberdade não é ôntica, mas meônica. Ser é um produto secundário e sempre ocorre que nele a liberdade já é limitada, e até desaparece completamente. O ser é a liberdade congelada, é um fogo que foi sufocado e esfriou: mas a liberdade na fonte principial é ardente. Esse resfriamento do fogo, essa coagulação da liberdade é, de fato, a objetivação. O ser é levado a nascer pela consciência transcendental quando ela se volta para o objeto. Ao passo que o mistério da existência primária com sua liberdade, com seu fogo criador, é revelado na direção do sujeito. Vislumbres de elementos de uma filosofia da liberdade já podem ser vistos no maior dos escolásticos, Duns Scot, embora ele ainda estivesse acorrentado. A influência de Boehme é de fundamental importância em Kant. É também um tema fundamental em Dostoievski, cuja obra criativa é de grande importância na metafísica.
O mundo e o homem não são nem um pouco o que parecem para a maioria dos metafísicos profissionais, inteiramente concentrados nisso, na medida em que estão no lado intelectual da vida e no processo de conhecer. São apenas alguns deles que romperam em direção ao mistério da existência, e os filósofos pertencentes a tradições acadêmicas particulares são ainda menos. O Ser foi entendido como idéia, pensamento, razão, nous, ousia, essentia, porque era de fato um produto da razão, do pensamento, da idéia. O espírito aparentava, para aos filósofos, ser o nous, porque dele era extraído o sopro de vida primordial e sobre ele estava o selo do pensamento objetivador. Kant não trouxe à luz os sentimentos transcendentais, volições e paixões que condicionam o mundo objetivo das aparências. Não me refiro a paixões psicológicas nem volições psicológicas, mas transcendentais, que condicionam o mundo dos fenômenos a partir do mundo noumenal.
A vontade e a paixão transcendentais são capazes de serem transformadas e orientadas para outra direção, podem revelar um mundo dentro da profundidade do sujeito, na mente, antes de ser racionalizado e objetificado. De tal forma o próprio ser pode parecer-nos como uma paixão arrefecida e uma liberdade congelada. A paixão primária reside na profundidade do mundo, mas é objetificada, torna-se fria, torna-se estabilizada e é substituída pelo egoísmo. O mundo como paixão é transformado no mundo como uma luta pela vida.

Nicolas Hartmann, um típico filósofo acadêmico, define o irracional de maneira negativamente epistemológica, como aquilo que se tornou parte do conhecimento. Mas o irracional tem também um significado diferente, um significado existencial. É necessária uma nova paixão, uma nova vontade apaixonada, para derreter o mundo congelado, determinado, e trazer o mundo da liberdade à luz. E tal paixão, tal vontade apaixonada pode ser incendiada nos cumes da consciência, depois de todas as perguntas de teste da razão. Há uma paixão primária, original, a vontade apaixonada, que é também a vontade final e última. Eu a chamo de messiânica. É somente pela paixão messiânica que o mundo pode ser transformado e liberto da escravidão.

A paixão é, por natureza, dual, pode escravizar e pode libertar. Há fogo que destrói e reduz a cinzas, e há fogo que purifica e cria. Jesus Cristo disse que ele veio para trazer fogo do céu e desejou que pudesse ser acendido. O fogo é o grande símbolo de um elemento primordial na vida humana e na vida do mundo. As contradições de que é feita a vida do mundo e do homem são semelhantes ao elemento ígneo, que está presente até mesmo em nosso pensamento. O pensamento criativo, que experimenta oposição e é posto em movimento por ela, é pensamento ígneo. Hegel compreendeu isso na esfera da lógica. Mas a base ígnea ardente do mundo, para a qual os homens raramente rompem por causa de sua vida banal prosaica maçante e para a qual os homens de gênio rompem, dá origem ao sofrimento. O sofrimento pode arruinar os homens, mas há profundidade nele, e ele pode romper o mundo congelado da rotina do dia-a-dia.
