quarta-feira, 7 de junho de 2017

O Problema da Unidade das Religiões (Jean Borella)

Somos assim levados a afirmar, acima de todas as mensagens divinas, acima de todas as "formas sagradas", uma "unidade transcendente", nos termos de Frithjof Schuon, em que todas as religiões são reintegradas e ultrapassadas em sua verdade universal e supraformal. Sem dúvida, Bruno Berard não chega a definir, como Frithjof Schuon, uma Religio Perennis, uma "meta-religião universal e perene", cujo conteúdo não seria outro senão a doutrina metafísica pura; mas os seguidores de Schuon seriam indubitavelmente tentados a repreendê-lo por isso, julgando que ele não vai até o fim.

No entanto, a questão pode ser colocada: ele deve ir até o fim? Neste domínio, muito raros são aqueles que realmente se questionaram sobre as implicações do pensamento sobre a "unidade transcendente". Percebe-se muito bem o objeto desta doutrina: entende-se como a superação dos particularismos religiosos próprios dos exoterismos, dos particularismos incapazes de imaginar outra forma do divino do que aquele que colore seu próprio horizonte confessional, um horizonte que é naturalmente atado a um sentimento para o absoluto.  Entre os cristãos desenraizados que somos, esta superação beneficia prontamente de uma presunção favorável: rompe com o egocentrismo espontâneo dos crentes e com a conhecida intolerância da Igreja Católica, com seu imperialismo mundano e até com um certo racismo que é difícil livrar-se. Estas são, no entanto, apenas considerações morais que têm apenas uma relação indireta com a verdade. Um ponto de vista mais intelectual consistirá em comparar as religiões umas com as outras a fim de mostrar sua unidade profunda. Muitas vezes realizado, essas comparações levam a alguns resultados. Mas qual é o valor desses resultados com respeito à unidade divina das revelações? Este comparatismo pode ser empregado por historiadores da religião ou filósofos, e isso de várias maneiras. O historiador que identifica analogias entre fenômenos religiosos de origens diversas, se ele quer ir além de uma simples observação e dar um conjunto de significados a essas analogias, deve ainda levá-las em conta. E então ele estará fazendo o trabalho da filosofia. Como no caso de Mircea Eliade, ele verá uma manifestação da unidade de uma consciência religiosa que, sob formas variadas, reage de forma mais ou menos de maneira idêntica através do tempo e do espaço. Falando como Gilbert Durand, existem "estruturas antropológicas da imaginação"; a imaginação é estruturada de acordo com categorias simbólicas a serem descobertas em toda parte. Mas esta não é a doutrina da unidade das revelações. O ponto de vista filosófico pode ir mais longe na sua análise da consciência religiosa, além de uma fenomenologia das formas concretas das religiões, sempre tomadas num contexto cultural definido. O objetivo do filósofo será, então, identificar, ouso dizer, a forma geral (e, portanto, abstrata) de toda consciência religiosa possível: Hegel, declarando que a religião é a forma simbólica assumida pela consciência do Absoluto, ilustra esse ponto de vista notavelmente bem. Mas isto é a unidade das revelações? A perspectiva de Guenon-Schuon acrescenta algo que consiste em colocar esta unidade como uma obra divina, como um efeito desejado por Deus, ou, se "Deus" parece uma noção muito "abraâmica", digamos pelo "Céu" ou pelo "Princípio Supremo". A verdade da unidade não é mais da esfera psicológica ou filosófica, é da ordem "teológica", é uma verdade sagrada. As teses de Eliade ou de Hegel são a-religiosas por natureza, ou, em qualquer caso, desejam ser independentes de todo Credo. A tese de Guenon-Schuon é fundamentalmente "religiosa", se pelo menos aceitamos usar este adjetivo em seu sentido mais geral (em oposição a Guenon).


Isto significa que não é fruto de uma observação neutra a posteriori, mas corresponde a uma espécie de fé. Evidentemente, será questionado que não se trata de fé, mas de evidência metafísica e, portanto, uma certeza intelectual que está envolvida aqui, o que é possível; mas o que deve ser incontestável é que tal certeza e evidência são bastante incomuns, uma vez que, até onde sei, esta doutrina, com toda a sua força e precisão, foi formulada muito recentemente na história da humanidade e, portanto, não há dúvidas que foram sancionadas pela razão ordinária. Em outras palavras, não há nada no comparatismo fenomenológico ou na análise filosófica que imponha necessariamente a conclusão de uma unidade de revelações desejada por Deus, mesmo que muitos fatos sagrados ou discursos epistemológicos sugiram. Algo mais é necessário, um salto pelo qual o espírito se situa desde o princípio nas profundezas da Sabedoria Divina e considera as várias revelações desde sua Causa suprema e, portanto, a priori. A atitude do homem em relação à revelação é receptiva. Sobre o que transpira este lado do ato da revelação, "do ponto de vista de Deus", o homem não sabe nada: por que Deus assumiu tal forma? Por que em tal momento? Por que em tal lugar? - essas são perguntas sem respostas, ou questões que não nos dizem respeito. Mas a doutrina da unidade ultrapassa este limite, estabelece-se no segredo de Deus, e vê as religiões de cima para baixo.

