domingo, 19 de fevereiro de 2017

Distinção e Hierarquia (por Richard M. Weaver)

Pois se todas as coisas tivessem surgido de modo automático, ao invés de resultarem do intelecto, todas elas seriam uniformes e sem distinção.
Santo Atanásio

O principal e mais portentoso acontecimento de nossa época é a firme supressão das distinções que criam a sociedade. A sociedade racional é um espelho do logos, e isso quer dizer que ela possui uma estrutura formal que possibilita sua compreensão. Portanto, a preservação da sociedade está diretamente ligada à recuperação do verdadeiro conhecimento. Para que nossa recuperação tenha êxito, não se insistirá o bastante no fato de que sociedade e massa são termos contraditórios e em que aqueles que procuram fazer as coisas em nome da massa são os agentes da destruição no meio de nós. Se a sociedade é algo que possa ser compreendido, ela deve ter uma estrutura; se ela tem uma estrutura, ela deve ter uma hierarquia. O discurso jacobino se desfaz diante dessa verdade metafísica.

Talvez a experiência mais dolorosa da consciência moderna seja a sensação de ter perdido o centro. Ora, esse é o resultado inevitável de séculos de insistência para a sociedade abandone sua estrutura. Qualquer um percebe que hoje as pessoas estão ansiosas para saber quem realmente está autorizado a exercer a autoridade e que elas procuram ansiosamente as fontes dos valores autênticos. Em suma, elas desejam conhecer a verdade, mas ensinaram-lhes uma deturpação (a inexistência de distinções em uma sociedade justa) que a cada dia diminui suas chances de alcançá-la.

Chegamos a um ponto em que a seguinte pergunta deve ser feita com toda seriedade: será que o homem deseja viver em uma sociedade ou em uma espécie de comunidade animal? Pois, se o banimento de todo tipo de distinção continuar, não haverá esperança de integração senão no nível do instinto.

O homem, depois de desenvolver sua visão metafísica e tornar-se capaz de ter sentimentos racionais, passa a identificar duas bases de elevação: o conhecimento e a virtude - se é que não formam uma base apenas; mas esse é um problema não que precisa ser resolvido aqui. O homem bom, aquele que é fiel aos sentimentos justos, sempre foi o administrador natural da autoridade, ao passo que o homem de ciência sempre foi necessário para aquelas atribuições que requerem organização e capacidade de previsão. Com esses critérios foi possível erigir uma estrutura que reflete nosso respeito pelos valores. Os homens, de modo proporcional às suas contribuições para o ideal espiritual expresso por essa criação, encontraram abrigo em vários níveis, com a sensação fundamental de que sua posição não era arbitrária, mas natural e adequada, visto que tal estrutura é o logos. Tal é a sociedade em cujo seio o ser humano possui um senso de direção; literalmente, pode-se dizer, ele sabe diferenciar o “ acima” do “ abaixo” , porque sabe onde procurar os bens superiores. Ele pode viver no plano do espírito e da inteligência porque são estabelecidos alguns pontos de referência. 

Obviamente, esse não é um contexto social em que todos se chamam “Zé” - esse nome anônimo que expressa tão bem a impressão que o homem moderno tem das pessoas. Se o sentimento permanece, há nomes verdadeiros e até mesmo títulos honoríficos. Para o bem de todos, os privilégios estarão vinculados às funções mais elevadas, e isso gerará uma hierarquia. Mas a hierarquia exige uma aceitação comum de fins, e é por isso que as ideologias concorrentes de nossa época geram confusão.