O fogo é um símbolo físico do espírito. De acordo com Heráclito e Boehme, o mundo é abraçado pelo fogo, e Dostoiévski sentia que o mundo era vulcânico. E este fogo se encontra tanto na vida cósmica como na profundidade do homem. Boehme revelou um anseio, o anseio do nada para se tornar algo, a vontade primordial que saí do abismo. Em Nietzsche, a vontade de poder dionisíaca, embora expressa de forma maligna, era o mesmo fogo fundidor e flamejante. O elan vital de Bergson, embora seja dado de forma muito acadêmica e com sabor de biologia, nos diz que o fundamento metafísico do mundo é o impulso criativo e a vida. Frobenius, na esfera mais restrita da filosofia da cultura, fala do agito, do aperto da emoção e do choque como fontes criativas de cultura. Shestov sempre fala de um choque como fonte de verdadeira filosofia. E, verdadeiramente, o choque é uma fonte de força na percepção do mistério da existência humana e da existência do mundo, o mistério do destino. Pascal e Kierkegaard foram pessoas que haviam sido sujeitadas a choques desse tipo. Mas suas palavras eram palavras de horror e quase desespero. Mas é num estado de horror e do desespero que o homem move em seu caminho, muito embora o terror e o desespero não definem aquilo que o mundo e o homem são em sua realidade primária e vida original. A realidade primária, a vida original é a vontade criativa, a paixão criativa, o fogo criativo. A partir dessa fonte primária de sofrimento, o horror e o desespero realmente emergem. No mundo objetivo e nas aparências já vemos o processo de resfriamento e o reino da necessidade e da lei. A resposta do homem ao chamado de Deus deveria ter sido ato criativo, no qual o fogo ainda era conservado. Mas a queda do homem teve como resultado que a única resposta possível tomou a forma de lei.
Nisso se oculta o mistério das relações divino-humanas, e deve ser entendido não de maneira objetificada, mas existencial. Mas a paixão criativa é preservada no homem mesmo em seu estado decaído. É mais claramente visto no gênio criativo, e permanece ininteligível para as vastas massas da humanidade, submersas como estão na rotina diária maçante. Na profundidade do homem está escondida a paixão criativa do amor e da simpatia, a paixão criativa de conhecer e dar nomes às coisas (Adão deu nomes às coisas), a paixão criativa pela beleza e poder de expressão. Nas profundezas do homem existe uma paixão criativa pela justiça, em assumir o controle da natureza: e há uma paixão criativa geral para um impulso exultante vital e êxtase. Por outro lado, a queda do mundo objeto é o sufocamento da paixão criativa e uma demanda de esfriamento.
A realidade primária e a vida original se manifestam para nós de duas formas: no mundo da natureza e no mundo da história. Veremos mais adiante que estas duas formas do mundo, como aparências, estão ligadas a diferentes tipos de tempo. Enquanto a vida na natureza flui no tempo cósmico, a vida na história avança no tempo histórico. Para a metafísica do tipo naturalista, o ser é a natureza, não necessariamente material, mas também a natureza espiritual. O espírito é naturalizado e entendido como substância. Sendo assim, a história que é preeminentemente movimento no tempo é subordinada à natureza, e transformada em uma parte da vida cósmica. Mas a posição fundamental da historiosofia, em oposição à filosofia naturalista predominante, consiste em apenas isso: não é a história que faz parte da natureza, mas a natureza que faz parte da história. Na história, o destino e o sentido da vida do mundo são trazidos à luz.
Não é no ciclo da vida cósmica que o significado pode ser revelado, mas no movimento dentro do tempo, na realização da esperança messiânica. As fontes da filosofia da história não se encontram na filosofia grega, mas na Bíblia. O naturalismo metafísico, que considera o espírito como natureza e substância, é ontologismo estático. Ele faz uso do simbolismo espacial de uma concepção hierárquica do cosmos, não de símbolos associados ao tempo. Mas, por outro lado, interpretar o mundo como história, é ter uma visão dinâmica do mesmo, e esta visão compreende a emergência do que é novo.
Aqui há um embate entre dois tipos de Weltanschauung, um dos quais pode ser descrito como cosmocentrismo e o outro como antropocentrismo. Mas a natureza e a história estão sob o poder da objetivação. A única saída possível dessa objetivação é através da história, através da auto-revelação da meta-história. Não se deve buscar submergindo-se no ciclo da natureza. A saída está sempre ligada a um terceiro tipo de tempo, com o tempo existencial, o tempo da existência interior. Somente uma filosofia existencial não objetivada que pode chegar ao mistério e significado da história do mundo e do homem. Mas quando se aplica à história, a filosofia existencial torna-se escatológica.