Esta atitude pode aparentar uma pretensão ilimitada. E, no entanto, sente-se justificada, em primeiro lugar, porque pensa ir direto ao fim de sua lógica, até o fim das necessidades da compreensão metafísica, e segundo, porque tendo feito isso pensa-se que se está com Deus. A pluralidade de religiões, que é um fato incontestável, é de fato um teste para o crente. Se apenas minha religião é verdadeira, por que Deus permitiu que houvesse outras? A doutrina da unidade atenua este escândalo ou, pelo menos, nos permite acreditar que há uma ciência que a explica perfeitamente: todas as religiões dizem a mesma coisa sob diferentes formas. Para dizer a verdade, provar que tal é realmente o que ocorre é certamente uma tarefa gigantesca que nunca foi e nunca será empreendida. Nesse sentido, devemos contentar-nos com algumas conexões, seja em pontos essenciais ou secundários, ou pelo menos julgados como tal em ambos os casos por aqueles que os fazem. Observe, no entanto, que no cristianismo há também alguns elementos centrais, que o próprio Guenon indica que não existem equivalentes nas outras religiões, como quando ele mostra em A Grande Tríade (cap.1) que a trindade cristã não corresponde exatamente a qualquer outro ternário tradicional, ou, mais uma vez, quando ele afirma que os sacramentos cristãos são "algo cujo equivalente exato não é encontrado em outro lugar" (Perspectivas sobre a Iniciação, Cap. 23, p.153). Mas por fim, apesar dessas dificuldades, a tese da unidade será admitida com confiança. O que resta, no entanto, é perguntar-se por que Deus quis esta diversidade. Que não é apenas uma pluralidade pura e irredutível e apresenta-se, ao contrário, como múltiplas visões de uma mesma Realidade, isto constitui, em muitos aspectos, um ganho considerável de inteligibilidade, pelo menos em princípio. Mas por que Deus não poderia revelar-se sob uma única forma, ou de acordo com um único evento fundador, que seria então diversificado, mas com referência à unicidade fundadora?

René Guénon e Frithjof Schuon 

Aqui precisamos diferenciar as respostas que Guenon e Schuon trazem a essas questões. Para dizer a verdade, Guenon não parece fornecer razões metafísicas para a pluralidade de religiões, ou, para respeitar suas formulações, a pluralidade de "formas tradicionais" : para ele isso é um fato, e não é senão uma conseqüência dos diversos cenários humanos aos quais a Tradição Primordial (a revelação primeira) deve necessariamente se adaptar. Há, portanto, causas cosmológicas para explicar essa pluralidade. Mas, nesse caso, precisamos perguntar: por que existem humanidades culturalmente diferentes? Existem culturas diferentes que impõem as diferentes formas de revelação - a mensagem divina abraça a forma de seu receptáculo - ou existem revelações diversas que comunicam suas formas aos grupos humanos a quem elas são dirigidas, de tal forma que a diversidade cultural seria um efeito da diversidade de formas reveladoras? Seja como for, direi que, para Guenon, a diversidade é secundária e a unidade primordial. E assim ele está menos interessado naquilo que poderia ser a razão metafísica do pluralismo religioso, em seu "por quê", do que em seu "como", que é a maneira em que sua manifestação histórica deve ser entendida. Para responder a esta questão Guenon formula uma teoria extraordinária, a teoria do Rei do Mundo. Esta teoria realiza à perfeição um conceito "administrativo" da unidade das religiões. Todas as religiões são modificações secundárias de uma Tradição primordial, cujo depósito é confiado a um indivíduo misterioso, o Rei do Mundo, cercado por todo um conjunto de "funcionários" sagrados que asseguram a relação do Centro primordial, situado em algum lugar Subterrâneo na Ásia, com as várias formas tradicionais. Neste modelo verdadeiramente mitológico, componente-chave do edifício Guenoniano, a continuidade horizontal tradicional prevalece sobre as descontinuidades reveladoras e verticais.