A história da nossa desintegração social teve início no século XIV com a desestabilização das relações, mas o esforço para abolir totalmente a sociedade só se tornou programático no século XIX, quando ele apresentou-se como a culminação da filosofia natural predominante. Visto que tanto o conhecimento como a virtude requerem o conceito de transcendência, eles se tornam realmente detestáveis para aqueles que estão comprometidos com padrões materiais, e vimos quão insistente foi o ímpeto para buscar orientação nos níveis mais baixos. Agora o pensamento social associa-se a uma unidade estatística, o consumidor, que tem o poder de destruir completamente a estrutura metafísica que sustenta a hierarquia. Lembremo-nos de que a sociedade tradicional organizava-se em torno do rei e do sacerdote, do soldado e do poeta, do camponês e do artesão. Agora as distinções vocacionais desaparecem, e o novo modo de organização, se assim podemos chamá-lo, gira em torno da capacidade de consumo. Na base dessa mudança está a teoria do romantismo: se dermos mais importância ao sentimento do que ao pensamento, em breve daremos mais importância - por mera extensão - ao desejo do que ao merecimento. Até mesmo instituições de ensino entregaram-se ao padrão utilitarista, e o ex-reitor da Universidade de Harvard, James B. Conant, declarou em um discurso que a principal contribuição das universidades norte-americanas foi a ideia de igualdade de toda tarefa útil. 

Essa é a formidável solução oferecida pelo socialismo, que é ele mesmo o fruto materialista do capitalismo burguês. 

É bastante esclarecedor notar que o socialismo é originalmente um conceito da classe média, e não do proletariado. A classe média deve à posição social que ocupa um apego especial à segurança e à autocomplacência. Protegida dos dois lados por classes que devem absorver impactos, ela tende a esquecer-se dos perigos da vida. A classe inferior, que vive perto da realidade das necessidades, desenvolve uma fortaleza varonil e, às vezes, alcança a grandeza em face de sua precariedade.

A classe superior carrega consigo várias responsabilidades e não pode furtar-se a levar uma vida dramática, porque muitas coisas recaem sobre ela. Ela é surpreendida por descargas de favores e por momentos de desgosto, e aquele ocupa o topo da hierarquia, quer ela se baseie ou não em valores verdadeiros, sabe que sua própria vida está em jogo. Entre as classes inferior e superior encontra-se a frívola classe média, que cresceu enormemente sob os auspícios da nova orientação do homem ocidental. Amante do conforto, temerosa em relação aos riscos e atemorizada pela possibilidade da mudança, seu objetivo é fundar uma civilização materialista que banirá as ameaças a sua autocomplacência. A classe média tem convenções, e não ideais; ela se lava, em vez de permanecer limpa. O estado atual da Europa é o resultado direto da ascendência da burguesia e sua visão de mundo corrompida.

Portanto, a degradação final da filosofia baconiana é o fato de o conhecimento se transformar em um poder a serviço da concupiscência. O Estado, deixando de expressar as qualidades interiores do homem, transforma-se em uma imensa burocracia projetada para promover a atividade econômica. Não é de surpreender que os valores tradicionais - por mais que sejam elogiados em ocasiões comemorativas - devam hoje fugir de obstáculos e encontrar rincões onde possam sobreviver. A observação de Burke de que o Estado não é “uma parceria em relação a coisas úteis apenas à existência animal vulgar” parece ser agora tão antiquada quanto sua homenagem ao cavalheirismo.

Os defensores da tradição comumente classificam as forças que ameaçam nossas instituições como “atividade subversiva” . A descrição é correta. Frequentemente vemos na linguagem das pessoas comuns uma lógica que, em razão de uma pobreza filosófica, elas mesmas não conseguem interpretar. É o que acontece nesse caso, pois é possível demonstrar que a expressão “ atividade subversiva” tem uma aplicação precisa. Na verdade, seria difícil encontrar uma frase mais correta. A expressão mostra claramente uma inversão por meio da qual a matéria é posta acima do espírito, ou a quantidade acima da qualidade. Desse modo, ela descreve perfeitamente o que comumente serve para descrever: as várias formas de coletivismo que se baseiam em uma filosofia materialista. Até mesmo o mais estúpido dos membros de um comitê legislativo conservador, ao procurar pela fonte das ameaças às instituições, não deixa de perceber que as doutrinas que colocam os interesses materiais acima dos espirituais (e que destroem as distinções racionais entre os homens) são objetivamente incompatíveis com a sociedade que ele representa. Se expressar tais opiniões, ele provavelmente será chamado de ignorante ou egoísta, porque normalmente não as expressa muito bem. Portanto, providenciemos para ele um talentoso porta-voz. Eis o que Shakespeare diz sobre o tema da atividade subversiva:

Se acaso se destrói a hierarquia, / Que é a escada de todo alto desígnio, / Toda a empresa se abala. Como podem / Classes de escolas, ou comunidades, / Pacífico comércio entre cidades, / A primogenitura e o nascimento, / Prerrogativas, cetros e coroas / Senão por graus manter-se onde merecem?/Removam-se esses graus, falhe essa nota, / E vejam que discórdia! As coisas entram / Em conflito gratuito: as águas, soltas, / Erguendo-se mais alto do que as praias, / Transformam em lama todo o globo sólido: / O mando entrega-se à imbecilidade, / E o rude filho fere e mata o pai. / Seria certa a força: o certo e o errado, /De cujas lutas a justiça nasce, / Sem a justiça não existem mais. / Tudo se transforma então só em poder, / O poder, em vontade e apetite; / E o apetite - lobo universal - , / Com base no poder e na vontade, / Terá, com a força, o mundo como presa, / E acaba se comendo.

E Milton, apesar de seu feroz republicanismo, parece ter aceitado a ideia de que “ ordens e graus não entram em conflito com a liberdade, mas se harmonizam com ela” .Nosso legislador também pode encontrar apoio na Primeira Carta aos Coríntios, na qual Paulo defende “ diversos modos de ação” . Paulo apresenta o argumento metafísico: “Mas Deus dispôs cada um dos membros no corpo, segundo a sua vontade. Se o conjunto fosse um só membro, onde estaria o corpo?” .

O programa da social-democracia eliminaria essa “ escada que conduz aos fins mais elevados” . Isso aconteceria porque o fim mais elevado é uma concepção extremamente inquietante. Alcançá-lo acarretaria
esforço árduo, autonegação e noites sem sono. Tudo isso é repugnante à burguesia. Por outro lado, o objetivo da social-democracia é a alimentar a ciência. Se alguém ousasse imaginar como seria a prosperidade dos social-democratas, seria forçado a conceber um homem naturalmente bom, dotado de uma “mente sã” , mantido por um Estado paternalista e empenhando em salvar-se da destruição causada pelo tédio mediante a prática de alguma arte. Surpreende-nos o fato de a social-democracia nunca ter sido capaz de estimular seus programas? Tocqueville era inteligente demais para deixar de perceber isso. Segundo ele “ o conforto se torna um fim quando as distinções de posição são abolidas e os privilégios, destruídos” .

Dado que a atividade subversiva elimina a hierarquia, é lógico que os conservadores tratem como inimigos aqueles que desejam abolir as bases sagradas e seculares das distinções entre os homens. Todavia, a proposta dos subversores é impossível de ser posta em prática, e a discussão passa a girar em torno dos princípios de seleção. Desse modo, a história nos mostra exaustivamente que, quando os reformadores chegam ao poder, eles simplesmente colocam uma hierarquia burocrática no lugar de outra - e assim o fazem porque percebem que não desejam de modo algum a ruína da sociedade, mas que ela continue sob a influência de sua ideia do que é bom para o homem. 

A batalha está sendo travada em todas as frontes, e a mais insidiosa ideia empregada para demolir a sociedade é um igualitarismo indefinido. O fato dessa ideia não fazer sentido nem mesmo em suas aplicações mais elementares não impediu sua difusão, e mais adiante teremos algo a dizer a respeito da crescente incapacidade do homem moderno para exercer a lógica. Um autor político norte-americano do século XIX, diante da afirmação de que todos os homens são criados livres e iguais, perguntava se não seria mais correto dizer que nenhum homem jamais foi criado livre e que nunca dois homens sequer foram criados iguais. Hoje, esse realismo seria confundido com frivolidade. Thomas Jefferson, após seu longo apostolado a favor do radicalismo, teve como tarefa principal em sua velhice a criação de um sistema educacional que serviria como meio para distinguir os homens segundo seus dons e realizações.