A filosofia da história, que não existia no que se refere à filosofia grega, não pode deixar de ser cristã. A história tem um sentido simplesmente porque o sentido, o Logos, apareceu nele; o Deus-homem se encarnou, e tem significado porque está se movendo em direção ao reino de Deus - ao reino da Deus-humanidade. O tema que, em sentido derivado, é chamado de "ser", diz respeito ao encontro e à ação recíproca entre a vontade apaixonada primordial, o ato criativo primordial, a liberdade primordial e o Logos, o Sentido. E estes são flashes da liberdade, vontade, desejo e paixão brilhando pelo poder do Logos-Sentido, através da aquisição da espiritualidade e um senso de liberdade espiritual. A paixão na vida cósmica é irracional em caráter e subconsciente, e ela precisa ser transformada e tornar-se supra-racional e supra-consciente. Somos informados sobre a natureza destrutiva da paixão, e os homens atribuem uma supremacia da razão e prudência sobre a paixão. Mas a vitória sobre o mal e as paixões escravizantes também é uma vitória apaixonada, é a vitória da luz radiante, a luz de um sol, não da razão objetificante. Será a ausência de paixão um erro na nomenclatura ou uma idéia equivocada? O sol espiritual não é desapaixonado. A semente brota da terra quando os raios do sol caem sobre ela.
A última tentativa de construir uma ontologia é a obra de Heidegger, e ele afirma que sua ontologia é existencial. Não se pode negar que o pensamento de Heidegger exibe grande intensidade de esforço intelectual, concentração e originalidade. Ele é um dos filósofos mais sérios e interessantes do nosso tempo. Sua busca por novas frases e novas terminologias é um pouco irritante, ainda que seja um grande mestre a este respeito. Em toda questão metafísica, ele corretamente leva toda a metafísica à vista. Não podemos deixar de notar  - que é uma coisa reveladora e surpreendente - que a última ontologia, na qual este dotado filósofo do Ocidente chegou, não é uma teoria do ser, mas do não-ser, do nada. E a sabedoria mais atualizada sobre o assunto da vida do mundo é expressa nas palavras 'Nichts nichtet'. O fato de Heidegger suscitar o problema do nada, do não-ser, e que, em contraste com Bergson, reconhece sua existência, deve ser considerado como um serviço que lhe devemos. A este respeito, pode-se notar um parentesco com os ensinamentos de Boehme sobre o Ungrund. Sem o nada, não haveria existência pessoal nem liberdade.
Mas Heidegger é talvez o pessimista mais extremo na história do pensamento filosófico do Ocidente. De qualquer forma, seu pessimismo é mais extremo e mais profundo do que o de Schopenhauer, pois este estava ciente de muitas coisas que eram um consolo para ele. Além disso, ele não nos dá, de fato, nem uma filosofia do ser, nem uma filosofia do Existenz, mas apenas uma filosofia do Dasein. Ele está inteiramente preocupado com o fato de que a existência humana é lançada no mundo. Mas este ser lançado no mundo, no das man, é a queda. Na visão de Heidegger, a queda pertence à estrutura do ser; o ser lança suas próprias raízes na existência comum. Ele diz que a ansiedade é a estrutura do ser. Ansiedade traz o ser para o tempo.
Mas de que altura tudo isso pode ser visto?  Que significado inteligível pode-se dar? Heidegger não explica de onde é adquirido o poder de conhecer as coisas. Ele olha para o homem e para o mundo exclusivamente a partir de baixo, e não vê nada além da parte mais inferior deles. Como homem, ele está profundamente perturbado por este mundo de cuidado, medo, morte e descontentamento diário. Sua filosofia, na qual ele conseguiu mostrar certa verdade amarga - se bem que não a verdade final - não é uma filosofia existencial, e a profundidade da existência não se faz sentir nele.
Essa filosofia permanece sob o domínio da objetificação. O estado de ser lançado no mundo, no das man, é, em verdade, uma objetificação. Mas, em todo caso, este ensaio sobre a ontologia não tem quase nada em comum com a tradição ontológica que  descende de Parmênides e Platão. Também não é uma questão de acaso, fato muito significativo, que esta última das ontologias encontra o seu apoio no nada. Isso não significa que é necessário rejeitar a filosofia ontológica e passar para uma filosofia existencial do espírito, que não é ser, mas que também não é não-ser?