É por isso que o conceito de "tradição" (e regularidade tradicional) é tão importante para Guenon. O advento de uma nova revelação supõe, no entanto, uma intervenção divina no tecido cultural de tal ou qual humanidade, um tecido que não pode deixar de ser despedaçado em alguns aspectos; mas, na teoria de Guenon, tudo transparece como se a iniciativa divina estivesse em conformidade com as regras que regulam a economia reveladora universal, cujo administrador é o Rei do Mundo. Chega-se ao ponto em que revelações como o cristianismo ou o budismo que, não parecendo obedientes ao Dharma, à Norma universal, são consideradas por alguns dos mais fiéis e conhecedores guenonianos como "heresias formais do ponto de vista da Tradição" (Charles-André Gillis, Introduction à l'enseignement et au mystère de René Guénon, p.87). Essa conclusão surpreendente, que exclui formalmente da tradicional "ortodoxia unânime e universal", duas grandes religiões, é, no entanto, governada por uma lógica rigorosa. Certamente o próprio Guenon não chegou a esta conclusão, pelo menos não explicitamente com respeito ao cristianismo, embora possa ser perguntado, do ponto de vista guenoniano, o que resta de regularidade tradicional numa religião que perdeu sua parte esotérica e interrompeu toda conexão com o Rei do Mundo. Reciprocamente, seria correto perguntar: se tal conclusão pode ser deduzida do sistema, isso não desqualifica o sistema? Deixarei de lado esta questão e simplesmente direi que a doutrina do Rei do Mundo de alguma forma realiza a segunda hipótese que eu previ anteriormente: um evento fundador único (a descida à Terra da Tradição primordial) e múltiplas modulações desta tradição única.

Agora, nos resta perguntar: como Guenon sabe tudo isso? Como ele é o único, por seu próprio acesso (Rei do Mundo, cap. 1), a ter falado sobre isso com tanta precisão, devemos supor que ele estava em contato mais ou menos direto com o Centro Supremo que o conferiu como seu porta-voz, a menos que ele, de uma maneira ou de outra, seja idêntico ao Rei deste misterioso Centro. De tal forma vemos onde a doutrina da unidade das revelações pode conduzir quando se pretende examinar as possíveis condições de sua formulação. Para justificar Guenon, alguns dirão que tudo o que diz respeito ao Rei do Mundo é da ordem mítica. Mas não há dúvida de que Guenon apresentou todo esse simbolismo como sendo bem real.

Muito diferente é a forma assumida pela doutrina da unidade para Schuon. Se a continuidade horizontal da Tradição prevalece com Guénon sobre as descontinuidades verticais, é exatamente o oposto com Schuon, que rejeita, além disso, a concepção administrativa desta unidade sob a forma da jurisdição de um Rei do Mundo em cuja existência ele não crê. De maneira geral, ele está mais atento à diversidade qualitativa fenomenológica das religiões, bem como à relação direta que cada uma mantém com sua origem divina. Cada religião é o fruto de uma iniciativa divina que, de certa maneira, rompe com a trama das tradições anteriores e, portanto, não precisa de nenhuma jurisdição para sancioná-la: Deus sabe o que está fazendo. E mesmo quando isso envolve, não uma nova revelação, mas uma nova interpretação de uma religião existente, por exemplo, o luteranismo com respeito ao catolicismo, o mesmo princípio é utilizado: o evangelismo luterano é reconhecido e abençoado pelo céu na medida em que corresponde a uma possibilidade arquetípica incluída em na essência do cristianismo. A jurisdição do princípio da transmissão apostólica cessa onde o princípio de uma correspondência arquetípica intervém (Cristianismo/Islã Bloomington: World Wisdom Books, 1985, pp. 15-16).

Examinemos agora os argumentos que ajudam Schuon a estabelecer a priori a necessidade de uma pluralidade de formas religiosas (A Unidade Transcendente das Religiões, 1984, pp. 19-20). Podem ser resumidos da seguinte maneira: nenhuma forma é única, pois, sendo uma manifestação limitada, toda forma implica uma pluralidade de formas análogas. Esta dialética parece algo aproximado e nem sempre conclusivo. Observar as religiões como formas variadas de uma mesma espécie (a espécie "religião") é o ponto de vista da ciência das religiões ou da filosofia. Isso supõe que alguém esteja em posse do conceito geral de religião abstraído de um conhecimento real das religiões existentes; mas, reciprocamente, para reconhecer tal manifestação como pertencente à espécie "religião", é necessário estar já em posse de seu conceito geral. Ora, tal conceito apareceu apenas no final da história das idéias (por volta do terceiro século depois de Cristo): as línguas antigas (hebraico, sânscrito, grego, latim, etc) não tinham consciência disso (o latim religio significava apenas "piedade"). Portanto, do ponto de vista de uma determinada religião, não existe uma "forma religiosa". Assim, falar de "forma religiosa" é já se situar fora das religiões e pressupor sua multiplicidade. Isto não demonstra sua necessidade.