Esse igualitarismo é nocivo porque ele sempre se apresenta como um reparador da injustiça, quando na verdade se trata justamente do contrário. Eu mencionaria aqui o fato (óbvio para qualquer observador sincero) de que a “igualdade” frequentemente é encontrada na boca daqueles que estão comprometidos com uma engenhosa autopromoção. Essas pessoas apreciam em segredo a escada que conduz aos fins mais elevados, mas sabem que podem passar pelos degraus inferiores com maior facilidade utilizando o lema do igualitarismo. Nós não necessariamente invejamos sua ascensão, mas a ideia promovida por elas é fatal para a harmonia do mundo.


A harmonia entre nações que estão dividas em grupos maiores ou menores não depende da quimérica ideia de igualdade, mas da fraternidade, um conceito historicamente muito anterior, já que está imensamente arraigado no sentimento dos homens. O antigo sentimento de fraternidade traz consigo obrigações que a igualdade desconhece. Ele demanda respeito e proteção, pois é sinônimo de status na família, e a família é hierárquica por natureza. A fraternidade exige que tenhamos paciência com o irmão mais novo e pode exigir duramente que o irmão mais velho cumpra seu dever. Ela coloca as pessoas em uma rede de sentimentos, e não de direitos - esse hortus siccus vaidade moderna. 

Um aspecto expressivo da perda de respeito pela lógica, à qual devem tantos desastres, foi a harmonização entre igualdade e fraternidade realizada pela Revolução Francesa. Tendo feito isso, ela nos ofereceu uma antecipação das campanhas políticas contemporâneas, as quais prometem tudo desavergonhadamente.

A igualdade é um conceito desorganizador, na medida em que as relações humanas supõem uma ordem. Ela é a ordem destituída de fim. Ela tenta estabelecer uma arregimentação sem sentido e infrutífera daquilo que, desde tempos imemoriais, recebeu uma ordem por meio do esquema da criação. Nenhuma sociedade pode ante a lei oferecer - de modo justo - algo inferior à liberdade, mas não pode haver igualdade de condições entre a juventude e a velhice ou entre os sexos. Nem mesmo entre amigos pode haver igualdade. A regra é a seguinte: cada um deve agir onde se mostra competente. A designação de papéis idênticos produz, em primeiro lugar, confusão e, em seguida, alienação, como temos cada vez mais oportunidades para observar. Essa heresia desordenada não está apenas destruindo ativamente os arranjos sociais mais naturais; ela também está criando um reservatório de inveja venenosa. Quanto da frustração do mundo moderno não procede do dar por pressuposta igualdade entre todos, da subsequente percepção de que isso não é possível e, então, do reconhecimento de que já não podemos recorrer ao elo da fraternidade!

Por mais que pareça paradoxal, a fraternidade sempre existiu nas mais hierarquizadas organizações. Ela existe, como observamos há pouco, no arquétipo da hierarquia: a família. A essência da cooperação é a congenialidade, isto é, a sensação de ter “nascido junto” . A fraternidade nos faz direcionar nossa atenção aos outros, e a igualdade nos faz direcioná-la a nós mesmos. Ademais, a paixão pela igualdade coincide com o crescimento do egoísmo. O quadro de conduta erigido pela fraternidade é ele mesmo a fonte da conduta ideal. Onde o homem percebe que a sociedade pressupõe posições hierárquicas, os que estão nos postos mais altos e mais baixos veem que seus esforços contribuem para um fim comum, e eles estão antes em harmonia uns com os outros, e não em concorrência. É uma regra geral que as partes do mundo que menos falaram sobre igualdade tenham apresentado, na realidade tangível de sua vida social, o maior grau de fraternidade. Isso foi verdadeiro em relação à Europa feudal antes das pessoas terem sucumbido a uma dentre as formas variantes da ideia de que todo homem deve ser rei. Nada é mais evidente do que o crescimento da desconfiança e da hostilidade, o qual ocorreu enquanto as distâncias sociais diminuíam e todos os grupos se aproximavam da igualdade. No mundo atual há pouca confiança e cada vez menos lealdade. As pessoas não sabem o que esperar umas das outras. Líderes não lideram, e servos não trabalham.

Também se nota comumente que as pessoas se reúnem com mais facilidade quanto conhecem sua posição. Se seu trabalho e sua autoridade estão definidos, elas podem agir com base em pressupostos firmes e agir sem embaraço diante de superiores ou inferiores. Todavia, quando a regra da igualdade prevalece, ninguém sabe qual é seu lugar. Como as pessoas são asseguradas de que são “tão boas quanto quaisquer outras” , elas provavelmente presumirão que recebem menos do que merecem. Shakespeare concluiu seu maravilhoso discurso sobre a hierarquia referindo-se a uma “febre invejosa” . E quando Mark Twain - no papel de ianque de Connecticut - empreendeu a destruição da hierarquia de Camelot, ficou furioso por ter descoberto que servos e outros de posição inferior não se ofendiam com sua condição. Então, ele adotou o típico procedimento jacobino: insuflar ódio aos superiores. O ressentimento, como Richard Hertz demonstrou, pode facilmente terminar sendo a dinamite que finalmente destruirá a sociedade ocidental.

A base de uma ordem social orgânica é a fraternidade, que é capaz de unir partes separadas. Devemos reiterar, então, referindo-nos aos nossos primeiros princípios, que a rebelião contra a distinção é um aspecto daquele movimento mundial e plurissecular contra o conhecimento, cujo início remonta ao nominalismo. Pois é necessária apenas uma pequena adaptação para afirmarmos que, se as classificações que fazemos do mundo físico são arbitrárias, também o são as que fazemos em relação à sociedade. Em outras palavras, após admitirmos que as generalizações que necessariamente fazemos acerca do mundo - e ninguém pode de fato negar essa necessidade - não expressam uma ordem objetiva, mas apenas produzem hábitos convenientes, deveremos admitir o mesmo em relação à sociedade. Quando aceitamos isso os padrões essenciais desaparecem; somente o que é conveniente admite justificação, e já não há tribunal de apelação contra a subversão gerada pelo pragmatismo. Portanto, o repúdio ao conhecimento daquilo que existe destrói as bases da renovação. Imaginar que o resultado final desse processo é o fim da civilização não é algo fantasioso, mas realista.

Geralmente, pressupõe-se que a extinção de toda e qualquer distinção antecipará o reinado da democracia pura. Mas a ausência de inteligibilidade no conceito de democracia pura faz com que isso seja uma mera fraude verbal. Se ela promete igualdade perante a lei, não faz nada além do que impérios e monarquias têm feito e, portanto, não pode usar isso como pretexto para afirmar sua superioridade. Se ela promete igualdade de condições, então promete a injustiça, porque ter a mesma lei para o boi e para o leão é algo tirânico. A pressão do instinto de consumo usualmente lhe obriga a prometer a igualdade de condições. Quando os humanitaristas descobriram que a igualdade perante a lei não tem efeito sobre as diferenças de habilidade e realização, concluíram que haviam sido persuadidos a exigir apenas uma parte de suas justas reivindicações. A reivindicação da igualdade política foi então complementada com a demanda pela democracia econômica, algo que deveria ser capaz de dar conteúdo aos ideais dos niveladores. Somente o despotismo podia impor algo tão irrealista, e isso explica por que os governos modernos devotados a esse programa de um modo ou de outro se tornaram despóticos. 

O dilema do igualitarismo radical apresenta outros aspectos. Um argumento frequentemente usado por seus defensores mais sofisticados é que a igualdade democrática permite que cada um desenvolva suas potencialidades. Esse argumento plausível implica questões importantes acerca da natureza das coisas. Ele sugere que o homem é como uma semente, o qual possui algum esquema imanente de germinação, de modo que ele necessita para seu desenvolvimento aquela liberdade que é “liberdade de” . Se isso é tudo, só pode querer dizer que nossa determinação é naturalista e que nosso crescimento é apenas o desenrolar de um plano determinado inteiramente pela natureza. É necessário assinalar apenas que tal concepção recebe orientação de baixo e pressupõe que o destino do homem é natural, é desenvolver-se como uma planta. Isso torna impossível qualquer noção de disciplina, que nessas circunstâncias seria uma força repressora daquilo que a natureza planejara. Mas toda teleologia rejeita a “ liberdade de” em favor da “ liberdade para”. A falácia romântica consiste na ideia de que os homens são um campo de flores silvestres, que são naturalmente boas em seu desenvolvimento.