Deixarei de lado o fato de que Schuon também trouxe, para explicar essa multiplicidade, a diversidade cultural dos grupos humanos, mas se pergunta-se: onde Schuon está realmente se situando quando fala de formas religiosas? Está no nível conceitual, como é feito pela ciência e pela filosofia? Isso não é impossível, mas isso não diz nada sobre a unidade divina dessas formas: um incrédulo pode estar bastante interessado na ciência ou filosofia das religiões e encontrar sua unidade, por exemplo, na identidade da imaginação humana ou do inconsciente de que elas são a expressão; uma teoria da religião não é necessariamente religiosa. Ainda mais, deve ser concedido, ao contrário, que, por si só, uma teoria deve ser religiosamente neutra na medida em que permanece no nível conceitual. Sem dúvida, há o caso de uma teoria religiosa desenvolvida a partir do ponto de vista de uma religião determinada: por exemplo, a teoria de Maritain da "religião natural" em oposição à religião revelada (judaísmo e cristianismo): esta é claramente uma teoria religiosa, mas não de todas religiões, uma vez que não abrange o judaísmo e o cristianismo.Uma teoria religiosa das religiões implica que esta está situada além de todas as religiões, e situado ali religiosamente. Em suma, a teoria inevitavelmente se torna a religião: torna-se a Religião Perene (Light on the Ancient Worlds (Bloomington: World Wisdom Books, 1984 pp. 136-144), que Schuon mais tarde chamará Sophia perennis. Falar de uma "unidade transcendente" (e não de uma unidade imanente) é dizer que a unidade das religiões está em Deus, no Verbo divino - que é auto-evidente e nada original - ou é postular uma Religião suprema, uma religião das religiões além das religiões. E postulá-la como tal, explicando seus axiomas fundamentais (distinção do Absoluto do relativo, concentração no Absoluto, etc.), é provar que se tem acesso a esta Sophia Perennis, e, portanto, tal pessoa é seu profeta, ou mesmo o revelador. Tal é a lógica estrita do curso de Schuoniano, e acho que Schuon assumiu todas as suas consequências.

Poderia agora ser perguntado: o que há de religioso nessa Religião perene? Qual é o seu conteúdo? Certamente, os poucos princípios que Schuon a compôs (discernimento do Real da ilusão e concentração no único Real) têm grande poder de síntese. Mas tais princípios também estão bastante próximos de um diagrama abstrato de toda a religião, em resumo, de seu conceito. Quando Hegel define a religião como a 'consciência do Absoluto', ele está dizendo exatamente o mesmo, mesmo se em muitos pontos, o pensamento religioso dos dois pensadores diferem consideravelmente e sem dúvida não para a vantagem de Hegel: Schuon possui um conhecimento das religiões que Hegel não teve, e permanece fundamentalmente religioso e "místico". Mas, de fato, o clima intensamente espiritual da doutrina de Schuon é atribuído menos, parece-me, à própria natureza da Religio perennis, como ele moldou essa noção - e ele é o primeiro a ter feito isso - do que as religiões já existentes (cristianismo, islamismo e a tradição nativa americana tanto quanto sua própria subjetividade está em jogo), da qual ele toma emprestado esse clima, tonalidade ou atmosfera, e ele transpõe esteticamente para o nível de uma Sophia perennis (re)constituída e, portanto, para o nível de uma abstração. E essa é a dificuldade e a ambiguidade de seu projeto: por sua sagrada aparência promete mais do que pode dar. Pois o que é verdadeiramente religioso em uma religião é apenas o que realmente desce do céu, ou seja, o que é revelado por Deus.Toda esta questão se resume ao seguinte ponto: ou se admite que a Religio perennis é revelada - e que revelação! da unidade transcendente de todas as revelações, o que levaria, em certos aspectos, a fazer Schuon igual ou mesmo superior a outros reveladores religiosos (mas Schuon não vai tão longe) - e, então, de fato, possui um caráter religioso ou não, e nesse caso tem apenas o "perfume" da religião, e não a sua substância. 

Por todas estas razões, parece necessário renunciar à tese de uma unidade transcendente de religiões, quer esta unidade seja a de uma tradição primordial confiada em depósito ao Rei do Mundo, quer seja formulada com os atributos da Religio Perennis schuoniana e identificado com o esoterismo "absoluto" ou quintessencial, para se distinguir do esoterismo relativo ou confessional (como o sufismo ou a Cabala), que só prolonga tal ou tal religião interiormente. Esta tese deve ser renunciada porque, em sua forma guenoniana e sua forma schuoniana, leva a conseqüências extravagantes e excessivas. [...]



Trecho do artigo "The Problematic of the Unity of Religions" por Jean Borella