Uma noção semelhante é que a democracia significa oportunidade de progresso ou, no linguajar atual, “uma chance de ser um sucesso” . Obviamente, essa afirmação supõe alguma hierarquia. O tipo de progresso pretendido por seus defensores é apenas o tipo que requer a existência de uma complexa organização social, dotada de recompensas, graus de excelência e tudo quanto possua um franco reconhecimento da superioridade. Se a democracia significa oportunidade de progresso, então ela pressupõe a chance de alguém se sobressair em relação aos menos favorecidos e assim ocupar uma posição definida com referência a graus superiores e inferiores. A solução do dilema é que essas pessoas desejam a democracia como um meio, e não como um fim. O democrata, ao confrontar-se com as realidades descritas acima, talvez admita que sua democracia é apenas a correção de uma aristocracia corrompida; ele realmente quer ordem, mas o tipo de ordem em que progridem os melhores, os talentosos e os diligentes. Deve haver uma cerca, mas a barra imprópria foi posta na parte superior.

Não obstante a alegação de que a democracia reconhece mais rapidamente as qualidades inatas, todos os que têm visitado uma sociedade democrática ficaram estarrecidos com sua exagerada exigência de conformidade. Tal mentalidade é uma excrescência do espírito de competição e desconfiança. Os democratas compreendem perfeitamente que se permitirem que as pessoas se dividam de acordo com suas habilidades e preferências, rapidamente uma estrutura impor-se-á sobre a massa. Daí a adulação dos medíocres, a sedução política do homem comum e a profunda desconfiança dos intelectuais, cuja compreensão dos princípios lhes dá uma visão mais clara das coisas. Esse tipo de sociedade pode até mesmo render homenagem ao modelo da moral superficial, pois esse é o “ cara legal” que não possui nenhuma das desconfortáveis asperezas do idealista.

Parece estar claro que os democratas ignoram uma contradição. Se eles tivessem a coragem de ser lógicos, fariam como seus predecessores na Grécia antiga e escolheriam seus governantes aleatoriamente. Afinal de contas, uma eleição é um procedimento altamente antidemocrático; o próprio termo “ eleição” quer dizer discriminação. Como é possível escolher o melhor homem quando, por definição, não há o melhor? Se uma sociedade deseja desenvolver-se naturalmente, isto é, se ela deseja florescer selvagemente, livre de determinações que lhe sejam superiores, deveria então escolher seus administradores de um modo completamente aleatório. Que a juventude e a velhice, a sabedoria e a tolice, a coragem e a covardia, o autocontrole e a libertinagem estejam juntos no governo. Isso é que será algo representativo; assim é que teríamos um grupo representativo, e parece não haver dúvida de que isso criaria aquela sociedade “ repleta de uma variedade maravilhosa e de desordem” , a qual Platão chamava de democracia. 

Todavia, devemos acrescentar uma nota de rodapé ao modo como os gregos praticavam a democracia. Havia determinados funcionários públicos da mais alta importância, os quais eles consideravam conveniente escolher por meio de uma eleição. Esses eram, como podemos supor, os strategoi, os comandantes militares. Os gregos compreendiam que a existência mesma do Estado dependia daqueles, e, já que um general devia ter habilidades, nesse ponto era mais conveniente considerar as diferenças e reconhecer que em momentos de emergência a autoridade recai sobre os que têm conhecimento.

Desse modo, o líder democrático sempre se choca com uma anomalia. Já argumentaram que - sejam quais forem as aberrações de um Estado democrático - em períodos de crise, como uma guerra civil ou uma ameaça de invasão, o povo escolhe instintivamente um líder que esteja muito acima da capacidade intelectual média, o qual será capaz de guiá-lo. Ainda que isso pudesse ser comprovado historicamente (algo que é duvidoso), esse argumento destruiría os fundamentos teóricos da democracia, porque ele assegura que o povo, em um período de crise, quer instintivamente ou de algum outro modo, submete-se a um grupo de elite que sabe o que deve ser feito. Quando o povo percebe que apenas um líder os salvará, aceitam-no e não se importam com aqueles que protestam contra a ditadura. Quando um fim mais elevado se torna imperativo, ele delega a autoridade a ponto de colocá-la além de seu próprio controle. Em períodos intermediários, o povo tende a se acomodar com o conforto da diversão e da desordem, algo que é em si uma explicação de seus ideais. É claro que essa questão é inseparável daquela relativa ao fim do Estado, assim como esta é, por sua vez, inseparável daquela relativa ao fim de cada indivíduo. [...] 

Edmund Burke foi forçado a enfrentar o mesmo problema quando a Revolução Francesa impeliu-o a analisar os fundamentos da liberdade constitucional britânica. Na ausência de uma constituição escrita, ele encarou a difícil tarefa de demonstrar que o povo inglês está submetido a uma limitação transcendente. Creio que as longas passagens das Reflections [Reflexões] dedicadas à sucessão da coroa, foram mal interpretadas, porque Burke não pretendeu afirmar, como o fez Thomas Paine, que sequer um único parlamento britânico tenha tomado a si mesmo como uma espécie de Adão político, cujas promulgações submeteriam todas as gerações subsequentes. Em vez disso, ele argumenta que esse ato era um precedente em conformidade com outros precedentes, cuja soma submete o povo inglês. Se nós devemos nos guiar pela experiência passada, há um sentido perfeitamente real no qual o precedente é irrevogável. E o precedente era para Burke o princípio da continuidade e da referência.  A herança da “ liberdade racional” foi, portanto, a proteção da Inglaterra contra a subversão.

Neste país, já foi dito inúmeras vezes que a democracia não pode existir sem a educação. A verdade escondida por trás dessa observação é que a educação é a única coisa da qual podemos nos valer para fazer com que os homens compreendam a hierarquia de valores. Trata-se de um modo diferente de dizer o que já foi dito antes: a democracia não pode existir sem a aristocracia. Essa aristocracia é uma liderança que, se pretende resistir, deve ser constantemente recrutada da democracia; portanto, é igualmente verdadeiro que a aristocracia não pode existir sem a democracia. Mas nós não nos prevenimos com antecedência contra a corrupção do sistema de recrutamento por meio do dogma igualitário e das tentações do materialismo, e nisso erramos. Não é difícil garantir que haja suficiente acordo em que se deve atuar a favor de uma educação colocada a serviço das necessidades do povo. Mas tudo depende de como entendemos essas necessidades. Se o fim primário do homem é aperfeiçoar seu ser espiritual e preparar-se para a imortalidade, então a educação do intelecto e das paixões terá prioridade sobre todo o resto. Todavia, o desenvolvimento do materialismo transformou essa consideração em algo vago e até mesmo incompreensível para a maioria das pessoas. Aqueles que afirmam que a educação deve preparar alguém para ter uma vida de sucesso conquistaram na prática uma vitória completa. Ora, se fosse possível formular um conceito de sucesso suficientemente filosófico, ainda assim seria possível ter objetivos idealistas, e já houve tentativas de fazer algo nesse sentido através da explicação, em linguagem filosófica, do que constitui um homem livre. No entanto, a ideia predominante é a de que a educação deve funcionar de tal modo que permita que qualquer um fique rico o bastante para viver como a burguesia. Esse tipo de educação não desenvolve as virtudes aristocráticas. Ela também não incita a reflexão e tampouco inspira a admiração pelo bem.

Em outras palavras, precisamente porque perdemos a compreensão da natureza do conhecimento é que não podemos educar para a salvação de nossa ordem. Os norte-americanos certamente não podem ser repreendidos por terem falhado em fomentar adequadamente a esperança de que a educação poderia trazer a salvação. Eles construíram inúmeras escolas secundárias e as equiparam generosamente, mas têm de se conformar, no atual estado de coisas, em vê-las transformadas em centros sociais e em instituições para o aprimoramento da personalidade, onde os professores vivem com medo de seus alunos e não ousam impor sua erudição. Eles construíram faculdades na mesma escala, mas tiveram de conformar-se com vê-las transformadas em parques de diversão para adultos imaturos e em centros de orientação vocacional e profissional. Finalmente, eles viram os pragmatistas esforçando-se para transformar as aulas em fóruns democráticos (como se alimentassem um ódio particular à própria noção de hierarquia), nos quais o professor é apenas um moderador e ninguém está errado em ter a presunção de falar como se soubesse mais que ele. 

A fórmula da educação popular enfraqueceu a democracia porque esta se revoltou contra a ideia de sacrifício, o sacrifício do tempo e dos bens materiais, sem o qual não pode haver educação da disciplina intelectual. A psicologia da criança mimada, sobre a qual eu direi algo mais tarde, tem procurado uma estrada real para o aprendizado. Desse modo, quando até mesmo as instituições de ensino estão a serviço principalmente dos objetivos de uma existência animal vulgar, então seu último à ordem é destruído pelos apetites. Todas as tentativas de encontrar uma solução para esses dilemas apontam para uma necessidade: alguma fonte de autoridade deve ser encontrada. A única fonte de autoridade irrepreensível sempre foi o conhecimento. Mas a superioridade nesse terreno traz consigo prerrogativas, que implicam, é claro, a presença de distinções e hierarquia. Vimos também que a possibilidade de ser livre e a esperança de aperfeiçoamento pessoal se baseiam nelas, pois a liberdade deve sempre trabalhar em nome da reta razão, e esta é, por sua vez, um reflexo da ordem das coisas. Os conservadores de hoje têm um argumento que só não é empregado por causa da sua falta de imaginação. Trata-se da afirmação de que os niveladores são inimigos da liberdade. Onde existe apenas uma simples massa todos se põem nos caminhos uns dos outros, e a liberdade e seus riscos são trocados pela estultificação. 

O homem comum do nosso tempo tem uma metafísica sob a forma de um conceito conhecido como “progresso” . Devemos reconhecer que ele não deseja ser um sentimentalista em seus empreendimentos; ele quer que haja algo com que possa medir suas atividades propositadas; ele deseja sentir que um crescente desígnio penetra o mundo. E nada é mais comum do que vê-lo apontando diferenças entre as pessoas de acordo com sua metafísica e reservando para os menos dignos o epíteto de “não progressista” . Mas visto que sua metafísica aspira apenas à grandeza e ao número, e já que ela é um tornar-se, mas sem objetivos, então não pode ser uma fonte de distinções de valores. Ela é um sistema de comparação quantitativa. Seu efeito foi, portanto, a destruição da hierarquia tradicional e a geração do homem econômico, cujo destino é a mera atividade. 

A mera ideia de progresso infinito é destrutiva. Se o objetivo se distancia eternamente, o último ponto não está mais próximo dele do que outro ponto qualquer. Tudo o que podemos fazer é comparar, insignificantemente, o passado, o presente e o futuro. Aristóteles observou que a ideia de infinidade torna impossível a noção de bem. Se um grupo de coisas é ordenado hierarquicamente, fica condicionado de cima a baixo e, portanto, não pode ser infinito. Se é infinito, não pode ser condicionado de cima a baixo, e não há o superior e o inferior. 

 Ora, tal olhar sobre a natureza das coisas é imperativo, pois nossa concepção metafísica da realidade determina em última instância tudo o mais. E se achamos que a natureza não manifesta nenhum desígnio, é impossível referendar a existência de um desígnio em nossas vidas. Na verdade, a afirmação da existência de um desígnio em um mundo que consideramos sem sentido é uma forma de sentimentalismo.